Quando, no norte do país, houve uma seca espantosa, que durou um par de anos e alarmou o governo e o povo todo, a farinha de mandioca encareceu, porque quanta se fabricava toda ia para aqueles infelizes flagelados.
Por essa época andava eu caçando antas nas serras do Paraná, e aí tive notícia da seca e da necessidade de mantimentos para os socorros.
Eu estava dentro dos pinheirais: tive uma ideia, isto é, tive uma pilha de ideias, porém uma prevaleceu: em três tempos montei um engenho e comecei a fabricar farinha de pinhão.
Pinhões, havia, às centenas de carretas; o que dava trabalho era descascá-los.
Ora, mas também havia muito bugio.
Preparei a minha gente e fiz algumas batidas, apanhando uma caterva de bugios, que são uns macacões ruivos, fortes e muito práticos de comer pinhões.
Estão querendo perceber?
Colhíamos os pinhões e os entregávamos aos bugios, amarrados em volta do terreiro - homens a um lado, mulheres a outro, para evitar rusgas - por imitação do que nós fazíamos, os bichos aprenderam a pelar os pinhões, atirando as cascas para um monte e as amêndoas limpas para dentro de cestos.
É verdade que eles comiam muito: mas o pinhão sobrava!
Eu tinha mais de duzentos macacos - bugios e bugias - mestres de pelar pinhão, e tudo gente moça, porque os velhos não tinham metido a mão na cumbuca, e lá andavam no mato, passando vida de cachorro.
Ora, pois, não é nada, mas cada dia preparava minhas sete arrobas, mais ou menos, de farinha de pinhão, que era logo ensacada e mandada para a comissão da fome da seca.
Fabricada, ensacada e mandada de graça! Confesso a minha verdade: eu esperava ser recompensado com uma comendazinha... Era o meu fraco: poder um dia enfrentar uma onça, de comenda no peito!
Cada um com a sua fraqueza.
Nesse meio tempo apareceu o gafanhoto, uma praga monstruosa, que derrotou tudo quanto era pinhão que havia na serra: não se encontrava um, para remédio.
Vi-me então obrigado a licenciar os bugios e soltei-os, dando-lhes conselhos e recomendando-lhes juízo.
Foi um grande dia para aqueles bichos.
Estou convencido que se durasse mais tempo o serviço, muitos deles, os mais inteligentes, acabariam, não digo - falando - porém - mastigando - alguma coisinha que se entendesse.
Por exemplo: havia um, que com alguns exercícios já dizia - mual! mual! - o que parece-me que seria - Romualdo -, que era o nome que ele mais ouvia na roda do dia.
Pouco antes de retirar-me daqueles lugares, andava eu no mato, aborrecido por não encontrar caça alguma que me satisfizesse.
Embrenhado num cerrado, encostei-me a uma árvore, à espera do que aparecesse.
Nisto senti ali por perto um - hã, hã, hã! - muito compassado e "monátono" (sic). Hã! hã! hã! Lembrei-me da cantoria das amas, embalando crianças.
Por instinto de caçador, apurei o ouvido e percebi donde vinha o som; olhei, e por entre as ramarias lobriguei um vulto amarelo-vermelho; levei a arma à cara, fiz pontaria, e ia desfechar.
Quando senti que puxavam-me pela aba do casaco voltei-me, e qual o meu espanto, dando de cara com um bugio, que ria-se e dizia - Mual! Mual!
Abaixei a arma; ele e não, sempre puxando-me pela aba do casaco, foi-me levando em direção ao vulto que eu descobrira; mais perto vi então que era uma macaca, sentada, com um macaquinho ao colo, dando-lhe de mamar!
O lugar onde ela estava era uma espécie de rancho, mal feito, é verdade, mas mostrando já alguma civilização, havia um porongo d'água pendurado num galho, e, numa forquilha, espetado, um ninho de sabiá cheio de guabijus, parecendo uma fruteira.
O bugio pôs uma mão no ombro da bugia, a outra sobre a cabeça do macaquinho e com a outra bateu no peito, como a dizer:
- Minha mulher! Meu filho!
Oh! senti toda a poesia daquela felicidade!
Tirei do bolso o meu lenço de ramagens e dei-o de presente à bugia, dizendo:
- Toma! Faze fraldas para o pequeno!
O Iadrãozinho parece que entendeu e engraçando com a corrente do meu relógio, pôs-se a brincar com ela; e eu, para divertir-me, ainda encostei-lhe a "cebola" ao ouvido, para ele apreciar o tique-taque da máquina.
O casal saltou de contente, berrou -mual! mual! - umas quantas vezes, e quando me despedi, veio acompanhar-me até a beira do mato. Nunca mais os vi.
Quem nos diz a nós que, com tempo e paciência e pinhões, os bugios.
Ah! antes que esqueça: da minha farinha e da tal comissão também nunca mais tive notícias.
E da comenda, menos!
Fonte: João Simões Lopes Neto. Casos do Romualdo. Publicado em 1914. Disponível em Domínio Público
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