domingo, 16 de junho de 2024

Laé de Souza (Luandécia e sua patroa)

O Michael, nome escolhido pelo filho da patroa, fã do cantor, foi a gota. Aliás, por achar o nome impróprio para o cão, Luandécia chamava-o de Lulu, pouco ligando aos reclamos do garoto e mantendo uma pirraça antiga contra o menino. Na chegada, estragando a festa da família, foi logo perguntando quem iria tratar do animal.

Depois de um momento de mutismo e olhares de uns para os outros, Tia Guilhermina, que estava passando uns dias por ali, saiu em defesa, dizendo que o cão não daria tanto trabalho e com certeza ela também se apegaria.

Luandécia que já estava meio cheia, principalmente com o trabalho aumentado pela visita da tal tia, respondeu que não tinha apego nem aos vira-latas que tinha em casa que mais viviam na rua. Saiu da sala resmungando que não aguentava mais e que ninguém reclamasse se ficassem coisas sem fazer. 

Vovô Afonso, sentado no seu canto, falou que aquela empregada estava indo longe demais, metendo-se com coisas que diziam respeito somente à família. 

Quinho deu razão ao avô, dizendo que a Luandécia estava muito folgada. Quando pedia lanches, ela fazia hora só para chatear, ralhava com ele por qualquer coisa e outro dia até ameaçou lhe dar umas chineladas se não parasse de pisar no tapete com os pés sujos. 

Alvoroço geral, mas por fim resolveram ajeitar as coisas, diante dos argumentos do Dona Adélia de que empregada não estava fácil e que qualquer uma que entrasse traria os mesmos problemas.

Luandécia, diante da tábua de passar roupas, remoía por dentro relembrando os momentos que tinha passado naquela casa.

Lembrou-se da vez que levou uma chacoalhada do patrão quando anotou um recado que nem ela mesma conseguia decifrar. Lá tinha culpa de ter feito mal e mal o Mobral? E pensava no seu silêncio que o seu contrato de trabalho era de doméstica e eles queriam que ela também fosse secretária, e ainda por cima com o mesmo salário. 

Tinha ojeriza a telefone. Quando o trem tocava, ela queria estar longe. Era só reclamação.

Recordou-se de quando sem querer e com a cabeça nos seus problemas domésticos (é, empregada também tem problemas de natureza familiar], ela queimou uma blusa da Camila, Foi um choro da menina o dia inteiro, além da ameaça de ser despedida e ter descontada do seu salário a tal blusa, pelo preço atribuído pela patroa, que até hoje ela duvida que tenha sido tão alto.

E quando vêm os parentes do interior, principalmente nas férias daquele sobrinho sapeca e se hospedam, ficando tudo por conta dela e ninguém se lembra quando vai embora de lhe dar os trocos que quando chegaram prometeram? Só Deus mesmo.

E foi com tudo isso na cabeça e num dia que o patrão chegou meio de fogo e vomitando pela casa toda, que ela aproveitou o embalo e deixou o tal Michael fazer sujeira no tapete à vontade. 

Chegou no quarto da patroa, bem às sete horas (ela não gosta de acordar antes das nove), bateu com vontade na porta e num sorriso cínico (divertia-se com o desespero da dona Adélia), apontou-lhe a sujeira em que se encontrava a casa, dizendo-lhe que marcasse o dia para o acerto das contas, porque ela estava indo embora. 

Fez de conta que não escutava o pedido de paciência e lembrou-lhe que já estava quase na hora de dar a comida do Lulu que já começava a uivar de fome lá fora. 

Saiu rebolando e batendo a porta com a vontade que sempre teve de bater.

Fonte: Laé de Souza. Acredite se quiser. SP: Ecoarte, 2000. Enviado pelo autor.

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