segunda-feira, 27 de novembro de 2017

Alexandre Herculano (O profeta)

O Guadamelato é uma Ribeira que, descendo das solidões mais distantes da Serra Morena, vem, através de um território montanhoso e selvático, desaguar no Guadalquivir, pela margem direita, pouco acima de Córdova. Houve tempo em que nestes desvios habitou uma densa população: foi nas eras do domínio sarraceno em Espanha. Desde o governo do amir Abul-Khatar o distrito de Córdova fora distribuído às tribos árabes do Iemem e da Síria, as mais nobres e mais numerosas entre todas as raças da África e da Ásia que tinham vindo residir na Península por ocasião da conquista ou depois dela. Às famílias que se estabeleceram naquelas encostas meridionais das longas serranias chamadas pelos antigos Montes Marianos conservaram por mais tempo os hábitos erradios dos povos pastores. Assim, no meado do décimo século, posto que esse distrito fosse assaz povoado, o seu aspecto assemelhava-se ao de um deserto; porque nem se descortinavam por aqueles cabeços e vales vestígios alguns de cultura, nem alvejava uni único edifício no meio das colinas rasgadas irregularmente pelos algares das torrentes ou cobertas de selvas bravias e escuras. Apenas, um ou outro dia, se enxergava na extrema de algum almargem virente a tenda branca do pegureiro, que no dia seguinte não se encontraria ali, se, porventura, se buscasse.

Havia, contudo, povoações fixas naqueles ermos; havia habitações humanas, porém não de vivos. Os árabes colocavam os cemitérios nos lugares mais saudosos dessas solidões, nos pendores meridionais dos outeiros, onde o sol, ao pôr-se, estirasse de soslaio os seus últimos raios pelas lájeas lisas das campas, por entre os raminhos floridos das sarças açoitadas do vento. Era ali que, depois do vaguear incessante de muitos anos, eles vinham deitar-se mansamente uns ao pé dos outros, para dormirem o longo sono sacudido sobre as suas pálpebras das asas do anjo Asrael.

A raça árabe, inquieta, vagabunda e livre, como nenhuma outra família humana, gostava de espalhar na terra aqueles padrões, mais ou menos suntuosos, do cativeiro e da imobilidade da morte, talvez para avivar mais o sentimento da sua independência ilimitada durante a vida.

No recosto de um teso, elevado no extremo de extensa gandra que subia das margens do Guadamelato para o Nordeste, estava assentado um desses cemitérios pertencentes à tribo Iemenita dos Benu-Homair. Subindo pelo rio viam-se alvejar ao longe as pedras das sepulturas, como vasto estendal, e três únicas palmeiras, plantadas na coroa do outeiro, lhe tinham feito dar o nome de cemitério Al-tamarah. Transpondo o cabeço para o lado oriental, encontrava-se um desses brincos da natureza, que nem sempre a ciência sabe explicar; era um cubo de granito de desconforme dimensão, que parecia ter sido posto ali pelos esforços de centenares de homens, porque nada o prendia ao solo. Do cimo desta espécie de atalaia natural descortinavam-se para todos os lados vastos horizontes.

Era um dia à tarde: o sol descia rapidamente, e já as sombras principiavam do lado do Leste a empastar a paisagem ao longe em negrumes confusos. Assentado na borda do rochedo quadrangular, um árabe dos Benu-Homair, armado da sua comprida lança, volvia olhos atentos, ora para o lado do Norte, ora para o de Oeste: depois, sacudia a cabeça com um sinal negativo, inclinando-se para o lado oposto da grande pedra.

Quatro sarracenos estavam ali, também, assentados em diversas posturas e em silêncio, o qual só era interrompido por algumas palavras rápidas, dirigidas ao da lança, a que ele respondia sempre do mesmo modo com o seu menear de cabeça.

"Al-barr”, - disse, por fim, um dos sarracenos, cujo trajo e gesto indicavam uma grande superioridade sobre os outros – “parece que o caide de Chantaryn esqueceu a sua injúria, como o wali de Zarkosta a sua ambição de independência. Até os partidários de Hafsun, esses guerreiros tenazes, tantas vezes vencidos por meu pai, não podem acreditar que Abdallah realize as promessas que me induziste a fazer-lhes."

"Amir Al-melek - replicou Al-barr - ainda não é tarde: os mensageiros podem ter sido retidos por algum sucesso imprevisto. Não creias que a ambição e a vingança adormeçam tão facilmente no coração humano. Dize, Al-athar, não te juraram eles pela santa Kaaba que os enviados com a notícia da sua rebelião e da entrada dos cristãos chegariam hoje a este lugar aprazado, antes de anoitecer?”

"Juraram - respondeu Al-athar - mas que fé merecem homens que não duvidam de quebrar as promessas solenes feitas ao califa e, além disso, de abrir o caminho aos infiéis para derramar o sangue dos crentes? Amir, nestas negras tramas tenho-te servido lealmente; porque a ti devo quanto sou; mas oxalá que falhassem as esperanças que pões nos teus ocultos aliados. Oxalá não tivesse de tingir o sangue as ruas de Kórthoba, e não houvera de ser o supedâneo do trono que ambicionas o túmulo de teu irmão!"

Al-athar cobriu a cara com as mãos, como se quisesse esconder a sua amargura. Abdallah parecia comovido por duas paixões opostas. Depois de se conservar algum tempo em silêncio, exclamou:

"Se os mensageiros dos levantados não chegarem até o anoitecer, não falemos mais nisso. Meu irmão Al-hakem acaba de ser reconhecido sucessor do califado: eu próprio o aceitei por futuro senhor poucas horas antes de vir ter convosco. Se o destino assim o quer, faça-se a vontade de Deus! Al-barr, imagina que os teus sonhos ambiciosos e os meus foram uma kassidéh e que não soubeste acabar, como aquela que debalde tentaste repetir na presença dos embaixadores do Frandjat, e que foi causa de caíres no desagrado de meu pai e de Al-hakem e de conceberes esse ódio que alimentas contra eles, o mais terrível ódio deste mundo, o do amor-próprio ofendido."

Ahmed Al-athar e o outro árabe sorriram ao ouvirem estas palavras de Abdallah. Os olhos, porém, de Al-barr faiscaram de cólera.

"Pagas mal, Abdallah - disse ele com a voz presa na garganta – os riscos que tenho corrido para te obter a herança do mais belo e poderoso Império do Islão. Pagas com alusões afrontosas aos que jogam a cabeça com o algoz para te pôr na tua uma coroa. És filho de teu pai!... Não importa. Só te direi que é já tarde para o arrependimento. Pensas, acaso, que uma conspiração sabida de tantos ficará oculta? No ponto a que chegaste, retrocedendo é que hás de encontrar o abismo!”

No rosto de Abdallah pintava-se o descontentamento e a incerteza. Ahmed ia a falar, talvez para ver de novo se advertia o príncipe da arriscada empresa de disputar a coroa a seu irmão Alhakem.

Um grito, porém, do atalaia o interrompeu. Ligeiro como relâmpago, um vulto saíra do cemitério, galgara o cabeço e se aproximara sem ser sentido: vinha envolto num albornoz escuro, cujo capuz quase lhe encobria as feições, vendo-se-lhe apenas a barba negra e revolta. Os quatro sarracenos puseram-se em pé de um pulo e arrancaram as espadas.

Ao ver aquele movimento, o que chegara não fez mais do que estender para eles a mão direita e com a esquerda recuar o capuz do albornoz: então as espadas baixaram-se, como se corrente elétrica tivesse adormecido os braços dos quatro sarracenos. Albarr exclamara:

 -"Al-muulin o profeta ! Al-muulin o santo!..."

"Al-muulin o pecador - interrompeu o novo personagem -; Almuulin, o pobre fakih penitente e quase cego de chorar as próprias culpas e as culpas dos homens, mas a quem Deus, por isso, ilumina, às vezes, os olhos da alma para antever o futuro ou ler no fundo dos corações. Li no vosso, homens de sangue, homens de ambição! Sereis satisfeitos! O Senhor pesou na balança dos destinos a ti, Abdallah, e a teu irmão Al-hakem. Ele foi achado mais leve. A ti o trono; a ele o sepulcro. Está escrito. Vai; não pares na carreira, que não te é dado parar! Volta a Kórthoba. Entra no teu palácio Merwan; é o palácio dos califas da tua dinastia. Não foi sem mistério que teu pai to deu por morada. Sobe ao sótão da torre. Ali acharás cartas do caide de Chantaryn e delas verás que nem ele, nem o wali de Zarkosta nem os Benu-Hafsun faltam ao que te juraram!"

"Santo fakih - replicou Abdallah, crédulo, como todos os muçulmanos daqueles tempos de fé viva, e visivelmente perturbado - creio o que dizes, porque nada para ti é oculto. O passado, o presente, o futuro, os dominas com a tua inteligência sublime. Asseguras-me o triunfo; mas o perdão do crime podes tu assegurá-lo?"

"Verme, que te crês livre! - atalhou com voz solene o fakih. - Verme, cujos passos, cuja vontade mesma, não são mais do que frágeis instrumentos nas mãos do destino, e que te crês autor de um crime! Quando a frecha despedida do arco fere mortalmente o guerreiro, pede ela, acaso, a Deus perdão do seu pecado? Átomo varrido pela cólera de cima contra outro átomo, que vais aniquilar, pergunta, antes, se nos tesouros do Misericordioso há perdão para o orgulho insensato!"

Fez então uma pausa. A noite descia rápida. Ao lusco-fusco ainda se viu sair da manga do albornoz um braço felpudo e mirrado, que apontava para as bandas de Córdova. Nesta postura, a figura do fakih fascinava. Coando pelos lábios as sílabas, ele repetiu três vezes:

"Para Merwan!"

Abdallah abaixou a cabeça e partiu vagarosamente, sem olhar para trás. Os outros sarracenos seguiram-no. Al-muulin ficou só.

Mas quem era este homem? Todos o conheciam em Córdova; se vivêsseis, porém, naquela época e o perguntásseis nessa cidade de mais de um milhão de habitantes, ninguém vo-lo saberia dizer. Era um mistério a sua pátria, a sua raça, donde viera. Passava a vida pelos cemitérios ou nas mesquitas. Para ele o ardor da canícula, a neve ou as chuvas do inverno eram como se não existissem. Raras vezes se via que não fosse lavado em lágrimas. Fugia das mulheres, como de um objeto de horror. O que, porém, o tornava geralmente respeitado ou, antes, temido, era o dom de profecia, o qual ninguém lhe disputava. Mas era um profeta terrível, porque as suas predições recaíam unicamente sobre futuros males. No mesmo dia em que nas fronteiras do império os cristãos faziam alguma correria ou destruíam alguma povoação, ele anunciava publicamente o sucesso nas praças de Córdova.

Qualquer membro da família numerosa dos Benu-Umeyyas caía debaixo do punhal de um assassino desconhecido, na mais remota província do império, ainda das do Moghreb ou Mauritânia, na mesma hora, no mesmo instante, às vezes, ele o pranteava, redobrando os seus choros habituais. O terror que inspirava era tal, que, no meio de um tumulto popular, a sua presença bastava para fazer cair tudo em mortal silêncio. A imaginação exaltada do povo tinha feito dele um santo, santo como o islamismo os concebia; isto é, como um homem cujas palavras e cujo aspecto gelavam de terror.

Ao passar por ele, Al-barr apertou-lhe a mão, dizendo-lhe em voz quase imperceptível:

"Salvaste-me!"

O fakih deixou-o afastar e, fazendo um gesto de profundo desprezo, murmurou:

"Eu?! Eu, teu cúmplice, miserável?!"

Depois, levantando ambas as mãos abertas para o ar, começou a agitar os dedos rapidamente e, rindo com um rir sem vontade, exclamou:

"Pobres títeres!"

Quando se fartou de representar com os dedos a ideia de escárnio que lhe sorria lá dentro, dirigiu-se, ao longo do cemitério, também para as bandas de Córdova, mas por diverso atalho.

Fonte: 
HERCULANO, Alexandre. O Alcaide de Santarém. excerto

domingo, 26 de novembro de 2017

Guilherme de Almeida (Canção do expedicionário)


Você sabe de onde eu venho?
Venho do morro, do engenho,
Das selvas, dos cafezais,
Da boa terra do coco,
Da choupana onde um é pouco,
Dois é bom, três é demais,
Venho das praias sedosas,
Das montanhas alterosas,
Dos pampas, do seringal,
Das margens crespas dos rios,
Dos verdes mares bravios
Da minha terra natal.

Por mais terras que eu percorra,
Não permita Deus que eu morra
Sem que volte para lá;
Sem que leve por divisa
Esse "V" que simboliza
A vitória que virá:
Nossa vitória final,
Que é a mira do meu fuzil,
A ração do meu bornal,
A água do meu cantil,
As asas do meu ideal,
A glória do meu Brasil.

Eu venho da minha terra,
Da casa branca da serra
E do luar do meu sertão;
Venho da minha Maria
Cujo nome principia
Na palma da minha mão,
Braços mornos de Moema,
Lábios de mel de Iracema
Estendidos para mim.
Ó minha terra querida
Da Senhora Aparecida
E do Senhor do Bonfim!

Por mais terras que eu percorra,
Não permita Deus que eu morra
Sem que volte para lá;
Sem que leve por divisa
Esse "V" que simboliza
A vitória que virá:
Nossa vitória final,
Que é a mira do meu fuzil,
A ração do meu bornal,
A água do meu cantil,
As asas do meu ideal,
A glória do meu Brasil.

Você sabe de onde eu venho?
É de uma Pátria que eu tenho
No bojo do meu violão;
Que de viver em meu peito
Foi até tomando jeito
De um enorme coração.
Deixei lá atrás meu terreiro,
Meu limão, meu limoeiro,
Meu pé de jacarandá,
Minha casa pequenina
Lá no alto da colina,
Onde canta o sabiá.

Por mais terras que eu percorra,
Não permita Deus que eu morra
Sem que volte para lá;
Sem que leve por divisa
Esse "V" que simboliza
A vitória que virá:
Nossa vitória final,
Que é a mira do meu fuzil,
A ração do meu bornal,
A água do meu cantil,
As asas do meu ideal,
A glória do meu Brasil.

Venho do além desse monte
Que ainda azula o horizonte,
Onde o nosso amor nasceu;
Do rancho que tinha ao lado
Um coqueiro que, coitado,
De saudade já morreu.
Venho do verde mais belo,
Do mais dourado amarelo,
Do azul mais cheio de luz,
Cheio de estrelas prateadas
Que se ajoelham deslumbradas,
Fazendo o sinal da cruz!

Por mais terras que eu percorra,
Não permita Deus que eu morra
Sem que volte para lá;
Sem que leve por divisa
Esse "V" que simboliza
A vitória que virá:
Nossa vitória final,
Que é a mira do meu fuzil,
A ração do meu bornal,
A água do meu cantil,
As asas do meu ideal,
A glória do meu Brasil.

Monteiro Lobato (A colcha de retalhos)

- Upa! Cavalgo e parto.

Por estes dias de março a natureza acorda tarde. Passa as manhãs embrulhada num roupão de neblina e é com espreguiçamentos de mulher vadia que despe os véus da cerração para o banho de sol.

A névoa esmaia o relevo da paisagem, desbota-lhe as cores. Tudo parece coado através dum cristal despolido.

Vejo a orla de capim tufada como debrum pelo fio dos barrancos; vejo o roxo-terra da estrada esmaecer logo adiante; e nada mais vejo senão, a espaços, o vulto gotejante dalguns angiqueiros marginais.

Agora, uma porteira.

Ali, a encruzilhada do Labrego.

Tomo à destra, em direitura ao sítio do José Alvorada.

Este barba-rala mora-me a jeito de empreitar um roçado no capoeirão do Bilu, nata da terra que pelas bocas do caeté legítimo, da unha-de-vaca e da caquera está a pedir foice e covas de milho.

Não é difícil a puxada: com cinquenta braças de carreador boto a roça no caminho.

Três alqueires, só no bom. Talvez quatro. A noventa por um - nove vezes quatro trinta e seis; trezentos e sessenta alqueires de oito mãos. Descontadas as bandeiras que o porco estraga e o que comem a paca e o rato...

Será a filha do Alvorada?

- Bom dia, menina! - O pai está em casa?

É a filha única. Pelo jeito não vai além de quatorze anos.

Que frescura! Lembra os pés d'avenca viçados nas grotas noruegas. Mas arredia e até como a fruta do gravatá. Olhem como se acanhou! D'olhos baixos, finge arrumar a rodilha. Veio pegar água a este córrego e é milagre não se haver esgueirado por detrás daquela moita de taquaris, ao ver-me.

- O pai está lá? - insisti.

Respondeu um "está" enleado, sem erguer os olhos da rodilha.

Como a vida no mato asselvaja estas veadinhas! Note-se que os Alvoradas não são caipiras. Quando comprou a situação dos Periquitos, o velho vinha da cidade; lembro-me até que entrava em sua casa um jornal.

Mas a vida lhes correu áspera na luta contra as terras ensapezadas e secas, que encurtam a renda por mais que dê de si o homem. Foram rareando as idas à cidade e ao cabo de todo se suprimiram. Depois que lhes nasceu a menina, rebento floral em anos outoniços, e que a geada queimou o café novo - uma tamina, três mil pés - o velho, amuado, nunca mais espichou o nariz fora do sítio.

Se o marido deu assim em urumbeva (pessoa crédula, fácil de ser enganada), a mulher, essa enraizou de peão para o resto da vida. Costumava dizer: mulher na roça vai à vila três vezes - uma a batizar, outra a casar, terceira a enterrar.

Com tais casmurrices na cabeça dos velhos, era natural que a pobrezinha da Pingo d'Água (tinha esse apelido a Maria das Dores) se tolhesse na desenvoltura ao extremo de ganhar medo às gentes. Fora uma vez à vila com vinte dias, a batizar. E já lá ia nos quatorze anos sem nunca mais ter-se arredado dali.

Ler? Escrever? Patacoadas, falta de serviço, dizia a mãe.

Que lhe valeu a ela ler e escrever que nem uma professora, se depois que casou nunca mais teve jeito de abrir um livro? Na roça, como na roça.

Deixei a menina às voltas com a rodilha e embrenhei-me por um atalho conducente à morada.

Que descalabro!... Da casa velha aluíra uma ala, e o restante, além da cumeeira selada, tinha o oitão fora do prumo.

O velho pomar, roído de formiga, morrera de inanição; na ânsia de sobreviver, três ou quatro laranjeiras macilentas, furadas de broca e sopesando o polvo retrançado da erva-de-passarinho, ainda abrolhavam rebentos cheios de compridos acúleos. Fora disso, mamoeiros, a silvestre goiaba e araçás, promiscuamente com o mato invasor que só respeitava o terreirinho batido, fronteiro à casa. Tapera quase e, enluradas nela, o que é mais triste, almas humanas em tapera.

Bati palmas.

- Ó de casa! Apareceu a mulher.

- Está seu Zé? - Inda agorinha saiu, mas não demora. Foi queimar um mel na massaranduba do pasto. Apeie e entre.

Amarrei o cavalo a um moirão de cerca e entrei.

Acabadinha, a Sinh'Ana. Toda rugas na cara - e uma cor... Estranhei-lhe aquilo.

- Doença! - gemeu. - Estou no fim. Estômago, fígado, uma dor aqui no peito que responde na cacunda. Casa velha, é o que é.

- Metade é cisma - disse-lhe para consolo.

- Eu é que sei! - retrucou-me suspirando.

Entrementes, surgiu da cozinha uma velhota bem-apessoada, no cerne, rija e tesa, que saudou e:

- Está espantado do jeito de Nhana? Esta gente de agora não presta para nada. Olhe, eu com setenta no lombo não me troco por ela. Criei minha neta e inda lavo, cozinho e coso. Admira-se? Coso, sim!...

- Mecê é gabola porque nunca padeceu doença - nem dor de dente! Mas eu? Pobre de mim! Só admiro ainda estar fora da cova... Aí vem o Zé.

Chegava o Alvorada. Ao ver-me, abriu a cara.

- Ora viva quem se lembra dos pobres! Não pego na sua mão porque estou assim... É só melado. Bonito, hein? Estava difícil, num oco muito alto e sem jeito. Mas sempre tirei. Não é jiti, não! É mel-de-pau.

Depôs num mocho a cuia dos favos e se foi à janela, lavar as mãos à caneca d'água que a mulher despejava. Pôs os olhos no meu cavalo.

- Hoje veio no picaço... Bom bicho! Eu sempre digo: animais aqui no redor, só este picaço e a ruana do Izé de Lima. O mais é eguada de moenda.

Neste momento entrou a menina de pote à cabeça. Ao vê-la, o pai apontou para a cuia de mel.

- Está aí, filha, o doce da aposta. Perdi, paguei. Que aposta? Ah! ah! Brincadeira. A gente cá na roça, quando não tem serviço com qualquer coisa se diverte. Vinha passando um bando de maritacas. Eu disse à loa: "São mais de dez!" Pingo negou: "Não chega lá!" Apostamos. Eram nove. Ela ganhou o doce. Doce da roça mel é. Esta songuinha só vendo; não é o que parece, não...

A loquacidade daquele homem não desmedrara com o atraso da vida. Em se lhe dando corda, ressurgia nele o tagarela da cidade.

Expus-lhe o negócio. Alvorada enrugou a testa; refletiu um bocado, de queixo preso. Depois:

- Eu hoje, franqueza, não valho mais nada. Des'que caí daquela amaldiçoada ponte do Labrego, fiquei assim como quebrado por dentro. Não escoro serviço, e para lidar com camaradas no eito não basta ter boca. Sem puxar a enxada de par com eles, a coisa não vai, não! Lembra-se da empreitada do ano retrasado? Pois saí perdendo. O tranca do João Mina me quebrou um machado e furtou uma foice. Com esses prejuízos, não livrei o jornal. Desde então fiz cruz em serviço alheio. Se ainda teimo neste sapezal amaldiçoado é por via da menina; senão, largava tudo e ia viver no mato, como bicho. É Pingo que inda me dá um pouco de coragem - concluiu com ternura.

A velhinha sentara-se à luz da janela e, abrindo uma caixeta, pusera-se a coser, de óculos na ponta do nariz.

Aproximei-me, admirativo.

- Sim, senhora! Com setenta anos!

Sorriu, lisonjeada.

- É para ver. E isto aqui tem coisa. É uma colcha de retalhos que venho fazendo há quatorze anos, des'que Pingo nasceu. Dos vestidinhos dela vou guardando cada retalho que sobeja e um dia os coso. Veja que galantaria de serviço...

Estendeu-me ante os olhos um pano variegado, de quadrinhos maiores e menores, todos de chita, cada qual de um padrão.

- Esta colcha é o meu presente de noivado. O último retalho há de ser do vestido de casamento, não é, Pingo?

Pingo d'Água não respondeu. Metida na cozinha, percebi que nos espiava por uma fresta.

Mais dois dedos de prosa com Alvorada, um cafezinho ralo - escolha com rapadura - e:

- Está bem - rematei, levantando-me do mocho de três pernas. - Como não pode ser, paciência. Apesar disso acho que deve pensar um bocado. Olhe que este ano se estão pagando os roçados a oitenta mil réis o alqueire. Dá para ganhar, não?

- Que dá, sei que dá - mas também sei para quem dá. Um perrengue como eu não pensa mais nisso, não. Quando era gente, muitos peguei a sessenta e não me arrependi. Mas hoje...

- Nesse caso...

Transcorreram dois anos sem que eu tornasse aos Periquitos. Nesse intervalo Sinh'Ana faleceu. Era fatal a dor que respondia na cacunda. E não mais me aflorava à memória a imagem daqueles humildes urupês, quando me chegou aos ouvidos o zunzum corrente no bairro, uma coisa apenas crível: o filho de um sitiante vizinho, rapaz de todo pancada, furtara Pingo d'Água aos Periquitos.

- "Como isso? Uma menina tão acanhada!..."

- "É para ver! Desconfiem das sonsas... Fugiu, e lá rodou com ele para a cidade - não para casar, nem para enterrar. Foi ser 'moça', a pombinha..."

O incidente ficou a azoinar-me o bestunto. À noite perdi o sono, revivendo cenas da minha última visita ao sítio, e nasceu-me a ideia de lá tornar. Para? Confesso: mera curiosidade, para ouvir os comentários da triste velhinha. Que golpe! Desta feita ia-se-lhe a rijeza de cerne.

Fui.

Setembro entumecia gomos em cada arbusto. Nenhuma neblina. A paisagem desenhava-se nítida até aos cabeços dos morros distantes.

Por amor à simetria, montava eu o mesmo picaço. Transpus a mesma porteira. Atalhei pelo mesmo trilho.

No córrego vi, com os olhos da imaginação, o vulto da menina envergonhada com o pote em repouso na laje e toda às voltas com a rodilha. Mais uns passos e a tapera antolhou-se-me, deserta. As três árvores do pomar extinto eram já galhaça resseca e poenta. Só os mamoeiros subsistiam, mais crescidos, sempre apinhados de frutos. O resto piorara, descambando para o lúgubre. Ruíra o oitão e o terreirinho pintalgara-se de moitas de guanxuma, cordão-de-frade e juás.

- Ó de casa! - gritei.

Silêncio. Três vezes repeti o apelo. Por fim surgiu dos fundos uma sombra acurvada e trêmula.

- Bom dia, nhá Joaquina. Está seu Zé?

Não me reconheceu a velhinha. Zé fora à vila, vender a sitioca para mudar de terra.

Fez-me entrar, logo que me dei a conhecer, pedindo escusas da má vista.

- Tem coragem de estar aqui sozinha?

- Eu? Sozinha estou em toda parte. Morreu-me tudo, a filha, a neta... Sente-se - murmurou apontando para o mocho de dois anos atrás.

Sentei-me, com um nó na garganta. Não sabia o que dizer. Por fim:

- O que é a vida, nhá Joaquina! Parece que foi ontem que estive aqui. Apesar das doenças, iam vivendo felizes. Hoje...

A velha limpou no canhão da manga uma lágrima.

- Viver setenta e dois anos para acabar assim... Felizmente a morte não tarda. Já a sinto cá dentro.

Confrangia-me o coração aquele ermo onde tudo era passado - a terra, as laranjeiras, a casa, as vidas, salvo trêmulo espectro sobrevivente como a alma da tapera - a triste velhinha encanecida, cujos olhos poucas lágrimas estilavam, tantas chorara.

- Que mais agora? - murmurou pausadamente em voz de quem já não é deste mundo. - Até à "desgraça", eu não queria morrer. Velha e inútil, inda gostava do mundo. Morreu-me a filha, mas restava a neta - que era duas vezes filha e o meu consolo. Desencaminharam a pobrezinha... Agora, que mais? Só peço a Deus que me retire, logo e logo.

Relanceei um olhar pela sala vazia. A caixeta de costura inda estava sobre a arca no lugar de sempre. Meus olhos pousaram ali, marasmados.

A velha adivinhou-me o pensamento e, levantando-se, tomou-a nas mãos mal firmes. Abriu-a. Tirou de dentro a colcha inacabada, contemplou-a longamente. Depois, com tremuras na voz:

- Dezesseis anos - e não pude acabar a colcha... Ninguém imagina o que é para mim esta prenda. Cada retalho tem sua história e me lembra um vestidinho de Pingo d'Água. Aqui leio a vidinha dela des'que nasceu. Este, olhe, foi da primeira camiseta que vestiu... Tão galantinha! Estou a vê-la no meu braço, tentando pegar os óculos com a mãozinha gorda... Este azul, de listras, lembra um vestido que a madrinha lhe deu aos três anos. Ela já andava pela casa inteira armando reinações, perseguindo o Romão - que um dia, por sinal, lhe meteu as unhas no rostinho. Chamava-me "ÓÓ aquina”. Este vermelho de rosinhas foi quando completou os cinco anos. Estava com ele por ocasião do tombo na pedra do córrego, donde lhe veio aquela marquinha no queixo, não reparou? Este cá, de xadrezinho, foi pelos sete anos, e eu mesma o fiz, e o fiz de saia comprida e paletó de quartinho. Ficou tão engraçada, feita uma mulherzinha! Pingo d'Agua ja sabia temperar um virado, quando usou este aqui, de argolinhas roxas em fundo branco. Digo isto porque foi com ele que entornou uma panela e queimou as mãos. Este cor de batata foi quando tinha dez anos e caiu com sarampo, muito malzinha. Os dias e as noites que passei ao pé dela, a contar histórias! Como gostava da Gata Borralheira!...

A velha enxugou na colcha uma lágrima perdida e calou-se.

- E este? - perguntei para avivá-la, apontando um retalho amarelo.

Pausou um bocado a triste avó, em contemplação. Depois:

- Este é novo. Já tinha feito quinze anos quando o vestiu pela primeira vez num mutirão do Labrego. Não gosto dele. Parece que a desgraça começa aqui. Ficou um vestido muito assentadinho no corpo, e galante, mas pelas minhas contas foi o culpado do Labreguinho engraçar-se da coitada. Hoje sei disso. Naquele tempo de nada suspeitava.

- Este - disse-lhe eu, fingindo recordar-me - é o que ela vestia quando cá estive.

- Engano seu. Era, quer ver qual? Era este de pintas vermelhas, repare bem.

- É verdade, é verdade! - menti. Agora me lembro, isso mesmo. E este último?

Após uma pausa dorida, a pobre criatura oscilou a cabeça e balbuciou:

- Este é o da desgraça. Foi o derradeiro que fiz. Com ele fugiu... e me matou.

Calou-se, a lacrimejar, trêmula.

Calei-me também, opresso dum infinito apertão d'alma.

Que quadro imensamente triste, aquele fim de vida machucado pela mocidade louca!...

E ficamos ambos assim, imóveis, de olhos presos à colcha.

Ela por fim quebrou o silêncio.

- Ia ser o meu presente de noivado. Deus não quis. Será agora a minha mortalha. Já pedi que me enterrassem com ela.

E guardou-a dobradinha na caixa, envolta num suspiro arrancado ao imo do coração.

Um mês depois morria. Vim a saber que lhe não cumpriram a última vontade.

Que importa ao mundo a vontade última duma pobre velhinha da roça? Pieguices...

Fonte:
LOBATO, Monteiro. Urupês. 

sábado, 25 de novembro de 2017

João Batista Xavier Oliveira (Trovas de quem entende de Trovas) III


A goteira enciumada
feriu a rosa em botão
porque à chuva misturada
nunca chamou atenção.

A janela da poesia
aberta às rimas do amor
deixa passar, noite e dia,
toda a ternura da flor.

Ao som da noite uniforme
comigo a tristeza dança;
enquanto a esperança dorme
a saudade não descansa.

A terra liberta cios
e os braços do homem aceita
quando a chuva, por seus fios,
tece o manto da colheita.

Eu me preocupo em colher
bons frutos da educação,
para evitar encolher
o pomar do meu irmão.

Junto à árvore da trova
conheci minha poesia,
pois quem do seu fruto prova
faz do verso moradia.

Meu barco à deriva assume
ao abraço do arrebol
na fuga do teu ciúme
que fingiu ser meu farol!

Não faça do amigo a ponte
para o sucesso alcançar;
muitas o horizonte
é onde começa o mar.

Não queiras me envenenar;
minha dor está dormente;
ternuras no teu olhar
são dois ninhos de serpente.

Na rotina cansativa
o vai-e-vem, burburinho,
escondem a paz que ativa
novo brilho do caminho.

Nas teclas do meu piano
a emoção rompe barreiras
ao teu sentimento insano
mesmo que as pazes não queiras.

No alvor do seu uniforme
mais parece anjo da terra
velando a dor que não dorme
em tempo de paz... de guerra!

O chilrear matutino
numa cadência sem fim
é o legado do menino
cantando dentro de mim.

O tempo ensina a chorar
represando a quem não chora
um sentimento de amar
a paz que jamais aflora.

Pergunto ao tempo até quando
a falsa paixão se esconde
e ele passando... passando...
simplesmente já responde.

Quando a dor fica teimosa
e a esperança nem murmura,
o espinho a zombar da rosa
exala a sua amargura.

Quando se enxerga o inimigo,
o embate é menos atroz,
pois ele é maior perigo
estando dentro de nós

Que valor tem conquistar
poder e glória sem fim...
se no aconchego do lar
solidão ganha de mim?

Quisera, nos meus delírios,
que alcançam versos celestes,
a liberdade dos lírios
nos vastos vergéis agrestes.

São nos pequenos sinais
que a natureza diz tudo;
a indiferença jamais
ameniza o conteúdo.

Tens apenas um defeito:
ferir-me na insensatez;
e eu apenas o direito
de morrer uma só vez.

Teu retrato em preto e branco
a colorir a saudade
pereniza o riso franco
no tom que não tem idade.

Tijolos, bola de meia,
nosso futebol de rua.
Essa paisagem clareia
doce infância de alma nua.

Fonte:
Trovas enviadas pelo autor

28ª Edição do Concurso de Contos Paulo Leminski (Vencedores)

A comissão avaliadora da 28ª edição do concurso de Contos Paulo Leminski divulgou nesta segunda-feira (20) os resultados dos textos classificados em 1º, 2º e 3º lugares, além do melhor conto toledano e menções honrosas. Os três primeiros lugares receberão a premiação em dinheiro divididos em R$ 2.500, 00 para o primeiro colocado, R$ 1.800,00 ao segundo R$ 1.500,00, para o terceiro e o melhor conto toledano com uma quantia de R$ 1.000,00. A entrega da premiação deve acontecer no próximo dia 08 de dezembro, às 16h na Biblioteca Pública Municipal - Centro Cultural "Oscar Silva". O concurso é realizado em parceria com a Unioeste/campus Toledo e Prefeitura de Toledo através da Biblioteca Pública.

Neste ano o número de inscrições foram 691 textos, destes 203 de São Paulo, 115 do Rio de Janeiro, 97 do Paraná, 69 do Rio Grande do Sul e 58 Minas Gerais. Além de participantes dos países Itália, Japão, Portugal e Suíça. Os trabalhos foram lidos por uma comissão formada por mestres e doutores da Unioeste e de outras instituições de ensino, da área de literatura e língua portuguesa. 

Um detalhe importante é que os contos premiados e os que recebem menção honrosa são reunidos em uma coletânea pública a cada cinco anos. Assim, a 6ª edição do livro será lançada em 2019 em que constam os contos premiados da 25ª a 29ª edição do concurso.

De acordo com o professor mestre Dari José Klein os contos são separados por núcleos. “A nossa comissão avaliadora é formada por sete professores, em que cada grupo de três pessoas lê os contos e realiza a seleção. Por isso, no dia de hoje nos reunimos para reler e decidir quem são os premiados”.

Dari comenta que o concurso que começou em Toledo, com a ideia de proporcionar uma oportunidade para quem escreve ter o seu trabalho divulgado. “A gente escolhe os premiados, faz uma ata, assina e só a partir desse momento e que vamos verificar quem são as pessoas, se é homem, mulher, jovem, adulto, de que lugar que é, se é escritor ou não e assim por diante”.  

A professora Maria Beatriz Zanchet salienta que é normal haver textos bons, médios ou fracos. “A cada ano que passa percebemos que a concorrência aumenta, pela forma narrativa da construção dos textos, a qualidade narrativa e isso demostra que o concurso está adquirindo espaço”.

Rita das Graças Felix Fortes que também é professora doutora salienta que as variantes linguísticas são bem presentes nos textos. “Pela linguagem identificamos textos de várias regiões do Brasil, embora a gente não saiba a identidade nem a origem dos autores, conseguimos observar, por exemplo, contos do nordeste, de minas, do sul. Isso mostra a amplitude dos textos no contexto nacional e adquirindo espaço também no contexto internacional”, finaliza.

RESULTADOS:

1° Lugar: 
Briga de galo. 
DANILO BRANDÃO DE LIMA 
Campinas/SP

2° Lugar: 
Pudim de Laranja. 
PAULA GIANNINI 
Itanhaém/SP

3° Lugar: 
Pedro Rodela. 
LAÉRCIO NORA BACELAR 
Belo Horizonte/MG

Conto Toledano: 
Entre o Minotauro e o Lobo. 
VALDINEI JOSÉ ARBOLEYA

Menções Honrosas (por ordem alfabética de autoria)

Tortura do método.
ALEX XAVIER 
São Paulo/SP

A Cidadezinha.
CÉSAR BUENO FRANCO 
Campo Mourão/PR

Os habitantes da lua.
CHRIS RITCHIE 
São Paulo/SP

Maxwell Silver.
HÉLIO CARLOS BRAUNER 
Porto Alegre/RS

McLanche Feliz.
MANUELA DEL LAMA TITOTO 
Ribeirão Preto/SP

Um Sorriso.
MOISÉS LAERT PINTO TERCEIRO 
Uberaba/MG

Olhos azuis.
NEYD MARIA MAKIOLKA MONTINGELLI 
Curitiba/PR

Jardim.
OTÁVIO BILEVIC 
Toledo/PR

Fonte:

sexta-feira, 24 de novembro de 2017

Elisabete Aguiar (Poemas sem fronteiras)


CÂNTICO AO SOL

Eu cantarei o sol eternamente,
sereno servidor universal!
Discreto, disponível, diligente,
com seu sorriso terno e paciente,
sobre todos irradia por igual.

Ensina-me, ó sol bendito,
com teu brilho e calor,
a acalentar o aflito
no manto do meu amor!

OS MEUS VERSOS

Os versos que inventei para Te cantar
são meninos perdidos em deserto;
caminham vacilantes, passo incerto,
na ânsia, só, de oásis vislumbrar.

Neles vesti minha alma de luar
e lírios de emoção ao peito aperto...
Teci palavras de Luz...Eis-me desperto
para no raiar da aurora Te encontrar.

Versos vertidos no oiro da ternura,
no molde da saudade e da lonjura,
meninos frágeis, asas de cristal…

Voltejando nos braços da Esperança,
cantam Teu Amor, Tua Bonança,
em harpejos de Graça musical.

VISÃO

Vi-te, no cais de embarque, quando ia
Tomar a nau desta navegação.
Seria sonho meu ou utopia?
Sei que, sem saber, guardei essa visão.

Singrou a nau por ventos e marés,
Contra vagas de espanto e de ansiedade.
E a areia rude que roeu meus pés
Era a filha fiel da tempestade.

Mas sempre, no meu peito escondida,
Como pérola em ostra resguardada,
A saudade da visão desconhecida,
Palpitante, secreta e magoada…

E, foi assim, que sem saber chegaste,
Porque o Deus da doçura me escutava…
Quando no Eterno Cais tu embarcaste
Era já a minha voz que te chamava.

ORIGEM

Fui vela, fui barco e borboleta,
Fui asa, fui canto, fui perfume;
Fui a voz do eco tão distante
Que se evola nos ares e nos confunde.

Fui o vento norte nas ermidas
Açoitando álgidas pedras requebradas;
Fui a brisa carinhosa que afaga
Nas fontes, belas moiras encantadas.

Fui doçura de pranto, à noitinha,
Nos olhos da donzela apaixonada;
Fui riso, sinfonia e fui esperança,
Fui saudade de uma alma torturada.

Fui a essência das coisas por fazer,
Fui o impulso febril da Criação,
Fui auréola de santo, fui pureza,
Fui o som cósmico, fui leveza,
Fui o pulsar de Divino coração.

Elisabete Aguiar, in” Vago Horizonte”
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Elisabete do Amaral Albuquerque Freire Aguiar nasceu em 1951, em Ribamondego, Concelho de Gouveia, Portugal. Em 69, ingressou na Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra onde se licenciou em Filologia Românica. Desde então dedicou-se ao ensino, lecionando desde 1977 em Mangualde. Professora aposentada, de Literatura Portuguesa. Professora de Yoga desde 1987, lecionando Yoga na Universidade Sénior de Viseu (desde 2003), na Universidade Senior de Mangualde e nas instalações do INATEL de Viseu. Livros de poesia publicados e livro de traduções em conjunto com Fernando Augusto Teixeira Gonçalves.