segunda-feira, 28 de março de 2016

Contos Populares do Tibete (Os Amantes)

Era uma vez o jovem filho de uma família pobre. Tratava de ganhar a vida arrancando o que podia do terreno ao redor da casa e guardando o pequeno rebanho de iaques que sua família possuía.

Pelo fato de viver no lado sul, onde a grama crescia pobre e rala, frequentemente o rapaz tinha de percorrer um longo caminho pelo rio, até o lado norte, onde a grama era verde e viçosa, e onde havia montanhas e vales nos quais o seu rebanho podia se apascentar. A viagem levava muitos quilômetros, e o moço tinha que alcançar um baixio do rio, a fim de poder cruzá-lo sem perigo.

Foi durante uma dessas frequentes viagens para o lado norte do rio, que ele encontrou uma formosa jovem. Também ela guardava o rebanho da família, cujo número de iaques era muito superior ao dele. Assim, o moço logo soube que ela não era pobre. Logo, começaram a se falar. Costumavam descansar ao sol, enquanto seus animais vagavam pelo vale. Falavam de suas vidas, de suas famílias, de seus sonhos e de suas esperanças para o futuro. Ele se inteirou de que ela tinha três irmãos e de que se revezava com eles para guardar o rebanho. Toda vez que ele cruzava o rio, olhava se ela estava ali; algumas vezes, sim, outras, um dos irmãos estava em seu lugar.

O jovem casal se enamorou. A moça sabia que a mãe iria ter um grande desgosto quando soubesse dos seus sentimentos, pois desejava que ela se casasse com o filho de uma família vizinha, e tudo estava quase acertado.

Assim, os dois seguiram vendo-se em segredo. Frequentemente, o jovem cantava para ela: eram canções do Tibete, canções de amor, canções sobre o povoado onde ele vivia. E um dia, o moço tirou um dos longos brincos de turquesa que usava e, delicadamente, o entrelaçou nos cabelos dela, de forma a que ficasse escondido. Com isto, os dois se tornavam noivos. Entretanto, quando o rapaz assim agiu, ela havia experimentado uma grande tristeza, pois sabia que sua mãe jamais iria consentir na união dos dois.

Um dia, a mãe da menina, que já suspeitava de algo pelo desejo desta de sair sempre com o rebanho, insistiu para que ela ficasse em casa para tomar banho e lavar-se o cabelo. Quando a mocinha desatou o cabelo, o brinco de turquesa caiu no chão e a mãe reparou nele. Pôs-se uma fúria e obrigou a menina a revelar-lhe quem lhe havia dado o brinco.

No dia seguinte, a mãe disse ao filho mais velho:

— Apanhe esta flecha, e, quando encontrar aquele homem terrível, mate-o.

O filho mais velho pegou a flecha, mas, quando encontrou o rapaz, não pôde matá-lo. Em vez disso, gritou-lhe:

— Fuja! Eu matarei um corvo e levarei à minha mãe a flecha manchada de sangue.

E assim o fez. Quando a mãe viu a flecha, disse ao filho que a levasse ao lama do povoado. O lama devolveu a flecha com o recado de que na ponta da mesma havia sangue de corvo, e não sangue humano. A mãe se aborreceu muito. Disse, então, ao segundo filho:

— Apanhe esta flecha e mate-o!

O segundo filho apanhou a flecha, mas, da mesma maneira, quando encontrou o rapaz, não teve coragem de matá-lo. Em vez disso, gritou-lhe:

— Fuja! Eu matarei um esquilo e levarei à minha mãe a flecha manchada de sangue.

E assim o fez. Quando a mãe viu a flecha, ordenou ao segundo filho que a levasse de novo ao lama do povoado. O recado desta vez foi de que o sangue da ponta da flecha tampouco era sangue humano.

A mãe não conseguia mais conter-se. Seu ódio em relação ao moço era tão intenso, que não ia descansar enquanto não o visse morto. Procurou o filho mais novo e lhe disse:

— Se você matar aquele homem com esta flecha, eu o recompensarei com o ouro que seu pai me deixou. Mas, se você não o fizer, vou tomar a sua vida no lugar da dele.

O filho mais novo pegou a flecha e, quando encontrou o moço, sentiu-se muito aflito. Não desejava matá-lo, mas sabia que a sua própria vida estava dependendo disso. "Se eu levar a flecha com sangue humano — pensou —, tudo sairá bem: minha mãe pensará que matei o rapaz. Vou disparar a flecha contra a perna dele apenas para feri-lo". Mas, o que ele não sabia era que a mãe havia colocado veneno na ponta de flecha antes de entregá-la a ele.

E o filho mais novo correu, tirou a flecha da perna do rapaz e a levou à mãe. Desta vez, o recado que se recebeu do lama foi de que o sangue da flecha era humano. A mãe não coube em si de contente.

— Por fim, disse, livrei-me da ameaça.

O rapaz ferido estava sofrendo muito: a perna piorava dia a dia e o veneno penetrava cada vez mais no seu corpo. Já não podia andar com o seu rebanho, mas descia à margem do rio e falava aos gritos com a moça, em meio ao ruído das águas desordenadas.

— Como está a sua perna, hoje? — perguntava-lhe ela.

E ele respondia:

— A dor do meu coração é muito maior do que a estou sentindo em minha perna.

A mocinha se afligia e a saúde do rapaz piorava. Um dia, ao perguntar-lhe como estava, ele respondeu:

— Amor meu, logo não estaremos mais juntos nesta vida, pois creio que esta noite eu vou morrer. Se amanhã, quando você descer à margem do rio, houver um arco-íris, vai saber, então, que eu morri.

No dia seguinte, ela desceu correndo para a margem, mas, já muito antes de chegar, viu o arco-íris no céu. Soube, então, que ele estava morto. Sentou-se à margem do rio e chorou até partir-lhe o coração. De repente, escutou, docemente, a voz do moço, que não saía de nenhuma parte, mas que a contornava. Cantava assim:

"O rio tem crescido muito e muito, e nada detém a impetuosa canção das suas águas. Urna vez que nós nos prometemos mutuamente, inimigo algum pode impedir a nossa união."

A mocinha voltou a casa, onde a mãe a esperava. Lançou-se a seus pés, chorando. Suplicou que a deixasse ir ao funeral do rapaz, prometendo-lhe que, quando tudo houvesse terminado, se casaria com o homem que a mãe escolhesse para ela. A mãe, então, consentiu, e ambas, e mais uma criada, foram ao funeral.

Quando chegaram, o moço jazia numa pira funerária, mas, por mais que a família o tentasse, não havia conseguido que seu corpo ardesse.

A moça desvestiu, então, a sua túnica, e a jogou sobre o corpo do rapaz. Imediatamente, se levantou uma chama. A seguir, ela lançou os seus sapatos sobre o corpo, e a chama subiu mais alto ainda. Depois, voltando-se para a criada, pegou o azeite de mostarda que tinham trazido com elas e o derramou sobre o seu próprio corpo. E assim fazendo, entrou na pira funerária que ardia intensamente. E a mãe pôde contemplar, com horror, como a filha se estendia sobre o corpo em chamas de seu amante.

Quando as chamas se apagaram, os ossos do casal se haviam fundido entre si. A mãe da moça e a do rapaz discutiram sobre como separar os restos mortais, para que os que pertencessem a cada um deles pudessem ser enterrados no lado respectivo do rio. A mãe da menina perguntou:

— O que era que dava mais medo a seu filho, neste mundo?

E a mãe do rapaz respondeu:

— As serpentes.

— E à minha filha, as rãs, disse a primeira.

Assim, colocaram uma serpente e uma rã sobre os restos mortais dos jovens, que se separaram, pois os ossos respectivos se deslocaram segundo o medo dos distintos animais: os do rapaz, para o lado sul, e os da mocinha, para o lado norte.

Logo, em ambos os pontos onde foram enterrados os restos mortais, cresceram duas árvores, que se tornaram muito grandes. Seus galhos se estenderam por cima do rio e se entrelaçaram. A mãe da moça mandou que os cortassem. Mas, pouco tempo depois, nasceram, no lugar das árvores, dois arbustos, e, em cada um deles, pousava um pássaro. Os pássaros cantavam um para o outro através do rio, e voavam um em direção ao outro, descendo para brincar nas frescas águas.

A mãe da moça fez matar os dois pássaros e arrancar os dois arbustos pela raiz. Quando os espíritos dos dois pássaros subiam em direção ao céu, o macho disse à fêmea:

— Parece-me que não vamos estar juntos nunca.

— Mas é claro que estaremos — respondeu o pássaro fêmea. — Você vai para as regiões do sal, e eu irei para as regiões do chá.

E assim o fizeram. Deste modo, agora, cada vez que alguém faz chá tibetano com sal e manteiga, os dois amantes se reúnem.(1)

Nota
1. O chá tibetano é preparado fervendo-se as folhas do chá, que vão em pães; passa-se a infusão a uma vasilha e se acrescenta sal e manteiga, batendo-se a mistura. É consumido, habitualmente, junto com tsampa (rtsan-pa), farinha de cevada tostada, que é amassada com o chá formando como que umas bolas.


Fonte:
Jayang Rinpoche. Contos Populares do Tibete. (Tradução: Lenis E. Gemignani de Almeida).

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