DESDE QUE VIERA trabalhar naquela loja de departamentos, coubera a Andressa a tarefa de cuidar dos provadores, aquele local reservado onde os clientes antes da decisão final têm a liberdade de experimentarem os produtos que pretendem levar para casa. Uma calça, uma camisa, um cinto, um vestido, uma blusa, um terno. Enfim, é ali, exatamente no provador, que o público em geral toma para si a certeza de ficar ou não com o artigo escolhido nas dependências de qualquer magazine que comercializa com a venda em varejo de artigos os mais diversos, sejam eles masculinos, femininos ou crianças. Na imensidão que se perdia de vista, havia um bom número de provadores. Do lado direito ficava a ala masculina e, do esquerdo, o feminino. Andressa controlava as doze cabines sentada atrás de um balcão onde entregava as fichas com o número de peças que as pessoas levavam para dentro das cabines.
Laborava, a princesa, de oito da manhã às dez da noite com apenas uma hora de almoço. Mal e parcamente via a luz do sol. O namorado que arranjara a abandonara dois meses depois, até porque passava a maior parte do tempo enfurnada no serviço. Nos dias de folga, aproveitava para cuidar das roupas que usava durante a semana e jaziam amontoadas numa velha cesta num canto do banheiro. Quando terminava os afazeres, altas horas, morta de cansada, caia na cama e dormia feito pedra. Praticamente deixara de viver para se dedicar, de corpo e alma, à labuta do cotidiano. Embora jovem, necessitava tocar a vida adiante. Longe dos pais, carecia de sobreviver. Com o aluguel comendo junto na mesa e outras despesas necessárias, não saia com as amigas da empresa nem para uma balada num barzinho que ficava perto do apartamento que dividia com mais duas colegas.
Até o dia em que Ricardo, um varão boa pinta apareceu com quatro jeans para provar. Entre eles, foi amor à primeira vista. Ela se encantou por aquele deus grego, um tremendo “mau caminho saradão,” cheio de tatuagens pelo corpo afora. Ela entregou um número a ele e ficou olhando, perdidamente, até que o charmoso sumiu em um dos cubículos e puxou a cortina. De repente, para espanto dela, dois minutos depois, ele a chamou. A voz grossa de macho, e, ao mesmo tempo gostosa de ser ouvida, vibrou por todo seu corpo. O galã queria uma opinião. Saber dela, se alguma daquelas calças cairiam bem ou necessitava trocar por outros modelos. Andressa, meio acanhada, e informando que não poderia estar ali, se achegou e opinou. De repente, nessa desculpa de declarar a sua manifestação no simples troca-troca, eles se examinaram e se tocaram intimamente.
No instante seguinte, Ricardo já aninhava a presa contra seu peito. Numa troca envolvente de afagos e blandícias, colou a sua boca nos lábios dela. Aconteceu. Foi muito rápido. Naquele dia, só rolou os tais selinhos, aliás, bem calientes. A partir daí os encontros tomaram uma afeição “mais desproporcional” e jamais imaginada. Escapou aos controles de ambos. Andressa simplesmente passou a transar dia sim, dia não, com o Ricardo, dentro do provador, sem se importar com quem pudesse chegar sem avisar e flagra-los na maior sacanagem da paróquia. O inusitado, a partir da primeira vez, esquentou e passou a pegar fogo todas as vezes que ele dava os ares da graça. E esses “ares” se escancaravam cada vez mais compridos e descontrolados.
Os clangores apimentavam sempre enleados nas alegações dela –, ou seja –, da beldade opinar ao seu “amado,” se tal peça a ser comprada, cairia bem ou não. O assombramento rimbombante maior aconteceu e não só trovejou, estardalhaçou meses à frente. Ou mais precisamente, ao completar nove meses. Ricardo havia acabado de entrar na loja e correu ligeiro em direção às cabines. Seria mais uma seção rápida de sexo e depois, sem maiores problemas, regressaria aos afazeres no escritório onde trabalhava, próximo dali, como gerente de uma empresa de telemarketing. Ao chegar na entrada de acesso dos compartimentos, topou com um rostinho diferente no atendimento. Não a sua fogosa e intrépida Andressa. Perguntou por ela e a nova auxiliadora disse que a funcionária anterior, uma tal de Andressa, que ela não conhecia, acabara de ser levada as carreiras para um hospital.
Desesperado, Ricardo saiu a indagar daqui e dali e nada. Foi ao gerente e este, esclareceu o ocorrido. Andressa havia sido internada. Sofrera um acidente grave de moto, quando saíra de casa e se dirigia à empresa. Ricardo entrou em um frenesi exaltado e inquieto. Nada sabia da garota, a não ser que vivia sozinha e morava com amigas. Seus familiares residiam no interior de São Paulo. Em face do fortuito colossal, ninguém aparecera para reclamar qualquer tipo de assistência familiar. A pobre estava no hospital aos reveses da sorte, beneficiada apenas pela companhia de uma das gerentes, que fora colocada em auxílio, e, logicamente, à disposição, caso houvesse algum imprevisto mais fulminante que carecesse de solução imediata. Depois de muita luta e empenho, um dia e meio depois, Ricardo finalmente descobriu o hospital para onde Andressa fora levada.
Correu para lá o mais depressa que pode. Quando chegou na recepção, precisou mentir se dizendo “namorado” da vítima, ou não conseguiria o ingresso para subir ao andar onde à mesma lutava entre a vida e a morte. Ao se apresentar no andar indicado, entretanto, a gerente designada pela empresa lhe veio ao encontro e o pôs à par da nefasta notícia, confirmada, em seguida, por uma das enfermeiras de plantão.
— A senhorita Andressa, infelizmente acabou de vir à óbito. Se o senhor tivesse aparecido dois minutos antes...
Coisa de dez minutos depois, outra notícia bombástica tirou Ricardo do chão. Literalmente. Uma segunda plantonista apareceu na sala onde Ricardo acabara de saber do falecimento. A moça se abriu num sorriso triste.
Como Ricardo, estava na condição de “namorado,” a jovem lhe confortou com palavras de carinho. Em seguida, após as condolências, ofereceu seu apoio irrestrito e os mais sinceros pêsames em nome de toda a equipe da pediatria. Finalmente, no tempo em que apertava as mãos do assustado apolíneo, uma terceira criatura se fez presente. Era a pediatra.
— Meu rapaz, você é o Ricardo, não é mesmo? Minhas sinceras condolências. Sua “namorada” nos deixou. Fizemos o possível, acredite. Contudo, sei que a hora não é propícia, mas tenho algo maravilhoso para revelar. – tomou fôlego e continuou.
— Está vendo aquele vidro enorme de um canto a outro da parede? Venha comigo. Conseguimos salvar a criança. Nasceu prematura. O senhor foi contemplado. Meus parabéns. Sua pessoa poderá se considerar, a partir de agora, o homem mais feliz do mundo. O prezado acaba de se tornar papai de uma linda menininha.
Fonte: Texto enviado pelo autor
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