sexta-feira, 7 de novembro de 2025

José Feldman (Café Literário)

Era uma tarde chuvosa, com muitos relâmpagos, quando três escritoras se encontraram em um pequeno café localizado dentro de uma biblioteca antiga, além da imaginação. O ambiente era acolhedor, com estantes repletas de livros ao fundo e o aroma do café fresco pairando no ar. 

Lygia Fagundes Telles, Raquel de Queiroz e Clarice Lispector já estavam sentadas em uma mesa rústica, cercadas por cadernos, canetas e uma xícara fumegante.

Lygia (sorrindo): Que delícia poder estar aqui com vocês! Às vezes, sinto que as bibliotecas têm um modo especial de nos inspirar, não acham?

Raquel (balançando a cabeça): Com certeza. É como se cada livro aqui tivesse algo a nos contar. E eu adoro a ideia de que todos nós, de alguma forma, estamos conectadas por essas histórias.

Clarice (olhando pela janela): É verdade. Mas, falando em histórias, como andam os enredos de vocês? Estou curiosa para saber em que estão trabalhando.

Lygia (pegando um caderno): Estou explorando a vida de uma mulher que descobre um diário antigo em uma casa de família. Ela começa a desvendar segredos que mudam sua perspectiva sobre o passado. É uma viagem entre o real e o imaginário.

Raquel (entusiasmada): Isso me lembra um pouco da história que estou escrevendo. Minha protagonista é uma mulher do sertão que luta para manter sua identidade em meio às adversidades. A conexão com suas raízes é fundamental.

Clarice (pensativa): Como isso é profundo. Eu estou mergulhando na mente de uma mulher que se sente perdida em sua própria vida. É uma exploração da solidão e da busca por pertencimento. Acredito que, no fundo, todas nós lidamos com essas questões de alguma forma.

Lygia (inclinando-se para frente): Eu adoro como você aborda a solidão, Clarice. É um tema tão universal. Você consegue transmitir essa sensação de forma tão intensa.

Raquel (sorrindo): E, ao mesmo tempo, nos mostra a força das mulheres. A luta é uma parte intrínseca da nossa narrativa, não é?

Clarice (concordando): Exatamente. E, curiosamente, muitas vezes encontramos força nas fragilidades. Na minha história, a protagonista descobre que a vulnerabilidade pode ser uma fonte de poder.

Lygia (pensativa): Isso me faz refletir sobre como as experiências de vida moldam nossas personagens. Cada uma de nós traz um pedaço de si nas histórias que contamos.

Raquel (entusiasmada): E o que vocês acham sobre a influência do ambiente em nossos enredos? Para mim, o sertão é quase um personagem. Ele tem vida própria, e suas características influenciam profundamente a trajetória da minha protagonista.

Clarice (sorrindo): Eu sinto o mesmo. No meu caso, o espaço urbano, com suas contradições, é fundamental. O caos da cidade reflete a confusão interna da minha personagem.

Lygia (abrindo os braços): E quanto aos sentimentos? A literatura, para mim, é uma forma de explorar o que muitas vezes não conseguimos expressar. Através da escrita, conseguimos dar voz a emoções complexas.

Raquel (com um brilho nos olhos): Sim! E isso é especialmente importante para nós, mulheres. Muitas vezes, nossas vozes foram silenciadas, e agora temos a oportunidade de contar nossas histórias.

Clarice (pensativa): Isso me lembra da forma como a sociedade vê as mulheres. Nossas histórias desafiam estereótipos, não é? Cada uma de nós, de nossa maneira, traz à tona questões que precisam ser discutidas.

Lygia (concordando): E é essa diversidade de experiências que enriquece a literatura. Precisamos continuar a abrir espaços para novas vozes e narrativas.

Raquel (erguendo a xícara): Um brinde a isso! À força da mulher na literatura e a todas as histórias que ainda estão por vir.

Clarice (levantando a xícara também): E que possamos inspirar outras mulheres a encontrar suas vozes e contar suas histórias.

As três escritoras brindaram, sentindo a energia daquela manhã, ricas em ideias e reflexões. O café na biblioteca se tornara um espaço de criação, onde palavras se entrelaçavam como as vidas de suas protagonistas, cada uma em busca de seu próprio caminho e significado. 

E assim, entre livros, risos e diálogos profundos, a manhã se desenrolou, repleta de promessas e sonhos literários, enquanto o mundo lá fora continuava a girar, alheio à magia que acontecia naquele pequeno refúgio de histórias e inspiração.

Fontes:
José Feldman. Pérgola de Textos. Floresta/PR: Plat. Poe. Biblioteca Voo da Gralha Azul.
Imagem criada por Jfeldman com Microsoft Bing  

quinta-feira, 6 de novembro de 2025

Asas da Poesia * 121 *


Poema de
LUIZ POETA
(Luiz Gilberto de Barros)
Rio de Janeiro/RJ

De - sen - velhecer

Desenvelheço toda vez que me retoco
E a maquiagem que me dou, não me desmente,
Ela é o presente de um passado que eu evoco,
Quando meu foco é viver mais intensamente.

Rejuvenesço quando pinto meus cabelos
Mas alguns pelos denunciam minha idade,
Minha saudade nunca cede aos meus apelos...
Sem atropelos, chega com suavidade.

É impressionante essa leveza cristalina
Que as retinas não contêm, quando algum pranto
Faz meu encanto mais feliz dobrar a esquina,
Mas me deixar algumas notas de acalanto.

Que bom cantar... toda canção tem o poder
De me fazer amar o tempo em que a poesia
Sempre se alia à energia de viver
E compreender o meu amor com alegria.

Minto e desminto minha dor mais escondida
E enquanto há vida num canto da solidão,
A pulsação do meu amor sempre revida,
Quando, atrevida, a dor convida-me à razão.

Desenvelheço ao zombar do meu espelho,
Quando um joelho me impede de levantar...
O meu olhar vê, nos meus olhos, o fedelho
Que eu sempre fui, vendo um espelho se quebrar.

Sorrir me leva ao que me enleva e me abençoa,
Minha alma voa, pois é preciso sonhar
E para amar é só criar um sonho à toa,
Pois é tão boa a sensação de não chorar.

Rejuvenesço, eu mereço este momento
De ver o vento expondo as pétalas no ar,
Pois toda vez que o vento cria outro rebento,
Eu polinizo um novo tempo em meu olhar.
= = = = = = = = =  

Soneto de 
JOSÉ MARIA GOULART DE ANDRADE 
Maceió/AL, 1881 – 1936, Rio de Janeiro/RJ

Soneto

Nave de catedral esta alma: — Nela
Outrora silenciosa, ressuscito
Por ti, a adoração de estranho mito...
E o hinário soa, o incenso se enovela!

Enche-a toda de clarões aquela
Macia luz que nos teus olhos fito,
Quando me vês, em teu altar, contrito,
Queimando o coração que se desvela...

Novo surto de vida ora me invade,
E esta alma, quase fria, quase morta,
Vibra de novo em comoção fecunda!

Tão penetrado estou nesta verdade,
Como o silêncio quando um grito o corta,
E a escuridade quando a luz a inunda!
= = = = = = = = =  

Trova Popular

Triste sou, triste me vejo     
sem a tua companhia;       
tão triste, que nem me lembro
se alegre fui algum dia.  
= = = = = = = = =  

Poema de
APARECIDO RAIMUNDO DE SOUZA
Vila Velha / ES

Prelúdio 5

O céu, a terra, o mar,
tornaram-se-me
tão incomuns;
tão pequeninos;
tão sem destinos,
como se tivessem perdido a cor.

Foi depois que vi
e senti,
a luz dos meus olhos
grudada nos olhos
do teu amor!...
= = = = = = = = =  

Poema de
CRIS ANVAGO
Lisboa/ Portugal

O teu encanto

Tudo em ti é beleza
mesmo nas horas de tristeza
és um ser simples e natural
Fazes tudo com paixão
Tens uma força visceral
que me arranca o coração
Já não és só poema és canção!

Deslumbras quem te conhece e,
sem saberes, até parece que és tu
que todos queres conhecer

Tens ímã no sorriso
e a luz nos teus olhos
são botões de rosa
que espalhas aos molhos
pelos que por ti passam
nem tens noção do bem que fazes
e, quando te elogiam
ficas sem saber qual a razão

Quando falas, as tuas palavras
são gotas de água fresca
que caem em cascata
refrescam a mente mais sombria

Tu nunca és noite és sempre dia

Sempre motivas quem se cruza contigo
És conselho sem saber e abrigo
= = = = = = = = =

Soneto Livre de
JOSÉ FELDMAN
Floresta/PR

Saudade (1)
 
Na sombra do passado, a saudade, 
vagueia como um sonho que não vem, 
percorre em cada canto, a verdade 
de amores que se foram, um desdém. 

Nos olhos, a memória faz-se mar, 
um vasto horizonte que não cede, 
e em cada onda, um suspiro a pesar, 
na areia da lembrança que se mede. 

Mas há beleza na dor que se sente, 
um doce amargo que nos traz calor, 
na saudade, o amor é presente, 

transforma a dor em eterna flor. 
E mesmo na tristeza, é envolvente, 
pois sempre se recorda um grande amor.
= = = = = = = = =  

Trova de
FERNANDO PESSOA
Lisboa/Portugal, 1888 – 1935

Cantigas de portugueses
são como barcos no mar —
Vão de uma alma para outra
com riscos de naufragar.
= = = = = = = = = 

Soneto de 
AMILTON MACIEL MONTEIRO
São José dos Campos/SP

Areias

Areias do meu tempo de criança
é mais do que saudade... é só doçura...,
é algo que me alegra com lembrança
que não se apaga mais, nem desfigura!

Os casarões por toda a vizinhança,
recordavam os tempos de fartura...
Seu povo, apesar da vida mansa,
sonhava com evolução futura...

E foi assim, que após setenta anos
de a ter deixado, com meus desenganos,
fui revê-la e... qual minha surpresa!

Enquanto fiquei velho e já alquebrado...
Areias remoçou por todo lado
e está quase vibrante. E uma beleza!
= = = = = = = = =  

Poema de
ANTONIO JURACI SIQUEIRA
Belém/PA

Nado Interior

No espelho do poema
eu me reflito
metáfora de mim:
anjo & demônio

Diante do poema
eu me desnudo:
retrato em preto & branco
do que sou

No ventre do poema
eu me traduzo
diluído em palavra:
imagem & som

No escuro do poema
eu me procuro
e encontro sempre alguém
que jamais fui

Nos braços do poema
eu desfaleço
e acordo renovado:
seiva & flor.
= = = = = = = = =  

Trova Funerária Cigana

Como as aves que vagueiam
no seio da noite escura,
assim serão meus suspiros
sobre a tua sepultura.
= = = = = = = = =  

Soneto de 
EZEQUIAS DA ROCHA
Major Izidoro/ AL

O elogio de nós três 

Eu sou tu. Tu és eu. Nós dois, portanto,
somos, seremos uma só pessoa,
de forma que, quando algo te magoa
meu coração magoa-se outro tanto.

Se está cheia de um céu tua alma boa,
que ri se rio, ou chora com o meu pranto,
a vida é para mim um doce encanto,'
- um paraíso o peito me povoa.

E todas essas coisas que sentimos,
nosso Fernando, em quem nos confundimos,
sente-as , mais do que nós, logo depois;

é que o nosso bom filho, sem defeito,
perfeito como tu, como eu, perfeito,
é a soma certa, exata, de nós dois.
= = = = = = = = =  

Poema de 
SONINHA PORTO
(Sônia Maria Ferraresi)
Cruz Alta/RS

Redesenhos

Deitada na fina malha
que aquece o corpo
redesenho a noite e você
marcados por carícias revoltas
envoltos no fogo do desejo

são apenas suaves lembranças
que me invadem e padeço
porque a elas falta o ardor
falta olhos para perceber.
= = = = = = = = =  

Soneto de
FRANCISCO NEVES DE MACEDO
Natal/RN, 1948 – 2012

…E o amor se fez soneto

Sono esquecido, a acolho, nos meus braços,
ouço o teu respirar, lindo, ofegante,
nos seus carinhos, mil beijos e amassos,
instante lindo, não mais que um instante!

Tomo-te, assim, vasculho teus espaços,
orgasmos loucos, sonhos fascinantes!
Por tudo que fizemos, os cansaços,
se fazem adrenalina nos amantes.

Respiração… A voz que enleva a gente,
agora se faz terna, mas, ardente.
Voz que em louco prazer se faz dueto.

Onde estiver, é certo estar presente,
cada suspiro, que trará na mente,
este momento, que se fez soneto!
= = = = = = = = =  

Soneto de
DARLY O. BARROS
São Francisco do Sul/SC, 1941 - 2021, São Paulo/SP

Estrela cadente

O palco é o céu que a vista descortina
em seu passeio, quando, de repente,
depara-se com bela bailarina,
a deslizar, esguia, reluzente…

A lua, por um palmo de cortina,
também a espia e então, infelizmente,
desaparece a etérea peregrina
que já não baila mais, à minha frente…

Para onde foi? Que fim levou a estrela?
indago de mim mesmo, sem revê-la,
frustrado e, além de tudo, arrependido

por não lhe ter de todo deslumbrado
com ela e a perfeição do seu bailado
feito, naquele instante, o meu pedido…
= = = = = = = = =  

Hino de 
Ibititá/BA

Salve Ibititá, terra querida
Do tupi é teu nome derivado
Amada, abençoada toda vida
Suspenso num rochedo empolgado

Avante, Ibititá, para o progresso
Que o seu sucesso medra o teu vigor
Que o grande arquiteto do Universo
A ilumine, oh Nosso Senhor

Brava gente de sangue forte
Benquista terra, amado torrão
Tu és linda do sul ao norte
Extensa plaga, belo rincão

Salve, Ibititá, salve bandeira
Içada num mastro em apogeu
Tremulando alegre e altaneira
Acenando para o filho teu

Rochedo é o teu nome primitivo
Nenhum cativo aqui jamais passou
Liberdade e amor é o lenitivo
De um povo que na paz te consagrou

Unidos, festejemos sua história
Coesos, marchemos fielmente
Com um grito clamando em sua glória
Viva sempre, sempre alegremente.
= = = = = = = = =  

Poema de 
ALCI SANTOS VIVAS AMADO
Mimoso do Sul/ES

Será que sou trovador?

Será que sou trovador?
Se papel e lápis na mão
eu na hora da inspiração
não anotar, fica no peito uma dor.

E se anotar... dias depois
O delinear encontrar…
Fico em dúvida ao repor:
Será eu, dessa trova o autor?
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Fábula em Versos de
JEAN DE LA FONTAINE
Château-Thierry/França, 1621 – 1695, Paris/França

A andorinha e a filomela*

Progne, a andorinha singela,
Foi ter, deixando a cidade,
A um bosque onde habitava a Filomela.
«Irmã, diz Progne, estimo vê-la bem.
Há mil anos talvez, oh! que saudade!

Desde a Trácia, que não a vê ninguém.
Pensa acaso em ficar
Neste ermo triste? — Ah! onde o encontrar
Mais grato? — Pois o encanto
Do teu divino canto
Vais consagrá-lo aos brutos animais
Ou aos rudes campónios? Ermos tais
Não são para talentos como o teu.
Volta para a cidade,
Onde luzem tuas graças imortais.
Além de que, desse feroz Tereu,
Que num ermo violou tua beldade,
Não vem este ermo a afronta recordar-te?

— Oh! não! — a Filomela respondeu.
Não! é a lembrança dessa injúria acerba
O que me impede, irmã, de acompanhar-te...
A presença dos homens a exacerba!»
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* Filomela = nome poético do rouxinol.
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Hans Christian Andersen (A menina que pisou no pão)

Era uma vez uma menina pobre, mas de natureza rebelde, que revelou más inclinações desde muito cedo. Quando pequenina, seu maior prazer era apanhar moscas e arrancar-lhes as asas, para vê-las depois andar se arrastando. Apanhava besouros e grilos e espetava-os em um alfinete; punha depois uma folha de livro, ou qualquer pedaço de papel bem próximo dele, para que pudessem segurá-lo com as patinhas - só pelo prazer de vê-los agitarem-se e torcerem-se, na ânsia de se libertar do alfinete.

   - O besouro está lendo - dizia a pequena Inger. - Vejam como ele vira a página!

   E, ao passo que ia crescendo, tornava-se cada vez pior. Era muito bonita, mas foi isso a sua infelicidade, sem dúvida.

   - Será preciso um rude golpe para te fazer curvar a cabeça. - dizia a mãe. - Quando eras menor, muitas vezes pisoteaste meu avental; receio muito que, quando fores grande, me pisoteies o coração!

    E assim aconteceu.

   Inger teve de ir para o campo, para servir em casa de uma família rica. Tratavam-na como se fosse filha e vestiam-na muito bem. Ia ficando cada vez mais bonita, mas o seu caráter não melhorava.

   Um ano após estar lá, disseram-lhe os patrões:

   - Deves ir visitar teus pais, Inger!

    Ela foi, mas apenas com a intenção de se mostrar, para que vissem como andava bem vestida. Ao chegar aos portões da cidade, viu alguns moços e moças que conversavam à beira do lago, e, sentada entre eles, sua mãe, com um feixe de lenha ao ombro.

   Inger deu a volta. Sentiu-se envergonhada de ter por mãe - ela, tão fina! - aquela velha esfarrapada, que juntava lenha no mato. Não ficou nem de leve compadecida; ao contrário, sentia-se irritada com aquilo.

   Passou-se mais meio ano, e sua ama disse-lhe:

  - Inger, é preciso que vás visitar teus pais. Leva-lhes este pão de trigo. Hão de ficar bem contentes de te ver.

  Inger vestiu suas melhores roupas e calçou os sapatos mais finos que tinha. Ergueu as saias e caminhava com muito cuidado para não sujar os sapatos. Certamente não merece censura por isso; mas quando chegou àquele ponto em que o caminho atravessa o brejo, e viu que estava todo cheio de lama, atirou no barro o pão que trazia, para passar por cima dele sem sujar os sapatos. Quando estava assim, com um pé sobre o pão e o outro erguido para dar mais um passo, o pão afundou-se e foi se enterrando cada vez mais, até que desapareceu, levando-a consigo. E nada mais se viu ali a não ser o charco negro e cheio de bolhas.

   Mas a menina? Que foi feito dela?  Inger foi dar onde estava a mulher do Brejo, que tem uma cervejaria lá embaixo. A mulher do Brejo é irmã do rei dos Duendes e tia das Bruxas, que são muito conhecidas. Muita gente tem escrito versos a respeito delas; outros pintaram os seus retratos; mas só o que sabemos a respeito da mulher do Brejo é que, quando o nevoeiro se ergue nos campos, no verão, é que ela está fabricando sua cerveja. E foi nessa cervejaria que Inger caiu; mas lá ninguém pode permanecer muito tempo. Um carro de lixeiro é coisa suave, comparado com a cervejaria da mulher do Brejo. O cheiro dos barris é o quanto basta para deixar uma pessoa doente, e estão tão juntos que não se pode passar entre eles; além disso, onde há por acaso alguma frestinha, está cheia de sapos asquerosos e cobras viscosas. E foi entre todas estas horrendas imundícies vivas que caiu a pequena Inger. O frio era tão intenso que ela tremia e já sentia os membros rígidos. O pão aderiu firmemente aos seus pés e levou-a para baixo.

   A mulher do brejo estava em casa. O velho Trasgo e seu bisavô encontravam-se lá de visita. A bisavó é uma mulher venenosa e nunca está ociosa. Nunca sai sem levar o seu trabalho, e tinha-o à mão naquele dia. Estava ocupada em fabricar couro andejo para pôr nos sapatos das pessoas, de modo que quem os usasse não podia ter descanso. Bordava mentiras e juntava todas as palavras inúteis que caíam no chão, para fazer dano com elas. Sim! A velha bisavó pode fazer tricôs e bordados muito finos!

   Assim que avistou Inger, pôs os óculos e olhou-a de alto a baixo, dizendo logo:

  - Esta menina me interessa! Gostaria de levá-la como lembrança da minha visita. Daria uma boa estátua para o corredor exterior da casa do meu bisneto.

Desse modo, Inger foi à Terra dos Trasgos. Nem sempre as pessoas vão lá por esse caminho direto, visto que é fácil ir por caminhos mais extensos.

      Era um corredor que nunca se acabava: dava vertigem olhar para diante ou para trás. Lá estava uma multidão ignominiosa, à espera de que se abrisse a porta da misericórdia; mas muito tinham que esperar! Grandes e gordas aranhas agitavam-se, tecendo teias de mil anos ao redor de seus pés: e aquelas teias pareciam parafusos, que a prendiam fortemente, como se estivessem amarradas com correntes de cobre. Além disso, todas as almas padeciam um eterno desassossego; um tormento perpétuo. O infeliz que tinha esquecido a chave do seu cofre sabia que a deixara na fechadura. Mas seria um nunca acabar, se eu quisesse enumerar todas as torturas daquele lugar. Inger sofria o tormento de parar em pé como uma estátua, com um pão colado aos pés.

  - Foi o que ganhei, por querer conservar os sapatos limpos! - dizia ela consigo. - Vejam como eles olham para mim!

   Era verdade que todos olhavam para ela, e todas as suas más paixões brotavam dos olhos, falando sem que os lábios se abrissem em palavras. Era uma visão terrível!

    - Deve dar grande prazer olhar para mim! - pensava Inger. - Tenho um rosto lindo e belas roupas.

    Voltou então os olhos para se ver; o pescoço também estava rígido. Mas, oh! Como se sujasse na cervejaria da esposa do Brejo! Nunca se lembrará de semelhante coisa... A roupa estava coberta de lama viscosa; uma cobra se lhe enroscara no cabelo e caía-lhe pelas costas. De cada prega do vestido espiava um sapo, coaxando sem parar. Era horrível! Mas sentia consolo, pensando:

    - Todos os outros que se encontraram aqui embaixo estão tão medonhos como eu!

     Mas o pior era a fome devoradora que sentia; e não podia abaixar-se para tirar um pedaço do pão que tinha nos pés. Não; não podia; mãos e braços haviam endurecido, e todo o seu corpo era como um pilar de pedra. Só podia mover os olhos, mas isso, sim! Podia movê-los em redor e olhar para trás. E que medonha visão aquela! Vieram as moscas, que lhe andavam por cima dos olhos, e por mais que ela pestanejasse, não iam embora; não, as moscas não podiam sair, porque ela lhes tinha arrancado as asas, virando-as em insetos rastejantes.

Era um grande suplício da fome que a devorara por dentro; parecia-lhe que já estava completamente vazia.

   - Se isto durar muito, eu não poderei suportar - pensou Inger.

   Mas aquilo continuou, ela teve de suportar.

   Foi então que uma lágrima escaldante lhe caiu sobre a fronte, e foi escorrendo pela face e pelo peito abaixo, até cair sobre o pão; e depois outra, e mais outra, e aquilo já parecia uma chuva.

   Mas quem estaria chorando pela pequena Inger? Pois ela não tinha uma mãe na terra? As lágrimas de tristeza que uma mãe chora pelo seu filho sempre o alcançam; contudo, não lhe trazem alívio; elas queimam e tornam o tormento cinquenta vezes pior. E a fome terrível de novo a assaltou, e ela sem poder apanhar o pão que tinha nos pés! Afinal, experimentou uma sensação estranha: parecia-lhe que estava a se comer a si própria, e que já nada mais era senão um caniço oco, que conduz todos os sons. Ouvia distintamente tudo o que se dizia na terra a seu respeito, e tudo o que ouvia eram palavras duras.

   Sua mãe, é certo, chorava triste e amargurada, mas dizia:

   - O orgulho sempre precede a queda! Foi a tua infelicidade, Inger! Como magoaste tua mãe!

   Não só sua mãe, mas todos na terra sabiam o que ela havia feito; sabiam que tinha pisado no pão e que submergira no paul. Souberam pelo pastor, que tinha visto tudo de cima do montículo onde se achava.

  - Como afligiste tua mãe, Inger! - dizia a pobre mulher. - Mas eu bem te avisava!

   - Antes eu nunca tivesse nascido! - pensava Inger. - Seria muito melhor para mim. As lágrimas de minha mãe não me servem de nada agora!

Ouviu também seus antigos patrões, pessoas tão boas, que tinham sido para ela o mesmo que pais, falando a seu respeito:

   - Era uma menina pecadora. Não dava valor aos dons de Deus e pisava-os aos pés. Será difícil para ela abrir a porta da misericórdia!

   Mas Inger pensava lá embaixo;

  - Deviam ter-me educado melhor! Deviam ter dominado a minha soberba, se eu a tinha.

   Ouviu também uma canção que escreveram, que era cantada por toda parte:
                 
" Menina tão arrogante.
Que caminhou sobre um pão
Para não sujar os sapatos!"

- E terei de ouvir sempre esta velha história, e sofrer com isso! - pensava ela. - Mas os outros também deviam ser punidos pelos seus pecados. Haveria muito o que castigar! Oh! Como sofro!

E seu coração se endurecia ainda mais que a casca de fora.

Ninguém poderá melhorar nada nesta companhia em que estou!  E eu não quero mesmo ficar melhor... Oh! Agora estão todos olhando para mim!

E Inge tinha o coração cheio de ódio e má vontade para com todos.

- Agora terão assunto para conversar lá em cima! Que tortura!

Ouvia as pessoas contarem sua história às crianças; e estas diziam sempre:

- Malvada Inger! Era tão perversa que teve de sofrer tormentos!

E só ouvia da boca das crianças palavras duras.

Mas um dia, quando sentia o ódio e a fome a lhe roerem a casca vazia, ouviu o seu nome; alguém contava a sua história a uma criancinha inocente, uma meninazinha, e a criança rompeu a chorar, ouvindo a história da orgulhosa e vaidosa Inger. E perguntou:

- Ela nunca subirá para a terra outra vez?

- Ela nunca tornará a subir para a terra. - disse a outra voz.

- Mas e se ela pedir perdão e prometer não tornar a fazer isso? - perguntou a criança.

- Ela não pedirá perdão. - disseram-lhe.

- Mas eu queria que ela pedisse! - insistiu a criancinha, que não aceitava explicações. - Eu dou a casa da minha boneca para ela subir outra vez... É horrível o que aconteceu com a pobre da Inger!

Aquelas palavras chegaram ao coração de Inger, e parece que lhe fizeram bem. Era a primeira vez que alguém dizia: " Pobre da Inger!" sem acrescentar alguma coisa a respeito das suas más ações. Uma criancinha inocente chorava e orava por ela, e aquilo lhe causava uma sensação estranha: desejaria chorar também, mas seus olhos não podiam derramar uma só lágrima, e isso ainda lhe aumentava o tormento.

Assim como os anos iam passando em cima, foram também correndo lá embaixo, sem que coisa alguma se modificasse: Inger já não ouvia falar tanto de si. Mas um dia percebeu um suspiro:

- Inger, Inger, quanto desgosto me causaste! Eu bem sabia que havia de ser assim!

Era sua mãe que estava moribunda.

Ouviu também o seu nome repetido pelos seus antigos patrões, e as palavras menos cruéis que sua ama disse foram estas:

- Chegarei a ver-te outra vez, Inger? A gente nunca sabe para onde irá!

Mas Inger sabia bem que sua ama, tão boa, tão virtuosa, jamais iria ter o lugar onde ela estava.

Passou-se um novo e longo período cheio de amargura. Inger tornou a ouvir o seu nome e viu acima da sua cabeça duas coisas que pareciam duas estrelas cintilantes; eram de fato dois olhos que se fechavam na terra, tantos anos se passaram depois que aquela criança tinha chorado tão sentidamente ao ouvir a história da "pobre Inger", que ela era agora uma anciã, a quem o senhor chamava para ao Seu lado. No último momento, quando a vida inteira da criatura lhe volta à memória, ela se lembrou das lágrimas que derramara por causa de Inger. E a impressão era tão clara na hora da morte, que a velhinha exclamou em voz alta:

- Senhor! Oxalá eu não tenha jamais, como Inger, calçados aos pés, sem o saber, teus dons abençoados. Oxalá também eu não tenha jamais nutrido orgulho no coração. Não me abandones agora na minha última hora!

Fecharam-se os olhos da velha dama, e os olhos de sua alma se abriram para ver as coisas ocultas; e como Inger tinha estado tão nitidamente presente nos seus últimos pensamentos, via agora quão profunda fora a queda da menina. E, àquela vista, desatou a chorar. E ficou, feito uma criança, chorando pela pobre Inger, no reino dos Céus. Suas lágrimas e suas preces ecoaram na casca oca e vazia que encerrava a alma prisioneira e torturada, agora completamente vencida por todo aquele amor vindo de cima. 

Um anjo de Deus, chorando por ela! Por que lhe era feita esta concessão? A alma torturada lembrava-se de cada ação terrena que praticara, e afinal desatou a chorar, e Inger chorou, como jamais fizera. Sentia-se agora cheia de tristeza pelos seus atos; chorou como se a grande porta de misericórdia nunca pudesse abrir-se para ela. Mas quando reconheceu isso em humildade e contrição, um raio de luz brilhou no abismo em que caíra. 

O poder daquele raio de luz era muito maior do que o da luz do sol que derrete o homem de neve feito pelos meninos no jardim; e mais depressa, muito mais depressa do que se derrete um floco de neve dos lábios quentes de uma criança, dissolveu-se diante dele a forma petrificada de Inger, e um passarinho voou com a rapidez do relâmpago para o mundo de cima. Estava muito assustado e tinha medo de tudo. Sentia-se vexado; receava encontrar o olhar de qualquer ser vivente; e procurou mais que depressa abrigar-se em uma fenda da parede. Naquele esconderijo, encolheu-se todo, tremendo da cabeça aos pés; não podia articular som algum, porque não tinha voz. E ali ficou muito tempo, antes que pudesse olhar com calma as coisas admiráveis que o cercavam. 

Sim, eram na verdade admiráveis! O ar era tão suave e tão fresco, a lua brilhava com tanto fulgor, as árvores e arbustos exalavam tanto perfume! E, além de tudo isso, já tão agradável, ainda suas penas estavam limpas, tão brilhantes! Como toda a criação falava de amor e de beleza! O passarinho bem desejaria cantar alegremente, exprimindo todos os sentimentos que lhe brotavam no peito; entretanto, não lhe era possível cantar. Teria gorjeado com a maior alegria, como os cucos e os rouxinóis fazem no verão. 

O bom Deus, que ouve até os mudos hinos de louvor de um verme, compreendia também aquele cântico de gratidão que tremia no peito do passarinho, da mesma maneira que os salmos de David ecoavam no seu coração antes que tomassem forma em palavras e melodia. Aqueles pensamentos e aqueles cânticos sem voz foram crescendo e foram aumentando durante semanas; deviam expandir-se, e à primeira tentativa para praticar uma boa ação, achariam a saída.

Era o tempo da Festa de Natal. Os camponeses ergueram um mastro contra um muro e amarraram um feixe de aveia na ponta, para que os passarinhos pudessem ter um bom repasto naquele dia feliz.

O sol surgiu brilhante e iluminou o molho de aveia, e os passarinhos cercaram o mastro, pipilando. Foi então que daquela fresta da parede veio um pio fraquinho; os sentimentos sempre em aumento do passarinho tinham achado uma voz, e aquele débil pipilar era o seu hino de louvor. Tinha despertado nele o pensamento de uma boa ação, e o passarinho voou, abandonando seu esconderijo; no Reino dos Céus, era ele bem conhecido.

O inverno corria áspero e toda a água estava coberta por uma camada de gelo. Era com grande dificuldade que as aves e os outros animais encontravam alimento. O passarinho voava à beira da estrada, encontrava de vez em quando um grão de trigo nos sulcos dos trenós. Achava também alguns farelos de pão perto das hospedarias, mas comia apenas uma migalha, pois queria deixar bastante alimento para os outros passarinhos que ali aparecessem. Voou então para as cidades e espiava nas cercanias. Onde quer que alguma mão carinhosa tivesse espalhado migalhas de pão para os passarinhos, ele comia apenas uma só e deixava o restante.

No decorrer do inverno, o passarinho tinha assim renunciado, em favor dos outros, tantas migalhas de pão que elas já igualavam em peso aquele pão inteiro que a pequena Inger calçara aos pés, para não sujar os sapatos. Então as asas cinzentas do passarinho ficaram brancas e foram se distendendo, e as crianças que viram aquela ave branca disseram:

- Lá anda uma gaivota, voando sobre o mar.

A ave ora mergulhava nas águas, ora voava e remontava muito alto. E, contra a intensa luz que brilhava no espaço, não foi possível ver que fim levou.

As crianças afirmaram que ela entrou no sol.
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Hans Christian Andersen foi um escritor dinamarquês, autor de famosos contos infantis. Nasceu em Odense/Dinamarca, em 1805. Era filho de um humilde sapateiro gravemente doente morrendo quando tinha 11 anos. Quando sua mãe se casou novamente, Hans se sentiu abandonado. Sabia ler e escrever e começou a criar histórias curtas e pequenas peças teatrais. Com uma carta de recomendação e algumas moedas, seguiu para Copenhague disposto a fazer carreira no teatro. Durante seis anos, Hans Christian Andersen frequentou a Escola de Slagelse com uma bolsa de estudos. Com 22 anos terminou os estudos. Para sair de uma crise financeira escreveu algumas histórias infantis baseadas no folclore dinamarquês. Pela primeira vez os contos fizeram sucesso. Conseguiu publicar dois livros. Em 1833, estando na Itália, escreveu “O Improvisador”, seu primeiro romance de sucesso. Entre os anos de 1835 e 1842, o escritor publicou seis volumes de contos infantis. Suas primeiras quatro histórias foram publicadas em "Contos de Fadas e Histórias (1835). Em suas histórias buscava sempre passar os padrões de comportamento que deveriam ser seguidos pela sociedade. O comportamento autobiográfico apresenta-se em muitas de suas histórias, como em “O Patinho Feio” e “O Soldadinho de Chumbo”, embora todas sejam sobre problemas humanos universais. Até 1872, Andersen havia escrito um total de 168 contos infantis e conquistou imensa fama. Hans Christian Andersen mostrava muitas vezes o confronto entre o forte e o fraco, o bonito e o feio etc. A história da infância triste do "Patinho Feio" foi o seu tema mais famoso - e talvez o mais bonito - dos contos criados pelo escritor. Um dos livros de grande sucesso de Hans Christian Andersen foi a "Pequena Sereia", uma estátua da pequena sereia de Andersen, esculpida em 1913 e colocada junto ao porto de Copenhague/ Dinamarca, é hoje o símbolo da cidade. Quando regressou ao seu país, com 70 anos de idade, Andersen estava carregado de glórias e sua chegada foi festejada por toda a Dinamarca. Após uma vida de luta contra a solidão, Andersen logo se viu cercado de amigos. Faleceu em Copenhague, Dinamarca, em 1865. Devido a importância de Andersen para a literatura infantil, o dia 2 de abril - data de seu nascimento - é comemorado o Dia Internacional do Livro Infanto-juvenil. Muitas das obras de Andersen foram adaptadas para a TV e para o cinema.
Fontes:
Hans Christian Andersen. Contos. Publicados originalmente em 1859. Disponível em Domínio Público
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