terça-feira, 2 de fevereiro de 2016

Contos Populares Portugueses (A Mão do Finado)

Havia um mercador que tinha três filhas e todos os anos fora da cidade para buscar uma renda. Aconteceu falecer-lhe a mulher, e, quando teve de se ausentar, custou-lhe deixar as filhas sozinhas. Disse-lhes então:

- Minhas filhas, eu preciso de ir receber a renda do costume, mas custa-me ir porque não queria arredar-me da vossa beira.

As filhas responderam:

- Vá, meu pai, que não nos vai acontecer nada. Nós |fechamo-nos por dentro e não se consente que ninguém cá entre.

Fiado na palavra das filhas, foi o mercador embora.

Havia fora da cidade uma quadrilha de ladrões, e o capitão deles andava à espera da ocasião da partida do mercador. Assim que soube o dia em que ele saiu da cidade, vestiu-se com trajes de mendigo, e ao anoitecer estava toda a sua quadrilha no canto da rua onde moravam as três meninas.

Foi o capitão bater-lhes à porta e, como estivesse a chover, pediu pousada do ar da noite. As meninas mais velhas compadeceram-se dele e queriam-no agasalhar. A mais moça disse:

- Não! Lembrem-se da palavra que deram ao pai. Damos-lhe esmola e ele que vá com Deus.

Respondeu a mais velha:

- A menina, como mais criança, não determina nada aqui!

E o falso velhinho sempre entrou em casa. Deram-lhe na cozinha uma enxerga e cordas para ele estender a roupa e puseram-lhe a ceia diante. As meninas, depois de terem arranjado o velho, foram também cear.

Estavam elas a acabar quando o velho foi ter com elas à mesa e lhes deu três maçãs dormideiras, uma para cada uma comer à sobremesa. Ficou o capitão dos ladrões ainda um bocado a ver se elas as comiam. De facto, as mais velhas comeram-nas, enquanto a mais nova fingiu que o fazia, escondendo o fruto.

Foram-se as meninas deitar e as mais velhas pegaram em sono profundo, mas a mais nova, com medo, não conseguiu dormir. Quando o ladrão calculou que a dormideira estava a fazer efeito, agarrou num alfinete real e foi confirmar que todas dormiam. Chegou ao pé da mais velha e deu-lhe uma picada a ver se estremecia. Ela não sentiu a picada. Fez o mesmo à do meio, que também nada sentiu. A mais nova, com medo de que o ladrão a matasse, fingiu que dormia e, quando ele a picou, fez que não sentiu.

O ladrão trazia consigo uma espada, uma pistola e uma mão de finado. Numa banca pôs estas coisas todas. A menina mais nova abriu os olhos para ver o que o ladrão ia fazer e tornou-os a fechar. O ladrão pôs lume à mão do finado para as meninas ficarem mais pesadas no sono e correu as salas para arrumar o que tinha que roubar. Abriu o alçapão que dava para a loja das fazendas, entrouxou o que quis e abriu a porta da loja. Saiu a chamar a sua quadrilha.

A menina mais nova levantou-se ao mesmo tempo que o ladrão saiu, viu as trouxas e as fazendas prontas, e a toda a pressa trancou a porta da loja. O ladrão, que já vinha com a quadrilha, ainda se pôs aos empurrões na porta, ao mesmo tempo que dizia:

- Foi a mais nova que me enganou e que não comeu a maçã dormideira!

E começou a ameaçar que ela lhe havia de pagar tudo. Teve ainda a confiança de tornar a bater à porta, pedindo à menina que lhe desse a sua mão de finado. Ela respondeu-lhe de dentro que a mão estava em labareda e não sabia como a apagar. Pediu então o ladrão que a deitasse numa tigela de vinagre, que ela apagava por si. A menina foi buscar a espada, que o ladrão deixara, e disse-lhe:

- Aqui está a mão do finado.

Ora na porta havia um buraco em que cabia uma mão. Disse-lhe o ladrão:

- Meta a menina a mão pelo buraco.

- Se quer, meta a sua, que eu lhe darei a mão do finado.

Vai o ladrão, cai em meter a mão, e a menina traçou-a com a espada.

Os ladrões foram-se embora e o capitão com a mão quebrada. A menina foi para o quarto onde as irmãs estavam dormindo, apagou no vinagre a mão do finado, e ao mesmo tempo as irmãs começaram a estremecer e acordaram.

A boa da menina fê-las levantar, contou-lhes tudo e levou-as a ver os sinais da desgraça em que estavam. Elas ficaram muito assustadas e choraram muito, lembrando-se do que o pai diria quando chegasse e soubesse que lhe tinham desobedecido.

Chegou o mercador da renda e viu as filhas, que lhe pareceram muito tristes. Pediu a menina mais nova a seu pai que a escutasse. Contou o que se tinha passado e como se tinha livrado dos ladrões. O mercador chamou então as filhas e disse:

- Daqui por diante daremos obediência a vossa irmã mais moça. Eu, com ser seu pai, farei o que ela determinar, porque venho de conhecer que vos livrou da morte e de ficarmos desgraçados.

Quando, por fim de muitos anos, o capitão dos ladrões, que tinha mandado fazer uma mão de ferro com engonços e andava de luvas, vestido como qualquer senhor, estabeleceu um armazém defronte da casa do mercador.

Ora um dia o mercador, por o vizinho lhe parecer boa pessoa, convidou-o para ir lá jantar. Ele aceitou de boa vontade e as meninas ficaram satisfeitas com isso. A mais nova é que se mostrou muito triste, e o pai perguntou-lhe o que era. A menina respondeu que não gostava que o pai convidasse o tal senhor para ir a sua casa. Chegou à hora do jantar e foram para a mesa. As outras duas irmãs, essas, estavam muito contentes. Houve uma conversa e neste tempo o visitante pediu em casamento a menina mais nova. O mercador ficou muito satisfeito e disse que sim. Mas a menina respondeu:

- Aqui o desengano, pai, que com ele não me quero casar.

  O vizinho, aborrecido, pediu a mais velha, que ficou muito contente, e ele começou a dizer os bens que tinha e que morava em palácios longe da cidade.

Chegou o dia do casamento, despediu-se a menina mais velha e montou no carro- mais o marido para fora da cidade. Lá no meio da estrada, ele apeou-se mais a mulher e pagou ao boleeiro, para que não se soubesse onde morava. Foram andando, até que chegaram a umas casas metidas nuns matos. Assim que a sua companhia o avistou, vieram com os seus ouros e joias oferecer à senhora, que ele apresentou como sua mulher.

Entrou o capitão de ladrões com ela para um quarto e deu-lhe um papel para escrever uma carta ao pai. Ditou-lha, dizendo que estava muito satisfeita com ver tanta riqueza e que mandava buscar uma das suas irmãs para estar uns dias em sua companhia. Acabada a carta, que ele fechou, tirou então a luva e a mão de ferro, mostrando o braço maneta, perguntando:

- Conheces quem me fez isto? Ela respondeu-lhe que não.

- Bem sei que não tens culpa, mas o pagarás e tuas irmãs também!

Acabado isto, pegou na espada e degolou-a. No fim de uns dias, levou a carta ao sogro, que a sua mulher lhe mandava. O pai leu-a e disse à filha do meio que fosse. O ladrão levou-a consigo e fez que ela escrevesse uma carta para ir também a mais nova. Depois de a degolar, apareceu outra vez com a carta ao sogro. O mercador mandou a última filha que tinha em casa. Ela não queria ir, mas, para não desobedecer, sempre se resolveu. Lá foi com o cunhado, que no meio da estrada a fez apear e, depois de irem a pé por muito tempo, descalçou a luva e mostrou-lhe o punho sem mão, dizendo:

- As tuas manas já pagaram. Agora é a tua vez! Chegaram a casa. Os ladrões apareceram-lhe todos e ele determinou:

- Façam de conta que é minha irmã!

Pôs ao pescoço da menina uma pera de ouro e disse:

- Podes ir a todos os quartos deste palácio menos a este.

Partiu com a quadrilha, mas, assim que ele voltou costas, a menina tirou a pera do pescoço e foi ao quarto dos mortos. Viu lá um menino príncipe todo esfaqueado, que lhe disse:

- Esta casa é um covil de ladrões. Que faz a menina aqui? Olhe que eles estão aí a chegar.

A menina fechou outra vez tudo. Pôs a pera ao pescoço, e nisto chegou o cunhado.

- Fez o que lhe mandei? - Fiz.

Ele olhou para a pera sem malha, ficou muito contente. Destinou-lhe serviços para ela fazer e foi-se outra vez embora para uma viagem de oito dias.

A menina tirou a pera e foi ao quarto dos mortos levar um caldo ao menino príncipe, que ficou são. Sentiram uns carros do rei que levavam esterco e eles fugiram e foram ter com os carreiros para os levarem para o palácio. Pararam os carreiros e perguntaram:

- Que novidades há nessa cidade?

- Ofícios dobrados pela falta do príncipe.

- O príncipe sou eu e esta menina deu-me a vida, na casa onde eu estava esfaqueado pelos ladrões. Agora, carreiro, deita esterco fora do carro de trás, põe meia sebe e deita em cima esterco, que nós nos esconderemos aí.

O carreiro assim fez. Eram três carros e puseram-se a andar. Os ladrões tinham encontrado um feiticeiro e ele ofereceu-se para ir para a sua companhia. Chegaram a casa, o capitão não encontrou a menina, mas o feiticeiro logo lhe disse que ia de fugida no carro de trás.

Partiu um dos ladrões para a ir buscar. Chegou ao carreiro, mandou-o parar e cavar no carro de trás até meio e, vendo que não achava nada, foi-se. Os meninos passaram para o segundo carro. Chegando a casa, disse o ladrão:

- É mentira! Não achei ninguém, pois despejei o carro até meio!

E o feiticeiro aconselhou:

- Despeja o carro todo, que eles lá estão.

Parte o ladrão a toda a pressa, apanhou o carreiro, mandou despejar o carro todo. E como os meninos já tinham passado para o segundo, não achou ninguém. Disse outra vez o feiticeiro:

- Vai lá, que eles passaram-se para o carro da frente. Mas os carros chegavam já ao palácio e escaparam os fugitivos. O rei ficou muito contente por ter tornado a encontrar o seu filho e soube da menina tudo desde a mão do finado até dar a vida ao príncipe, que quis logo casar com ela. O rei deu o sim e nos dias das festas do casamento veio um dos ladrões com moedas de ouro, entrou para a igreja que estava preparada e abriu uma saca e dizia com ar de tolo:

- Tão bonito! Tão bonito! Apareceu ali um vassalo e desdenhou"

- Quando você se admira disto, que seria se visse a câmara real!

E o que fingia de tolo:

- Eu dava todas estas moedas de ouro a quem me levasse lá.

O vassalo ofereceu-se, e o ladrão, no meio de tanta gente, sumiu-se e meteu-se debaixo da cama sem o vassalo ver. Casaram-se os príncipes e foram para a câmara real. A princesa, com uma grande agonia, não podia dormir e não se quis deitar.

Exclamou o príncipe:

- Deita-te, que os ladrões não podem vir aqui matar-nos.

- O meu coração diz que é mesmo aqui que me hão de vir matar!

O príncipe levantou-se, chamou a sentinela para fora da porta e um leão para a borda da cama. O leão, mal entrou, começou a farejar para debaixo da cama. A menina levantou-se e foi ver onde o leão estava dando sinal. Chamou o príncipe para ver um dos ladrões que os tinha querido matar. Acudiu a sentinela, que fez sair o ladrão, que ainda fingia de tolo, dizendo:

- Tão bonito! Tão bonito!

Mas levaram-no dali para a prisão, até confessar quem o tinha ali mandado, sendo enforcado com o vassalo. O rei mandou tropa a rodear a casa dos ladrões,, foram todos mortos e encontraram muitas riquezas, que o rei deu aos noivos, que foram muito felizes.

Fonte: Viale Moutinho (org.) . Contos Populares Portugueses. 2.ed. Portugal: Publicações Europa-América.

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