quarta-feira, 28 de março de 2012

J. G. de Araújo Jorge (Universo à Vista)


Estamos nos limites de uma época - momento grave da entrega do bastão, na maratona da História

Fim de etapa, começo de outra. Dialeticamente chegamos a uma nova síntese. O homem se encontra, não apenas em face de um mundo novo, mas de “novos mundos”, tal como a civilização medieval na era dos grandes descobrimentos marítimos. Não foi sem razão, portanto, que chamaram os astronautas da Apolo-8 de “Colombos do espaço”. Do mesmo modo que os Colombos, os Magalhães, dilataram o mundinho mediterrâneo, o fechado “maré nostrum” romano, e deram ao Atlas terrestre suas proporções atuais, os recentes feitos da Astronáutica subverteram as dimensões da nossa acanhada geografia.

-Universo à vista!

O Gênesis tem que ser reescrito. “No princípio Deus criou os céus...” e as terras. Muitas terras gravitando em imensos vazios, mas com certeza habitadas por outros seres, parecidos ou não com os Adões e Evas do perdido Éden.

Subitamente somos passado e futuro. Decolamos de nós mesmos, do que “éramos”, como um foguete rompendo a área gravitacional da Terra, e investindo o desconhecido. Olhamo-nos no espelho, e não nos reconhecemos em corpo e alma. Nossas idéias terão que ser reestruturadas em função deste deslocamento físico, das alterações de nossa visão cultural; da imprevista realidade descortinada; do homem inédito em que nos sentimos. Saímos da casca, como o pinto, e devemos encarar tal fato como uma projeção natural do nosso eu ante as espantosas conquistas da ciência moderna.

Todos nós crescemos, e vivemos, sabendo que a Terra é redonda, que gira em torno de si mesma, e entorno do Sol. Está nos compêndios que compulsamos desde o curso primário, no globo terrestre que a professora tinha em cima da mesa. Mas, no fundo, todos nós esperávamos pela “prova real” dessa velha lição. Como S. Tomé: “Ver para crer”. Já ouvi um garoto perguntar ao pai, como é que o japonês podia andar de cabeça para baixo, do outro lado do mundo? E da ingênua conjetura de um companheiro: por que um avião “parado” no ar, não fazia a volta à Terra em 24 horas, se ela completa seu giro nesse tempo?

As explicações da lei de Newton nos deixavam incrédulos, a pensar neste estranho mundo redondo, a rodar nos céus, com todas as coisas presas no chão, sem que as imensas massas líquidas dos oceanos não se soltassem, e com elas, algas, peixes, baleias, tubarões, a voarem como pássaros!

Os garotos de agora não terão motivos de dúvida. Viram, como eu vi, na televisão, os filmes tirados por Borman, Lovel e Anders, quando a mais de 400 mil quilômetros de nosso planeta, circunavegavam a Lua (Três meses depois de escrita esta crônica, a 20 de julho de 1969, Armstrong, Aldrin e Collina, os três astronautas norte-americanos chegaram a lua, tendo os dois primeiros descido na superfície lunar). E todos compreendemos, então, que o homem deixou de ser um simples habitante terreno. Seu “espaço” ampliou-se. Até agora, víamos tudo, do chão, colados, como as serpentes. De repente, ultrapassamos as próprias aves - somos aves de infinito vôo, - e é como se descobríssemos a Terra - habitantes de outro planeta - livres das milenares raízes que nos agarram ao solo. Einstein se imaginou numa estrela, Arturus, para, livre da lei da gravidade, descobrir a sua “teoria da relatividade”.

Borman e seus companheiros se encontram realmente na situação imaginada pelo gênio de Einstein, e devem ter descoberto uma teoria mais simples: a da humanidade. Paradoxalmente foi preciso que se afastassem da Terra para se “humanizarem”, no sentido de compreenderem ao mesmo tempo a insignificância e a grandeza do homem. O Universo, apenas palavra, poesia - tem agora um sentido tão próximo, palpável, como praia, mulher, edifício, sorvete.

Lovel declarou, vendo a Terra à distância, como uma bola iluminada, que, naquele momento, duvidou que ela pudesse ser habitada.

Assistindo o filme, e a nos repetirmos a cada instante: inacreditável! - também perguntamos: será que há seres naquela “lua grande”? E Lovel concluiu:

“O mundo pareceu-me então, realmente um mundo só”.

Positivamente, como se falar em guerras por palmos (palmos, mesmo) de terra, diante dessa imagem extraordinária? Eu, por mim, não pude conter a irritação, quando, logo após o locutor se referia à disputa entre árabes e judeus, por nesgas de deserto, de areal, na península do Sinai. Tudo me pareceu de proporções liliputianas! Que tacanha a mentalidade de nossos estadistas! Se eu fosse Borman, a primeira coisa que teria proposto ao meu governo ao sair da cápsula, na volta seria:

“Que seja criado um governo Universal!”

Não somos mais que um átomo a girar nos espaços. É estúpido que permaneçamos a usar um sistema métrico mental ultrapassado; que insistamos em nos autodestruir e a nos entre devorar.

Tal apelo, hoje, não saberia mais a utopia. Se Borman o fizesse, teria completado a sua oração, ao ler, no Cosmo, um capítulo do Gênesis. Sim, o Gênesis terá que ser reescrito. Esta é a hora de revisarmos valores, idéias, e até palavras. Fronteiras, pátrias, religiões, formas arcaicas de uma civilização para trás, devem e terão que ser necessariamente reconceituadas. As ONUS, OEAS, UNESCOS, meras siglas sem significado real, não funcionarão enquanto o nosso mundo subdividido continuar sujeito à espoliação dos fracos pelos fortes, às competições desleais entre ricos e nobres, com uma infra-estrutura anterior à era da energia atômica, da astronáutica, dos transplantes, da eletrônica.

Há um mundo novo pela frente. Um mundo que deverá se organizar à base das necessidades fundamentais do homem, físicas e culturais, despojando as sociedades de inúteis e anacrônicos aparatos bélicos. As fardas, para os museus.

As fronteiras não estão mais na terra. As pátrias têm novo sentido. As religiões serão reinventadas, para que permaneçam arrimo e esperança. A Bíblia, velha colcha de retalhos, remendada pelos hebreus, será relegada à sua condição de mitologia lendária do Oriente.

A Igreja não considera mais a Terra o “centro do Universo”, renegou Ptolomeu, admite outros mundos habitados. Concordou afinal com Galileu, e quem sabe? -com Renan. Re-estudar a natureza mística de Cristo não será mais heresia. De quantos Cristos precisaria Deus para redimir incontáveis “humanidades”?

As fronteiras são rabiscos de giz, num quadro-negro, que as gerações apagam com facilidade espantosa. O nacionalismo, já o definia Goethe, como “sarampo dos povos”, doença primária, e passageira. As pátrias, armadas, mais que amadas, caducaram. Absurdo que se justifiquem genocídios brutais, à base de conceitos artificialmente alimentados ao som de bandas de música e de discursos políticos. O homem é um só. O Universo, o seu mundo. E é diante desta visão, desta realidade nova, que deveremos reconstruir-nos para conquistar os caminhos que Deus projetou à nossa frente. À maneira dos velhos marinheiros, do alto dos mastros das caravelas, agora podemos gritar:

- Universo à vista!

Fonte:
JG de Araujo Jorge. "No Mundo da Poesia " Edição do Autor -1969

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