quinta-feira, 13 de junho de 2024

Newton Sampaio (Inspiração)

Ficaram estateladas com a saída brusca do Damião. Que diabo acontecera ao rapaz?

Corria a prosa tão animada, e eis que ele se levanta e zarpa, sem pedir licença.

— Ora já se viu?...

Ficou furioso o Silvino. Mas Damião caminhou indiferente à fúria do Silvino. Mal sentiu o vento que cortava.

— Eta invernão!

Fechou cuidadosamente a porta. E, ainda de sobretudo, tomou posição.

Maciazinha, a caneta nova! Uma beleza de macia... Compraria meia dúzia delas no dia seguinte.

Imediatamente, porém, expulsou do cérebro em faiscações, essa ideia mesquinha de “compra” e de “meia dúzia”. Urgia encetar a obra.

Escreveu, devagarinho:

“O destino, esse fatal desvelador.”

Botou uma vírgula bem caprichada. E repetiu, em alta voz:

— O destino, esse fatal desvelador...

Era bem esse o começo que idealizara.

— Fatal desvelador. Fatal... Bonito adjetivo. Só que parece um pouco trágico. Mas não. Quem manda no verso é o “desvelador”.

Desvelador vai bem. Vai bem.

Precisava de um complemento para “destino”. O destino tinha de fazer qualquer coisa. Escreveu:

“Que prevalece na paixão e predomina no amor.”

Muito comprida essa linha.

— Pre-va-le-ce... Pre-do-mi-na... Vá lá.
(Pausa).

— Amor... Paixão... Estas palavras significam o mesmo. Será o tal do pleonasmo?

Correu ao dicionário.

“Pleonasmo, s.m. (gr. Pleonasmos)”

— Vem do grego, hein?

O Dicionário Prático Ilustrado falava assim:

“Repetição de ideias ou de palavras que têm o mesmo sentido; viciosa, quando inconsciente ou devida à ignorância: legítima, quando propositada, para dar maior força à frase.”

— Legítima, quando propositada. É esse o meu caso. Eu repeti pra dar maior força à ideia. À ideia... Que ideia? O que eu queria era falar da Ofélia. Comecei com “tudo passa” pra lembrar aquilo que já passou. Qual! O melhor é atacar o assunto, diretamente.

A imagem da Ofélia cresceu dentro de si. Parecia um sonho.

— Ah! Um sonho... Direi que sonhei com ela. Isso mesmo.

A caneta nova trabalhou febrilmente.

Riscou tudo, tudo. Era o seguinte o novo texto:

“Eu te sonhei assim.”

Assim de que jeito?

Catou uma ideia. Catou. Nada. Quase desistiu.

O sobretudo já estava incomodando. Sacou-o fora.

Sem o sobretudo, teve momentos mais livres.

E foi com verdadeiro júbilo que grafou:

“Dama então pra mim desconhecida.”

— Querida... Desconhecida... Boa rima. Será que o primeiro verso pode rimar com o segundo? Acho que pode.

Corria dificílimo o parto. Em todo caso, sempre deu a terminar desse jeito o primeiro quarteto:

“Em cujo olhar todo cheio de candura,
Não lia a causa de minha desventura.”

— Candura... Desventura... Está rimado. A candura é dela. A desventura é minha.

Trabalhou mais duas horas e meia.

— Pronto, felizmente!

Não parecia mau o verso final:

“Foi assim que te sonhei, Ofélia.
Foi assim... Foi assim...”

Só então ele notou o cansaço. Doíam os rins.

Releu toda a obra, em voz alta, passeando no quarto, em diagonal.

Depois escreveu o título a lápis vermelho, letra de forma:

EU TE SONHEI ASSIM...

Nessa noite, Damião dormiu como um bem-aventurado.

(Publicado originalmente em O Dia. Curitiba, 8/11/1936.)

Fonte> Newton Sampaio. Ficções. Secretaria de Estado da Cultura: Biblioteca Pública do Paraná, 2014.

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