Corria a prosa tão animada, e eis que ele se levanta e zarpa, sem pedir licença.
— Ora já se viu?...
Ficou furioso o Silvino. Mas Damião caminhou indiferente à fúria do Silvino. Mal sentiu o vento que cortava.
— Eta invernão!
Fechou cuidadosamente a porta. E, ainda de sobretudo, tomou posição.
Maciazinha, a caneta nova! Uma beleza de macia... Compraria meia dúzia delas no dia seguinte.
Imediatamente, porém, expulsou do cérebro em faiscações, essa ideia mesquinha de “compra” e de “meia dúzia”. Urgia encetar a obra.
Escreveu, devagarinho:
“O destino, esse fatal desvelador.”
Botou uma vírgula bem caprichada. E repetiu, em alta voz:
— O destino, esse fatal desvelador...
Era bem esse o começo que idealizara.
— Fatal desvelador. Fatal... Bonito adjetivo. Só que parece um pouco trágico. Mas não. Quem manda no verso é o “desvelador”.
Desvelador vai bem. Vai bem.
Precisava de um complemento para “destino”. O destino tinha de fazer qualquer coisa. Escreveu:
“Que prevalece na paixão e predomina no amor.”
Muito comprida essa linha.
— Pre-va-le-ce... Pre-do-mi-na... Vá lá.
(Pausa).
— Amor... Paixão... Estas palavras significam o mesmo. Será o tal do pleonasmo?
Correu ao dicionário.
“Pleonasmo, s.m. (gr. Pleonasmos)”
— Vem do grego, hein?
O Dicionário Prático Ilustrado falava assim:
“Repetição de ideias ou de palavras que têm o mesmo sentido; viciosa, quando inconsciente ou devida à ignorância: legítima, quando propositada, para dar maior força à frase.”
— Legítima, quando propositada. É esse o meu caso. Eu repeti pra dar maior força à ideia. À ideia... Que ideia? O que eu queria era falar da Ofélia. Comecei com “tudo passa” pra lembrar aquilo que já passou. Qual! O melhor é atacar o assunto, diretamente.
A imagem da Ofélia cresceu dentro de si. Parecia um sonho.
— Ah! Um sonho... Direi que sonhei com ela. Isso mesmo.
A caneta nova trabalhou febrilmente.
Riscou tudo, tudo. Era o seguinte o novo texto:
“Eu te sonhei assim.”
Assim de que jeito?
Catou uma ideia. Catou. Nada. Quase desistiu.
O sobretudo já estava incomodando. Sacou-o fora.
Sem o sobretudo, teve momentos mais livres.
E foi com verdadeiro júbilo que grafou:
“Dama então pra mim desconhecida.”
— Querida... Desconhecida... Boa rima. Será que o primeiro verso pode rimar com o segundo? Acho que pode.
Corria dificílimo o parto. Em todo caso, sempre deu a terminar desse jeito o primeiro quarteto:
“Em cujo olhar todo cheio de candura,
Não lia a causa de minha desventura.”
— Candura... Desventura... Está rimado. A candura é dela. A desventura é minha.
Trabalhou mais duas horas e meia.
— Pronto, felizmente!
Não parecia mau o verso final:
“Foi assim que te sonhei, Ofélia.
Foi assim... Foi assim...”
Só então ele notou o cansaço. Doíam os rins.
Releu toda a obra, em voz alta, passeando no quarto, em diagonal.
Depois escreveu o título a lápis vermelho, letra de forma:
EU TE SONHEI ASSIM...
Nessa noite, Damião dormiu como um bem-aventurado.
(Publicado originalmente em O Dia. Curitiba, 8/11/1936.)
Fonte> Newton Sampaio. Ficções. Secretaria de Estado da Cultura: Biblioteca Pública do Paraná, 2014.
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