quinta-feira, 29 de março de 2012

J. G. de Araújo Jorge ("Vamos Voltar Pra Casa ?")


Uma hora "sagrada" para mim é a hora da volta. A hora de voltar para casa. Acredito que seja uma "hora sagrada" para quase todos os homens.

Ao fim do dia de trabalho, de preocupações, de luta, atirado ao mundo ilimitado de interesses e ambições, aquela expectativa de paz, de aconchego, do seu pequeno mundo entre quatro paredes.

Os ingleses tem uma doce palavra que define esse porto de volta - "home".

É o nosso lar.

Tenho uma pena infinita daqueles que não podem voltar, ou não tem para onde voltar. São como pássaros que tivessem que permanecer em vôo, sem o embalo de um ramo, ou a quentura de um ninho.

Na pressa do retorno, no fim da jornada, quando procuro os meios de condução, vez por outra surpreendo na ruas, nos bancos das praças, os vultos indigentes dos que não voltam, dos que terão de ficar, dos que vêem chegar a noite, indiferentes ao estranho burburinho humano que lembra o dos pardais, nas árvores da cidade.

Então, não consigo evitar que um pensamento amargo turve o meu apressado egoísmo. E uma tristeza inevitável esvoaça por momentos como uma borboleta negra que entrasse por uma janela aberta.

Todos nós, diariamente, ao entardecer, somos como marinheiros de nós mesmos; navios que se avizinham do porto de origem. ansiamos por avistar a paisagem do coração, por encontrar os que nos são caros, os que justificam as partidas de todo dia, o cotidiano exílio do trabalho.

Em muitos trechos de minha poesia tenho fixado as emoções que essa hora me suscita. Sou um homem que acha que, até mesmo nas viagens de puro prazer, a grande alegria é a volta. Quase se poderia dizer que a gente parte antegozando hora de retornar., transformar as uvas colhidas no vinho doce das lembranças, servido entre amigos.

Tal como se diz dos namorados: que brigam pelo prazer de fazer as pazes. Uma viagem é uma "briga de namorados" com a vida. A gente larga o que gosta, para sentir saudades, e voltar mais apaixonado ainda.

Gostaria de citar para vocês os muitos poemas que escrevi, cantando a alegria de voltar. Sim, bem sei que tenho muitos outros poemas falando do desejo de partir, de perder-me em dionisíacos descaminhos. Mas, no fundo mesmo, o que prevalece é o sentido das raízes que prende o homem ao seu chão, que lhe permite, nos momentos de pausa, crescer e encher-se de flores, frutos e pássaros.

Na exígua moldura desta página, eis duas faces de um mesmo canto.

Tiro primeiro, de "Harpa Submersa" um trecho de :

COLÓQUIO PROSAICO

Porque as coisas que me cercam se impregnam de poesia,
porque lhes transmito minha convivência
é que posso amá-las e senti-las com a perspectiva
da minha emoção.
Oh, felizes são aqueles que encontram os objetos amados
nos seus lugares, ao seu redor,
e possuem o Dom de transubstanciar-se em seu próprio mundo
cercado por uma imensa família
mesmo em solidão.

Seres de nosso mundo
os jarros, os quadros, os livros, as cortinas,
a janela, a cama, a mesa,
são velhos companheiros - formas estáticas de pensamentos-
são velhos confidentes, testemunhas silenciosas
de nossos conflitos,
estátuas de mil figuras e personagens
representando-nos em mil instantes diversos...

Cada um, é um momento múltiplo, onde se agrupam tantas idéias
tantas conjeturas e solilóquios,
fazem parte de nossa vida e se encontram nela, vivos
como a cena no personagem.

Depois, de "a Outra Face" este monólogo lírico que intitulei:

Meu Mundo

Toda tarde digo para mim mesmo:
afinal, eis o meu mundo.

O mesmo beijo, o mesmo quarto claro, com seu assoalho brilhando
refletindo o meu passo;
as mesmas paredes brancas me envolvendo com afáveis gestos de paz;
o mesmo rádio silencioso, entre livros empilhados, a mesma estante fechada
que a um gesto meu descobre tesouros como velha mala de pirata.

Afinal, eis o meu mundo.
A mesma insubstituível companhia, a mesma presença até quando longe dos olhos,
a mesma voz perguntando, a mesma voz respondendo,
o mesmo odor suave da janta, do tempero cozinhando,
a mesma impressão de quem chega de ombros nus e veste ajudado
um macio agasalho.

Afinal, eis o meu mundo.
Como o pescador solitário, diante do primeiro ramo:
- afinal, eis a terra!

E por isso é que acho que defini a felicidade naqueles dois versos de um poemeto de "A Sós":

Gostaria de poder de repente te dizer:
- vamos voltar pra casa!

Fonte:
JG de Araujo Jorge. "No Mundo da Poesia " Edição do Autor -1969

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