Em que se prova que certas perguntas inocentes, claramente feitas, valem às vezes por uma informação perigosa.
O padre Sebastião havia tido notícia, por intermédio do sineiro, que a sua paróquia, colocada sob a invocação de Nossa Senhora do Retiro, se achava minada, encoberta, anarquizada pela corrupção dos costumes. Segundo o depoimento dessa testemunha, o bairro estava semeado de casas duvidosas, onde algumas senhoras levianas se juntavam durante certas horas do dia rindo, dançando, palestrando com rapazes e velhos divertidos, que ali ficavam até à noite, consumindo o seu tempo e gastando o seu dinheiro. Escandalizado com a denúncia, o virtuoso sacerdote chamou uma tarde, o sacristão e recomendou-lhe:
— Francisquinho, nós precisamos agir, na freguesia contra o demônio da corrupção. A seara de Deus, que se mostrava tão prospera, principia a ser devorada pelas lagartas do Demônio. E nós precisamos trabalhar, meu filho!
O sacristão arrebitou o nariz para melhor farejar o escândalo, e o reverendo explicou o seu plano:
— É preciso que você, que conhece toda a gente, indague por aí quais são as casas suspeitas em toda a paróquia. Veja o número dos prédios e venha avisar-me, para que ou tome as providências.
Francisquinho pegou no chapéu, sacudiu-o no cocuruto, e partiu, bamboleando pelas ruas do bairro, a indagar de café em café, de botequim em botequim, de antro em antro, onde estavam situados aqueles focos de corrupção. E à tarde, informava com a sua vozinha em falsete a Sua Reverendíssima, o vigário:
— Meu padrinho, descobri tudo. As casas são três: uma na rua dos Enforcados nº 29, outra na rua França Coelho nº 417, e outra na travessa de Santa Apolônia nº 46. E é só.
Padre Sebastião tomou nota em uma das folhas do breviário, decorou, depois, um por um, o nome das ruas e o número das casas e no dia seguinte foi, como de costume, confessar e absolver os fiéis.
Estava ele no confessionário ouvindo, peneirados no crivo de ferro, os pecados do seu rebanho, quando percebeu na última dama que se ajoelhara à sua frente, uma das senhoras cuja virtude não lhe merecia grande confiança. Cauteloso, o sacerdote, em certo momento, indagou:
— E você, filha, nunca abandonou o seu lar para ir à Rua dos Enforcados nº 27?
— Não, senhor! — gemeu a moça.
— E à Rua França Coelho nº 417?
— Também, não, senhor! — insistiu a dama.
— E à travessa Santa Apolônia nº 46? — tornou o pároco.
— Não, senhor!
Padre Sebastião absolveu a linda ovelha impoluta, e como não tivesse mais ninguém a confessar, deixou-se ficar no confessionário a olhar para a porta da igreja por onde ia sair a última confessada. De repente, abriu a boca, espantado: no portal do templo, a formosa paroquiana tomava nota a lápis em uma carteirinha, que exumara ali, de uma custosa bolsinha de ouro. Desconfiado, o sacerdote encaminhou-se para a porta, arrastando em silêncio as suas sandálias moles de lã, e chegando perto da moça indagou, interessado, com a sua santa voz de além-túmulo:
— De que é que toma nota, minha filha?
A dama, sem se aperceber da pergunta, respondeu apenas, como se falasse a si mesma:
— Essas eu não conhecia, não!
E, guardando a carteirinha na bolsa de ouro, retirou-se descendo os degraus.
Fonte> Humberto de Campos. A Serpente de Bronze. Publicado originalmente em 1925. Disponível em Domínio Público.
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