George Dawson tinha 98 anos quando aprendeu a ler. E tinha 102 quando, em maio deste ano, publicou seu primeiro livro. Dawson é descendente de escravos do Texas, e sem Ter lido nada antes, sem Ter qualquer bagagem literária, escreveu a história da sua vida nos anos 20 e 30. Escreveu, sem que nenhum livro lhe ensinasse a fazê-lo, a história mis complexa que existe, a de uma vida humana.
Li sobre a façanha de Dawson no jornal e me perguntei: o ele teria escrito se tivesse começado a ler na infância? E também me perguntei: tivesse sido leitor contumaz desde menino, teria igualmente se tornado escritor?
É provável que não. A leitura não nos conduz fatalmente à escrita- o que, convenhamos, é ótimo, porque ninguém agüentaria tantos escritores -. A leitura, como uma agência de publicidade, desdobra à nossa frente “depliants” de mundo maravilhosos, e nos conclama, e os estimula, e deserta nossos desejos. As possibilidades de escolhas se multiplicam. Vocações que sem ela dormitariam, para sempre ignoradas, despertam. E partimos, graças às asas da literatura, para as mais diversas profissões. Às vezes, até para a de escritor.
Eu não me tornei escritora porque era leitora. Eu me tornei escritora porque comecei a escrever.
A leitura, que habitou minha vida desde cedo quando consigo lembrar, não medisse, vai Marina ser isso ou aquilo. Mas a pessoa que eu era aos 15 anos, barro cozido e assado por tantas pequena chama literárias, queria ser pintora.
E pintora fui, durante bons anos. Dedicada, apaixonada, feliz com meu fazer, segura da minha escolha. Até que cheguei aos 23. Continuava achando que tinha uma vocação e estava até me dando bem na vida com ela. Mas decidi que precisava ganhar dinheiro. E fui trabalhar em jornal.
Não seria questão de abandonar a vocação. Tratava-se de abrir uma porta, deixado a pintura pendurada atrás dela, à espera.
Entrei na redação levando apenas uma bolsa pendurada no ombro, e óculos guardados na bolsa. Uma ‘foca”, sem bola no nariz. Um jovem principiante que havia feito um curso acelerado de datilografia para não passar vexame de catar milho. Assim me apresentei, e assim me viram. Eu não ouvi, nem meus colegas, mas depois que soube comigo haviam entrado o menino Tom e o índio que o perseguia, os acordes do órgão do Capitão Nemo, o silêncio na cabeça de Ulisses enquanto via as sereias cantarem, os rebanhos de carneiros descendo em transumância na Provença de Giono, o vento nas pás do moinho de Quixote, uma galinha perseguida num Domingo pela mão de Clarice, uma pedra no meio do caminho, uma “madeleine' , um gato de botas.
Comecei a escrever porque puseram uma Olivetti na minha frente, um monte de papel, e me mandaram fazer a matéria. Isso ainda não era escrever, evidentemente. Mas empoleirados no alto das divisórias de vidro lateado daquela redação, Pinocchio, Raskolnikov, Ricardo Coração de Leão, Gregório Samsa, D'Artagnan e Mr Gatsby esfregaram as mãos. Estava na hora de começarem a empurrar.
E assim fez-se, ou abriu-se, em mim outra vocação.
Como para George Dawson, também me pergunto: eu teria sido escritora se não tivesse sido leitora? Mas é uma pergunta que não procede porque equivale a por em questão toda uma vida. Então seria que perguntar: eu teria sido escritora se não tivesse saído da África onde nasci? E se não tivesse saído da Itália, onde me criei, e não tivesse vindo para o Brasil, onde comecei a escrever? É quase como perguntar, sabendo de antemão que não encontrarei resposta: que escritora teria sido eu se não tivesse sido leitora?
A leitura me ensinou, antes de mais nada, a gostar de papale, a amar papel escrito, a perseguir tipologias. Ne ensinou a precisar da presença física dos lvros. Não fosse isso, e a viade escritora seria uma condenação, com oslivros que se multiplicam incessantemente, enchendo a casa, empilhando-se sobre as mesas, as cadeiras, o chão, e os papéis, os papéis que contrariamente ao que se alardeou no início da era da informática não desapareceram mas parecem cada ida mais abundantes.
A leitura me ensinou a viver com a leitura. Me viciou em leitura, me fez procurar a vida nos livros com a mesma intensidade com que a procurava fora deles.
Se eu não tivesse sido leitora precisaria de um talento infinitamente maior, para escrever. Não tendo afiado o ouvido às palavras, que trabalhoso seria apertar sozinha, uma por uma, todas as cravelhas.
Mas as palavras escritas- que não são as mesmas palavras da fala, embora irmãs, porque criadas para andarem juntas naquela exata ordem e não em outra, já eu ó naquela ordem o valor de uma contamina a outra- as palavras escritas, eu dizia, infiltraram-se em mim junto com os outros aprendizados, quando eu ainda não sabia ler. Minha mãe lia para mim. E a música da voz da minha mãe fundia-se com a música das palavras que ela lia.
Talvez justamente isso, o fato da minha ler em vez de contar, tenha marcado a minha escrita. Pois nunca me senti levada a escrever de forma oralizante; pelo contrário, o inusitado que mantendo o texto perfeitamente compreensível e familar confere um frescor de coisa nova e uma intonação poética, sempre foi a minha busca. O texto não é para mim ferramenta para contar uma história. Mais justo seria dizer que a história é pretexto para construir o texto.
Hoje leio como se fizesse trialto. Acordo e perco no mínimo um hora lendo os jornais. Depois vou para o escritório e começo a ler o material de trabalho. Na hora do almoço, se estiver sozinha, encosto um livro no copo cheio d'água, que não bebo para não perder o suporte. E dia afora vou lendo e escrevendo. Ma sou atleta indisciplinada, capaz de perder um tempo enorme com leituras inúteis, deixar cada mínima consulta de pesquisa alongar-se indefinidamente porque não consigo me ater somente ao que procurava, e gastar em leituras menores o tempo que deveria reservar para ler ou reler os clássicos. E, o que é pior, tenho a impressão- prefiro não dizer a certeza- de esqueço a maioria do que leio.
Quando menina, e mesmo depois quando jovem, lia como se descesse as corredeiras num bote. Deixava-me levar, jogada de um lado a outro pela narrativa, transportada, na espera ansiosa da cachoeira que a qualquer momento despencaria comigo assombrando meu coração.
Eu usava lápis, jamais teria ousado riscar um livro, por meu que fosse. E por isso, não pela sacralidade do livro, mas porque não me passava pela cabeça eu me fosse permitido, que me fosse devido interagir diretamente junto ao texto- a palavra interagir sequer se usava-. A idéia de que a minha opinião pudesse Ter lugar, e valor, ao lado daquilo que que havia sido escrito pelo autor não me aflorava.
Quando passei a usar o lápis, tornei-me outra leitora. Ou melhor, quando me tornei outra leitora, passei a usar o lápis. Não desço mais, entregue, nas corredeiras. Sou seu vigilante. Analiso a força das águas, sua direção, a profundidade. Meço a transparência, procuro o que nela se move. Vou sim com ela, e me encanto, e me deixo molhar pelas espumas. Mas a qualquer remanso indevido, a qualquer turvação, minhas orelhas se erguem atenta, meu lápis se apoia na margem. Anoto, controlo. Por um instante não estou sendo levada, botei um pé para fora do bote.
Tornei-me interlocutora do autor. As margens às vezes são estreitas demais para as conversas que tenho com ele. E me acontece fazer uma crítica, ir a diante, ver que a crítica não se justifica, voltar atrás apagar o que eu havia anotado. Como se pedisse desculpas ao autor pela falta de confiança. Não estou mais lendo sozinha como lia. estou lendo por cima do ombro dele.
A leitura atravessou minha juventude em blocos. Como se um trem me varasse a cada vez com seus vagões. Eram comboios de paixão. Um autor entreva na minha vida, eu me enamorava e, depois do outro , ia lendo todos os seus livros.
Foi assim desde menina. Bem pequena ainda, devorei Salgari inteiro e imitando suas histórias brinquei de pirata e de índio americano, Sole Ridente era o meu nome na tribo. Lá pelos onze anos me banqueteei com Verne. Depois fui indo. que furacão na minha alma quando encontrei Dostoievski! Eu ansiava o dia inteiro pelos momentos que iria encontrar com ele. Foram meses e meses de neve, sofrimento e nomes cheios de vogais. Depois os americanos; a sedução daquele trem que parecia interminável, os vagões de Hemingway, dos Passos, Steinbeck trazendo-me um mundo novo, seco de frases curtas, um mundo sem volutas, especialmente revelador para mim, italiana encharcada e barroco. Amei Giono, ocupei com ele toda a prateleira da estante. E pouco antes de esbarrar com a minha própria escrita, esbarrei com Proust. Foi um fecho glorioso para minhas leituras de juventude.
Mas também fui leviana, traindo meus grandes amores com amores passageiros, “ficando” com um livro ou outro, só pelo prazer de uma noite. Sim, cometi pecados de juventude, gostei de M. Dely, e acreditei que “To et Moi” de Paul Geraldy fosse bela poesia. Chorei com Ayn Rand. E li muito Mistério Magazine de Ellery Queen, embora o mesmo tempo economizasse dinheiro da mesada para comprar a revista “ Senhor” e ler os contos de Clarice.
Hoje os trens são mais raros , e não percorro todos os vagões. Se gosto de um autor, leio primeiro um livro, atravesso em diagonal um ou dois livros mais, para certificar-me e para Ter uma idéia de conjunto, dispenso os outros. Não tenho mais paixões. Tenho apreço, admiração. Leio, reconheço a qualidade, me entusiasmo. Mas entusiasmo não é a mesma coisa que paixão, entusiasmo é uma categoria profissional. A escrita roubou-me o arrebatamento da leitura.
Houve um tempo em que cada livro que me chegava era um Cavalo de Tróia, de cuja barriga sairiam, na solidão do meu quarto, invasores bem vindos. Depois aprendi a desventrar a barriga do cavalo ainda na livrara, de pé, percorrendo o índice e vendo o que continha. Já não levo nenhum mistério para o quarto, os habitantes do livro/cavalo são gentis convidados, quando não reféns que manterei comigo só quando me interessarem. Nenhum me invadirá.
E se ler escondido depois da hora de dormir, na clássica cena da lanterna acesa debaixo das cobertas, era duplo prazer, de leitura e transgressão, ler tornou-se com o tempo dupla culpa, pois me sinto culpada se, escrevendo, deixo de ler, tendo tantos livros à minha espera.
Com freqüência me perguntam quais as marcas dessas leituras na minha escrita. E eu própria me surpreendo com a sensação de que não existem, pelo menos não claramente identificáveis. Me parece impossível que se possa dizer olha a patinha de fulano ali, olha o focinho de fulana aqui. Pois eu não usei patas ou focinhos alheios para compor minha linguagem, embora os usasse para despertas a emoção que, mais tarde, viria a servir de base para a construção dessa linguagem.
Nunca quis escrever como alguém, por mais que gostasse da sua escrita. Talvez pensasse inconscientemente que não seria capaz, que aquilo não estava em mim.
Embora tivesse tantos romances e livros de aventura, nunca quis escrever nem uma coisa nem outra; meu desejo de escrita sempre esteve centrado na ourivesaria do texto curto.
E nenhum dos meus queridos realistas despertou em mim o desejo de imitá-los. Poe, que li menos que Verne, deixou em minha juventude uma marca mais funda, introduzindo-me no mundo fantástico. Um mundo que eu já havia freqüentado através os contos de fadas na voz de minha mãe. E que, adulta, reencontraria em Borges, em Cortazar, em Calvino, em Buzzati.
Pode parecer ingratidão, mas não tenho e nunca tive ídolo. À medida que avançava nas leituras e na profissão, porém, percebi que pertencia a uma família. Sou parente daqueles escritores que deram um passo além do real, e ali fundaram sua realidade. Sou irmã dos que reencontraram seu mundo somente no inconsciente, ou no papel impresso.
Fonte:
Simpósio Internacional Transdisciplinar de Leitura/ 2000. Leia Brasil
http://www.leiabrasil.org.br/old/simposio/escritor_lido.htm
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