sábado, 31 de março de 2012

Vera Lúcia de Souza Lima (Cartas: verdades tristonhas, mentiras risonhas)


Longe vai o tempo em que um moleque de recados, uma ama cúmplice ou um criado fiel se prestavam aos serviços de pombo-correio. Hoje, quando telefones e celulares sofisticados estão disponíveis para conversas, encontros e declarações ao pé do ouvido, a internet, um recurso tecnológico desprovido de romantismo e glamour, paradoxalmente, trouxe de volta o hábito requintado de escrever cartas.

Mas convenhamos, são as cartas tradicionais, dentro de envelopes, com destinatário, remetente e, de preferência manuscritas, que despertam maior fascínio.

Povoando canções, narrativas de ficção, filmes e peças teatrais, alimentam nosso imaginário tanto mais quanto maiores forem os indícios de que se trata de uma carta de amor ainda que ridícula, pois como afirma Fernando Pessoa “Todas as cartas de amor são ridículas”.

Do ponto de vista literário, as cartas, que pertencem ao gênero ensaístico foram batizadas pelos franceses com um nome especial: écriture intime, tendo sido acolhidas com grande entusiasmo pelas mulheres, as quais, confinadas aos espaços domésticos, adequaram-se com perfeição a esse estilo de escrita do eu, que lhes viabilizava a comunicação com o mundo exterior, sem exigir-lhes o apagamento das características pessoais, as marcas do seu mundo privado.

O tom menor, íntimo, descontraído, a liberdade de expor, de discutir sentimentos e idéias, a flexibilidade de poder deslizar de um assunto a outro, e, dessa forma, deixar fluir, consciente ou inconscientemente, comentários, sonhos, frustrações, desejos, passíveis de serem elaborados nos diálogos com o interlocutor ausente, atraíram para o gênero, cientistas, artistas, estadistas e intelectuais vários.

Assim, Freud, Jung, Van Gogh, Joaquim Nabuco, Hanna Arendt, Franz Kafka, Rainer Maria Rilke, Mário de Sá Carneiro, Mário de Andrade, Manuel Bandeira, Fernando Sabino, Clarice Lispector, Vinicius de Moraes, Caio Fernando Abreu entre outros, se encarregaram de construir com sua extensa correspondência, um vasto acervo epistolar.

Reunidas em livro, muitas vezes depois de um exaustivo trabalho de pesquisa, as cartas constituem uma literatura especialmente instigante. Nelas, os leitores buscam vislumbrar aspectos biográficos inusitados e a revelação, quem sabe, do lado mais humano de figuras de renome. Nelas, os leitores encontram depoimentos e retratos de uma época pontuada pelos diversos acontecimentos relatados.

Delas, os leitores extraem narratividade. Sim, porque as cartas na sua organização em seqüência contam histórias várias, entretecidas nas conversas entre emissores e destinatários, que a escrita dramatiza e pereniza.

Antigas cartas medievais, escritas em latim, encerram a tragédia do grande e sofrido amor de Abelardo e Heloísa, amor condenado à sublimação mística.

- “Como o Senhor é justo e misericordioso! A odiosa traição de teu tio me fez crescer na virtude, quando me privou desta parte do meu corpo, que era a sede de minha libertinagem e a fonte única dos meus desejos” declara Abelardo. Convicto de que é justiça e benefício o que lhe aconteceu, tenta persuadir Heloísa a aceitar a renúncia e a vida monástica.

Ela, insubmissa, tomada por Eros, nega, indignada, as circunstâncias da sua conversão, afirmando que foi a determinação de Abelardo e não a vocação divina, que a levou a tomar o hábito monástico.-“Mas em mim esses aguilhões da carne se excitam mais pelos ardores de uma juventude ávida de prazeres e pela experiência que tive das mais inebriantes volúpias”, protesta Heloísa.

Abelardo, ídolo intelectual do seu tempo, mestre, poeta e músico, aos trinta e oito anos encontra em Heloísa, dezessete anos, sua aluna, sensível, inteligente e belíssima, o arrebatamento intelectual e o sensual. Separados, unidos por um casamento secreto e novamente separados em função de muitos preconceitos, são atingidos pela castração física de Abelardo, a mando do tio e preceptor de Heloísa, o cônego Fulbert.

Recentes cartas pós-modernas, escritas em linguagem coloquial, encenam uma outra tragédia contemporânea. Não o amor impossível de dois jovens, mas a vida de um jovem escritor, tornada impossível pela ação do vírus da Aids.

“-Pois é amiga. Aconteceu – estou com Aids – ou pelo menos sou HIV+,” informa Caio Fernando Abreu à sua amiga Lídia Magliani no livro Cartas (2002). “Te escrevo da minha suíte do hospital Emílio Ribas onde estou internado há uma semana” contextualiza com ironia.

Fraternas cartas, publicadas recentemente, dramatizam os vários momentos e as várias modulações de um sentimento, talvez o mais sublime de todos os sentimentos humanos: a amizade. “Depois de ler fico pensando que realmente doce é a companhia dos amigos”, diz Fernando Sabino, autor de Cartas na mesa, registro de sua correspondência, endereçada aos outros três cavaleiros mineiros do Apocalipse: Hélio Pellegrino, (Pellegruventz), Otto Lara Rezende (Pagé), Paulo Mendes Campos, (Nicodemus). È o desejo de sempre trocar, de conversar, de partilhar, de ver com os amigos a vida passar, que anima o comovente furor epistolográfico do escritor mineiro, o qual de 1943 a 1992, escreve muitas cartas, enviadas dos diversos lugares onde residiu: Juiz de Fora, Rio, New York, Frankfurt, Paris, Roma, Londres, Rio novamente. Nelas está sempre presente o apelo da amizade.

“Sinto que vocês estão se afastando de mim, Hélio, e eu não queria que isso acontecesse. Já não estou presente quando vocês se encontram aí, percebo que o tempo está me empurrando para frente com força demais, e isso é terrível. Eu queria ficar com vocês, Hélio, e estou cada vez mais longe (creio que será bom prevenir que enquanto escrevo esta carta estou com os olhos molhados)”.

Sob o fio condutor – a relação entre os amigos – a prosa que flui, ágil e saborosa, fragmentando-se ao final de cada carta, para depois fluir e novamente fragmentar-se, traz temas envolventes: reflexões filosóficas, análises de situações políticas, visões culturais de outros países, referências e informações sobre figuras do meio literário.

Diz Fernando: “Clarice chegou, viu e venceu, mas em termos: com exceção de mim, que sou suspeito, ainda não conquistou para o seu novo livro os leitores que merece”.

Trepidantes, as cartas reunidas no volume Querido Poeta – Correspondência de Vinicius de Moraes, organização de Ruy Castro. Agrupadas por décadas, elas dramatizam os movimentos de um escritor pleno, a vida vivida intensamente, nos acordes de uma lira muito singular, personalíssima.

O poeta e diplomata envia e recebe cartas, ao escrevê-las, expõe com coragem, angústia e medo, sua relação consigo próprio e com o mundo, relação que se constrói com base no amor e na entrega total aos objetos desse amor: mulheres (muitas), esposas, namoradas, filhos, mãe e pai, irmãs, amigos (muitos).

Assim, numa carta à filha Susana de Moraes se queixa: “Filhinha, meu amor, o seu velho está aqui no auge de tristeza, longe de vocês e da namorada dele (Lucinha Proença)... Esses dois meses que tenho de esperar pela vinda de Lucinha parecem dois anos, de tal forma os minutos se arrastam, pesam, fazem valer cada segundo”.

Noutra, comunga com o amigo Antonio Maria:... ”Você, meu Maria, que, além de meu amigo, é meu parente, e como eu gosta da noite, teria adorado esse começo de primavera, que de primaveral aliás só mostrou poucos dias”.

Pelo viés das cartas é possível flagrar o poeta envolvido com a poesia, a sua e a dos outros. Declara, a propósito de um poema recebido de Bandeira: “Seu ‘Epitalâmio’ nos deixou comovidíssimos, não só pela ternura do poema em si, como porque foi assim como a nossa certidão de casamento... E mostra que um poeta deve ser realmente um conhecedor de almas, um ‘expert’ no ser humano, um fisiognomista que não precisa de Husserl nem da escola alemã para intuir o essencial do comportamento de um semblante.... “Estou escrevendo minha nova peça, Uma rosa nas trevas, d’après o verso de Mallarmé. Danadamente difícil”.

Pelo viés das cartas é possível entender melhor que malgrado a poesia, o poeta é um homem que assume as preocupações prosaicas de todos os mortais. “Esta remoção, do ponto de vista financeiro, é um bom safa onça e vai me permitir pagar uma série de dívidas chatas aqui e aí. Pois a merda era grande, Braga”.

Com a ousadia que caracterizou sua vida, o querido poeta não hesita na sua correspondência em abrir seu coração, desnudar-se e avaliar-se a si próprio e a sua geração, fato que fica evidente numa carta endereçada a Ribeiro Couto: “Eu vim numa geração posterior, angustiada, errada em sua formação e que teve que descobrir tudo por si mesma, deixando, em sangue, seus melhores pedaços pela estrada. Mas não há de ser nada. A etapa foi vencida e agora só me resta congratular-me comigo mesmo de ter sobrevivido a tanto sofrimento ( por vezes tão inútil) e poder agora apreciar devidamente o meu passado, os meus amigos, o que ficou de bom de tudo isso”...

Nas cartas visitadas, as descobertas, as surpresas, as revelações. Nas malhas da letra pessoal, um universo paralelo, um eu que se estrutura e se constrói à sombra de uma persona social. Onde a verdade do ser?
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Vera Lúcia de Souza Lima é Doutora em Literatura Brasileira pela UFRJ e professora do Departamento de Letras da PUC-Rio.

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