sábado, 6 de fevereiro de 2016

Contos Populares do Tibete (A Árvore-Sombrinha)

Havia uma vez um homem chamado Palden. Era um grande viajante. Percorrera o mundo inteiro e vira coisas magníficas e maravilhosas. Um dia, quando atravessava a sua terra natal — o Tibete —, encontrou um grande bosque, em cujo centro, numa clareira, se levantava uma árvore enorme. Era belíssima, de folhas verde-escuras e se estendia como uma sombrinha por sobre toda a terra à sua volta.

Sentindo-se cansado, Palden decidiu deitar-se sob a árvore-sombrinha.1 Acomodando-se entre as raízes salientes, logo adormeceu. De repente, despertou sobressaltado. Era noite fechada e havia um grande alvoroço. Sem fazer nenhum ruído, mudou de posição para poder observar melhor e ficou escondido detrás do enorme tronco da árvore-sombrinha. O que viu o assustou muito: ali, na escuridão da noite, como estrelas do firmamento, brilhavam centenas de olhinhos: os olhos de muitos animais, das mais variadas espécies.

Sigilosamente, Palden se levantou e, com muito cuidado, para não espantar os animais, subiu pelos galhos da árvore-sombrinha e, desde ali, ficou espiando o que se passava embaixo. Um enorme leão das neves emergiu da escuridão, e foi sentar-se sob a árvore, seguido logo de um lobo, um urso, um macaco, aves e muitos outros animais. Todos os animais que viviam nos arredores do grande bosque tinham enviado um representante à reunião.

O leão das neves, que era sem dúvida o chefe,2 passou os olhos pela vasta assembleia e disse:

— Boa-noite a todos!

E, como resposta, todos os animais saudaram o leão e se cumprimentaram uns aos outros, com suas vozes e gorjeios.

Palden ficou tão pasmo com o que viu, que quase caiu dos galhos da árvore quando o leão falou. Segurando-se firmemente num galho forte, foi contemplando — olhos desorbitados — a reunião dos animais.

— Digam-me — disse o leão —, que tal foi o dia de hoje para vocês?

— Eu sinto muita fome, respondeu um lobo.

Caminhei muitos quilômetros, hoje, e não consegui comida suficiente.

— Já eu tive sorte — disse a tartaruga —, passei um dia ótimo, nadando e brincando entre as ramagens.

Todos os animais contaram o seu dia e, enquanto o faziam, o leão acrescentava os seus comentários, confirmava com a cabeça ou a balançava em sinal de desgosto; de vez em quando, dava algum conselho ao animal que o precisava.

Passado algum tempo, já se ia fazendo silêncio e todos os animais se preparavam para voltar aos seus territórios, quando se escutou um surdo rouco:

— Perdão, disse uma voz baixa. Tratava-se de um macaco muito velho e enrugado, que se levantou e se dirigiu para o auditório:

— Tenho um relato triste para contar a vocês, hoje. Está relacionado com a estupidez dos humanos.

— Conte-nos, então — disse o leão. Que foi que fizeram, hoje, os humanos?

O macaco continuou:

— Bem, para falar a verdade, o que eu gostaria mesmo é de ser humano também — disse, pois, se o fosse, poderia fazer muito mais pela felicidade dos outros. Mas, sendo as coisas como são, eles, os humanos, jamais escutam os chios de um velho macaco.

— Vamos logo com essa história — disse o raposo com impaciência, e um rumor de descontentamento se levantou dentre a multidão.

O leão das neves levantou uma das garras para impor silêncio:

— Deixem que o macaco conte o seu relato, disse.

— Bem — disse o macaco —, há uma família que vive junto do rio. Eles têm uma filha, uma única filha, que está muito doente. Já faz três meses que ela sofreu um ferimento na perna, e seus pais não sabem como curá-lo. Pois bem, se eu fosse humano — continuou —, lhes diria como curar a perna da menina.

Todos os animais concordaram com a cabeça, pois todos conheciam muito bem a estupidez dos humanos. E o macaco prosseguiu:

— Diante da casa, há uma grande rocha sob a qual vive uma rã. A rã está muito doente e não pode se mover por falta de água. Pois bem, se os pais da menina recolhessem essa rã, a colocassem num pratinho de ouro do santuário doméstico e a levassem ao rio, a perna de sua filha sararia rapidamente.

— É certo, falou o leão das neves. O macaco conhece o meio de curar a perna ferida da menina.

Mas, das outras vezes que tentamos falar com os humanos, eles não nos quiseram escutar, aliás, nunca nos escutam. Por isso, agora, que se arranjem sozinhos!

Depois que todos os animais se foram, Palden desceu da árvore-sombrinha. Estava muito pensativo e se perguntava o que devia fazer.

— Os animais me ensinaram o caminho a seguir — pensou. Devo encontrar essa família e ajudá-los a curar a perna de sua filha.

Quando Palden chegou à casa, o sol já havia aparecido no céu e a manhã ia avançando. Foi até a porta e chamou. Seu chamado foi logo atendido pelo pai da menina, que o olhou intrigado e perguntou o que queria.

— Sou médico — disse Palden. — Vim ajudar à sua filha.

O pai se afastou para deixar Palden entrar na casa e o conduziu até o leito onde jazia a filha, pálida e enferma, à beira já da morte. Palden se ajoelhou junto ao leito e tomou a mão da menina entre as suas.

— Vou fazer com que você fique boa de novo, sussurrou-lhe. Mas a menina não o ouvia. Palden viu que tinha que se apressar se quisesse salvar-lhe a vida.

Dirigindo-se ao exterior da casa, Palden encontrou a pedra grande. Afastou-a, com jeito, uns centímetros, e ali estava a rã, desidratada e morrendo por falta de água. Palden pediu ao pai da menina que lhe trouxesse uma echarpe branca limpa sobre um pratinho de ouro do santuário doméstico. Então, com muito cuidado, apanhou a rã e a colocou no pratinho, tal como o macaco havia mencionado.

Passando o pratinho ao pai da menina, Palden lhe disse que levasse a rã ao rio e que a colocasse no fundo:

— Se o senhor assim o fizer e se a rã se recuperar, a sua filha se salvará.

O pai não compreendia a medicina que o estranho doutor lhe aconselhava, mas, como havia experimentado de tudo para curar a menina, e sem resultado, procedeu tal como aquele homem lhe pedia.

Ao voltar do rio, o pai não coube em si de contentamento, ao ver que sua filha tinha se levantado da cama e já ajudava à sua mãe na cozinha. Voltando-se para Palden, o pai disse:

— Tudo o que tenho de valor é seu, é só dizer o que quer, pois o senhor salvou da morte a nossa única filha, e todo o ouro do mundo não seria suficiente para pagar-lhe o bem que nos fez.

— Eu não quero nada, disse Palden, a não ser trazer felicidade às pessoas.

O pai insistiu para que Palden ficasse e que comesse com eles, pelo menos. Prepararam uma grande festa em sua honra. Todos os vizinhos vieram e, nessa tarde, houve grande alegria no bosque, pois todos acreditaram que se houvesse realizado um milagre.

Ao cair da noite, Palden se despediu da família e, levando consigo os presentes com que o haviam acumulado, dirigiu-se novamente ao centro do bosque, à clareira na qual se erguia a árvore-sombrinha. Quando chegou à árvore, a reunião já havia começado. Todos os animais estavam congregados e contavam ao leão das neves as suas histórias. Lentamente e sem fazer ruído, Palden se encarapitou na árvore e subiu pelos galhos até ficar escondido da vista de quem quer que fosse.

Dessa vez, foi um tigre que falou dos humanos, contando sobre uma família que vivia no outro lado do bosque, longe do rio.

— São tão ignorantes — disse o tigre —, que todos os dias percorrem quilômetros e quilômetros até o rio, para se abastecerem de água.

Uma vez mais, os animais concordaram com a cabeça e soltaram grunhidos de compreensão, enquanto o tigre continuava o seu relato:

— Pois bem, se eu estivesse em seu lugar, arrancaria o grande toco de árvore que há junto à casa deles, cavaria até um metro de profundidade, e dali tiraria toda a água que necessitasse.

Palden escutava. Quando os animais terminaram, desceu da árvore e adormeceu profundamente. Contudo, ao despertar, recordou perfeitamente o relato do tigre, na noite anterior. "Foi um sonho?", perguntava-se; mas, quando levantou os olhos na direção dos galhos da árvore-sombrinha, persuadiu-se de que o que havia ouvido era absolutamente real, e de que tinha de encontrar a família que necessitava de água tão desesperadamente.

Palden chegou à casa da família no mesmo momento em que o sol se escondia detrás do horizonte, mas ainda havia luz suficiente para ver o grande toco. Aproximou-se do mesmo para inspecioná-lo e viu que estava profundamente fincado ao solo. "Será preciso a força de uns cinquenta homens para arrancar este toco — pensou —, pois ele está com as raízes enterradas fundo no solo. Sentou-se junto ao toco, tirou um pouco de comida da sua chuba, comeu, e logo voltou a dormir.

Raiou a aurora. Os pássaros do bosque cantavam e alguns sinais de movimento dentro da casa indicavam que a família já se havia levantado e se preparava para a jornada. Palden foi até a porta de entrada da casa e chamou, pedindo aos de dentro que o deixassem entrar.

Quando a mulher da casa respondeu ao seu chamado, Palden lhe pediu um pouco de água, mas ela disse que a que tinham já não era suficiente sequer para eles mesmos; e, sendo assim, não podia dar nem uma gota a estranhos.

— Temos que andar muitos quilômetros todos os dias —disse —, pois vivemos longe do rio e não temos outra fonte perto de casa.

— Talvez eu possa ajudá-los — disse Palden —, pois sou perito nestas questões.

— E o que o senhor vai querer por isso? — perguntou a mulher. — Se nos ajudar a encontrar água, tudo o que temos será seu.

— Tudo o que eu quero — disse Palden — são vinte e cinco metros de corda e doze iaques. Com isso proporcionarei a vocês toda a água que possam necessitar.

A mulher chamou o resto da família e, juntos, pegaram os iaques e a corda. Palden tomou a corda, amarrou-a ao toco de árvore, e depois a prendeu aos doze iaques. Conduzindo os iaques, fez com que eles puxassem e puxassem, até que, finalmente, o toco foi arrancado do chão. Então, pediu à mulher que chamasse todos os vizinhos mais próximos e que lhes dissesse que trouxessem pás para cavar.

Todos se juntaram e se revezaram para cavar o buraco deixado pelo toco. Em pouco tempo, a água apareceu. Água de fonte, água de manancial, clara e fresca, que encheu o buraco e jorrou abundante pelo solo.

Todos gritavam, riam, saltavam de contentamento, abraçando-se uns aos outros, cheios de felicidade. De repente, uma voz gritou dentre a multidão: "Silêncio!"

Fez-se silêncio entre todos, pois o ancião que havia lançado a ordem era sábio e muito reverenciado por seu povo.

— Durante sessenta e cinco anos — disse, dirigindo-se a Palden —, tratei de ajudar a essa gente.

Vi crescerem seus filhos e os filhos de seus filhos.

Vi morrer muita gente. Entretanto, nem eu nem nenhum outro foi capaz de fazer o que você fez.

Você é alguém muito especial — continuou. Deve ser, então, o chefe do nosso povo, pois trouxe muita alegria a seus corações e, mesmo assim, não está pedindo nada para si mesmo.

Palden respondeu:

— Darei o melhor de mim para conduzir o povo do bosque e fazer a todos felizes. Agradeço-lhes por me pedirem isso. Na verdade, eu sou apenas um pobre homem.

Assim que disse isto, a multidão levantou Palden e o levou aos ombros por todo o bosque, proclamando-o seu novo chefe.

Passaram alguns anos. Palden vivia feliz entre o seu povo. Sucedeu, então, que um velho amigo seu, inteirado da sua sorte, decidiu fazer-lhe uma visita, no bosque, para investigar como Palden havia chegado a ser tão famoso e querido.

Palden deu boas-vindas ao amigo, recebendo-o de braços abertos.

— O que o trouxe aqui, Kunjo? — perguntou.

— Desejo saber — respondeu Kunjo — o que fez você para ter tanta sorte.

— Oh! foi tudo muito simples — disse Palden.

E contou ao amigo tudo sobre a história da árvore-sombrinha e as reuniões dos animais.

Kunjo escutou atentamente o relato de Palden e, considerando o quanto gostaria de ser, também, chefe de um povo, decidiu encontrar a árvore-som-brinha e escutar os animais em seu colóquio. "Isso vai me fazer muito rico e famoso — pensou Kunjo; — terei todo o ouro e a prata que desejar".

E assim, nessa mesma tarde, despedindo-se de Palden, dirigiu-se à clareira do centro do bosque e subiu aos galhos da árvore-sombrinha para esperar a chegada dos animais.

Pouco tempo depois, dentro da noite iluminada apenas pelos tênues raios de lua que se filtravam entre os galhos das árvores, chegaram os animais.

Bem no momento em que iam começar a reunião, ouviu-se um estalido nos galhos da árvore-sombrinha. O leão das neves olhou para cima justo no instante em que Kunjo caía aos pés de um urso enorme.

— Pois vejam só! — disse o urso. Com que então, temos alguém para escutar a nossa reunião!

E, estreitando o homem em seus poderosos braços, espremeu-o tanto e tanto, que o último alento escapou do corpo de Kunjo e este morreu.

As aves e todos os (outros) animais banquetearam-se, naquela noite. E, quando o sol saiu, tudo o que restava do pobre Kunjo eram uns poucos ossos, que as aves carniceiras, com seus bicos, se encarregaram de deixar limpinhos.
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Notas
1. Em inglês, conhece-se com o nome de "Umbrella Tree" ("árvore guarda-chuva" ou "árvore-sombrinha") uma árvore americana do gênero das magnólias (Magnolia tiipetala), bastante alta e de folhas muito grandes, que oferecem um magnífico abrigo contra a chuva. Mas esta classificação se estende, igualmente, a outras árvores de características parecidas. Assim, pois, e dado que em nosso conto não se podia tratar desta árvore, pois o refúgio que oferece ao seu protagonista não é tanto da chuva, mas do sol, preferimos traduzi-la como "Árvore-sombrinha".
2. Não existem leões no Tibete, e desde o ponto de vista zoológico, esta designação de "leão das neves" poderia ser aplicada, talvez, ao írbis, conhecido como "pantera das neves", que é própria desta região da Ásia Central. De qualquer maneira, no Tibete o leão ocupa um lugar destacado como animal simbólico, de acordo, quanto aos demais, com a significação especial que tem o leão no budismo. E a presença do leão como animal simbólico na tradição popular tibetana era muito ampla; em algumas festas, como a do Ano Novo, celebrava-se a "Dança do Leão". Pois bem, a figura realmente importante nessa tradição era a da "Leoa branca das neves", ou "dos geleiros", que era considerada a personificação destes últimos. E a água que escorria deles, reputada como medicinal, era conhecida como o "leite da leoa branca dos geleiros".

Fonte:
Jayang Rinpoche. Contos Populares do Tibete. (Tradução: Lenis E. Gemignani de Almeida).

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