quarta-feira, 29 de maio de 2024

Vereda da Poesia = 20 =


Trova de Curitiba/PR

Emílio de Meneses  
Curitiba/PR, 1866– 1918, Rio de Janeiro/RJ

Estranha contradição
que a Terra vira e revira:
muita mentira é paixão,
muita paixão é mentira.
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Soneto de São Paulo/SP

Mauro Raul de Moraes Andrade
1893– 1945

ARTISTA

O meu desejo é ser pintor — Leonardo,
cujo ideal em piedades se acrisola;
fazendo abrir-se ao mundo a ampla corola
do sonho ilustre que em meu peito guardo...

Meu anseio é, trazendo ao fundo pardo
da vida, a cor da veneziana escola,
dar tons de rosa e de ouro, por esmola,
a quanto houver de penedia ou cardo.

Quando encontrar o manancial das tintas
e os pincéis exaltados com que pintas,
Veronese! teus quadros e teus frisos,

irei morar onde as Desgraças moram;
e viverei de colorir sorrisos
nos lábios dos que imprecam ou que choram!
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Triverso de Caxias do Sul/RS

Fabrício Carpinejar

A vida com erros de ortografia
tem mais sentido.
Ninguém ama com bons modos.
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Poema de Lisboa/Portugal

António Lampreia
(António José Lopes Lampreia)
Setubal, 1929 – 2003, Lisboa 

SOMBRAS DA MADRUGADA

Vi uma sombra bem unida
a dela e a tua
e a minha sombra já esquecida
surpreendida
parou na rua!
os dois bem juntos, tu e ela
nenhum reparou
que a outra sombra era daquela
que tu não queres
mas já te amou!
É madrugada não importa
neste silêncio há mais verdade
a noite é triste e tão sózinha
parece minha
toda a cidade!
nem um cigarro me conforta
nem o luar hoje me abraça
eu não te encontrarei jamais
e nestas noites sempre iguais
sou mais uma sombra que passa
sombra que passa e nada mais.
Ao longo desta madrugada
a sombra da vida
mora nas pedras da calçada
já não tem nada
anda perdida
quando a manhã, desce enfeitada
no sol, que a procura
nem sabe quanto a madrugada
chora baixinho
tanta amargura!
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Trova Humorística, de Fortaleza/CE

Nemésio Prata
(Nemésio Prata Crisóstomo)

Nos bailes não dava trela,
e a todos dizia não;
mas no fim foi a donzela
quem "dançou": ficou na mão!
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Poema de Divinópolis/MG

Adélia Prado

PARA PERPÉTUA MEMÓRIA

Depois de morrer, ressuscitou
e me apareceu em sonhos muitas vezes.
A mesma cara sem sombras, os graves da fala
em cantos, as palavras sem pressa,
inalterada, a qualidade do sangue,
inflamável como o dos touros.
Seguia de opa vermelha, em procissão,
uma banda de música e cantava.
Que cantasse, era a natureza do sonho.
Que fosse alto e bonito o canto, era sua matéria.
Aconteciam na praça sol e pombos
de asa branca e marron que debandavam.
Como um traço grafado horizontal,
seu passo marcial atrás da música,
o canto, a opa vermelha, os pombos,
o que entrevi sem erro:
a alegria é tristeza,
é o que mais punge.
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Epigrama da Bahia

Lafaiete Spínola Castro

É um caso de embasbacar,
mas, que faz a gente rir:
O De Nancy – a velar…
E seu talento – a dormir!

(Sobre o literato baiano De Nancy Avelar)
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Décima de Natal/RN

Ademar Macedo
Santana do Matos/RN, 1951 – 2013, Natal

PERDÃO NA ETERNIDADE
 
Para alcançar o perdão
no reino da eternidade,
vão pesar meu coração
na balança da verdade;
pra saber a quantidade
dos meus erros capitais,
entre os pecados mortais
e meus atos de bonança,
quando eu botar na balança
Deus sabe quem pesa mais!…
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Trova Premiada  em Pedro Leopoldo/MG, 2003

A. A. de Assis
(Antonio Augusto de Assis) 
Maringá/PR

Era um guri tão terror,
que a escola inteira o temia.
Cresceu... virou professor...
paga com juro hoje em dia!
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Glosa de Catanduva/SP

Ógui Lourenço Mauri

MOTE:
 Pai, eu te peço perdão
por não ser o que querias!
Eu vivo na contramão,
num refúgio... de poesias!
 José Feldman 
(Campo Mourão/PR)
  
GLOSA:
 Pai, eu te peço perdão
por ter frustrado teu sonho.
Assim, não queria, não;
é disso que me envergonho!
 
Lamento muito, meu velho,
por não ser o que querias!
 Na leitura do Evangelho,
eu tento acalmar meus dias.
 
Desde cedo, fiz a opção,
eu nasci pra ser poeta.
Eu vivo na contramão
de tua paternal meta.
 
Não me ajeito a obrigações,
só faço o que repudias.
Vivo minhas emoções
num refúgio... de poesias!
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Aldravia de Juiz de Fora/MG

Cecy Barbosa Campos

metrô
transportando
cansaço
na
cidade
grande
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Sextilha Agalopada, de São Simão/SP

Thalma Tavares
(Vicente Liles de Araújo Pereira)

Martins Fontes amou uma roseira
e com ela casar-se pretendeu.
Sofreu tanta ilusão o bom poeta
que as delícias trocou do himeneu
pelo encanto floral da Natureza
e à pureza das rosas se rendeu.
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Trova de Santos/SP

Luiz Otávio
(Gilson de Castro)
Rio de Janeiro/RJ, 1916-1977, Santos/SP

Nessas angústias que oprimem,
que trazem o medo e o pranto,
há gritos que nada exprimem,
silêncios que dizem tanto!.. 
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Poema de Cachoeira do Sul/RS

Jaqueline Machado

PALAVRAS 

Não pronuncio palavras sombrias 
porque todas elas
já foram lançadas em minha direção. 
São duras feito pedras. 
E como machucam... 
Se fugi de algumas delas? 
Não. 
Acolhi todas. 
E as transformei em bênçãos. 

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Quadra Popular

Mandei buscar na botica
remédio para uma ausência,
me mandaram a saudade,
coberta de paciência.
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Ditirambo de São Paulo

Oswald  de Andrade
São Paulo/SP, 1890- 1954 

Meu amor me ensinou a ser simples
Como um largo de igreja
Onde não há nem um sino
Nem um lápis
Nem uma sensualidade
=============

Ditirambo, poema lírico de estrofes irregulares que exprime o delírio do entusiasmo, da alegria.

O poema é simultâneamente claro e sombrio, talvez daí o nome ditirambo...faz lembrar um daqueles sonhos em que tudo parece perfeito, mas há um pormenor que o transforma em pesadelo, causando-nos espanto e desespero (Alexis, in http://www.luso-poemas.net)

Nas origens do teatro grego, o ditirambo era um hino grego antigo cantado e dançado em homenagem a Dionísio, o deus do vinho e da fertilidade; O termo também foi usado como um epíteto do deus. Platão, em As Leis, ao discutir vários tipos de música, menciona "o nascimento de Dionísio, chamado, eu acho, de ditirâmbdio". Platão também observa na República que os ditirâmbos são o exemplo mais claro de poesia em que o poeta é o único orador.

No entanto, em A Apologia, Sócrates foi aos ditirâmbos com algumas de suas passagens mais elaboradas, perguntando seu significado, mas obteve uma resposta de: "Você vai acreditar em mim?" que "me mostrou em um instante que não por sabedoria os poetas escrevem poesia, mas por uma espécie de gênio e inspiração; São como adivinhos ou adivinhos que também dizem muitas coisas boas, mas não entendem o significado delas".

Plutarco contrastou o caráter selvagem e extático do ditirâmbo com o peão. De acordo com Aristóteles, o ditirâmbo foi a origem da tragédia ateniense. Um discurso ou peça de escrita extremamente entusiasmada ainda é ocasionalmente descrito como ditirâmico.

Ditirâmbos foram cantados por coros em Delos, mas os fragmentos literários que sobreviveram são em grande parte atenienses. Em Atenas, os ditirâmbos eram cantados por um coro grego de até cinquenta homens ou meninos dançando em formação circular, que podem ou não estar vestidos como Sátiros, provavelmente acompanhados pelos aulos. Eles normalmente relatariam algum incidente na vida de Dionísio ou apenas celebrariam o vinho e a fertilidade.

Os gregos antigos estabeleceram os critérios do ditirâmbo da seguinte forma:

Ritmo especial
Texto enriquecedor
Conteúdo narrativo considerável
Caráter originalmente antistrófico

Competições entre grupos, cantando e dançando ditirâmbos eram uma parte importante das festas de Dionísio, como a Dionísia e Lenaia. Cada tribo entraria em dois coros, um de homens e outro de meninos, cada um sob a liderança de um corifeu. Os nomes das equipes vencedoras das competições ditirâmbicas em Atenas foram registrados. Os No entanto, a maioria dos poetas permanece desconhecida. 

Eduardo Martínez (Santana e o furto em residência)

O plantão da delegacia estava abarrotado, mas o agente Ricky Ricardo precisou designar dois policiais para um local de furto em residência. Chamou o Pedro, um dos mais competentes da delegacia. No entanto, para acompanhar o colega, estava sem melhores opções e, por isso, mandou o Santana. Que lástima! Fazer o quê?

Os dois agentes, já na viatura a caminho do local de crime, tiveram que enfrentar um engarrafamento. Pedro, ao volante, procurava encontrar uma brecha entre os carros para chegar logo, enquanto o Santana, com aquela vontade louca de acender mais um cigarro, abriu a janela da viatura. As baforadas começaram a sair da chaminé instalada entre o nariz e o queixo do antigo policial. 

Quase meia hora após, eis que os canas estacionaram em frente a uma casa na parte mais nobre da cidade. Pedro, mais ágil e proativo, desceu do veículo para desenrolar aquela situação. Quanto ao Santana, com os costumeiros movimentos de bicho-preguiça, ainda quis acender outro cigarro antes de descer da viatura. 

Pedro, serelepe que nem esquilo, sacou um pequeno caderno e uma caneta do bolso a fim de começar a anotar os detalhes para começar as investigações. Também precisava averiguar possíveis pontos de vestígios deixados pelo ladrão para que a seção de perícia fosse acionada. Quando o policial estava conversando com a dona da residência, eis que o Santana surge. Pedro, que já conhecia o modus operandi do colega, se afastou para procurar alguma pista, enquanto Santana e a vítima conversavam.

— Por onde o ladrão entrou?

— Por aquela janela.

— Hum... O ladrão entrou por aquela janela?

— Sim.

— Entrou por aquela janela?

— Isso.

— O ladrão entrou por aquela janela, né?

— Foi o que eu disse.

— Hum... Então, a senhora está me dizendo que o ladrão entrou por aquela janela ali?

Após quase 10 minutos naquela lenga-lenga, a mulher começou a se irritar com o Santana. Pedro, percebendo a situação, tratou logo de puxar o colega pelo braço e ir embora, mesmo porque sabia que precisava retornar o mais rápido possível para a delegacia, pois Ricky e Evelina estavam sozinhos para atender aquele mundaréu de gente. Mal entraram na viatura, o Santana, com a cara mais cínica do mundo, ainda quis se fazer de desentendido.

— Você viu aquela mulher, Pedro? Que estresse foi aquele? Esse mundo está mesmo perdido!

Fonte: Fonte> Blog do Menino Dudu – 27.05.2024

Recordando Velhas Canções (Saudosa Maloca)


Compositor: Adoniran Barbosa

Se o senhor não está lembrado
Dá licença de contar
Que aqui onde agora está
Esse adifício alto
Era uma casa velha, um palacete abandonado
Foi aqui, seu moço
Que eu, Mato Grosso e o Joca
Construímos nossa maloca

Mas um dia
Nem quero me lembrar
Veio os homis co as ferramentas
Que o dono mandou derrubar
Peguemo tudo a nossas coisas
E fumos pro meio da rua apreciar a demolição
Que tristeza que eu sentia
Cada táuba que caía, doía no coração

Mato Grosso quis gritar
Mas em cima eu falei
Os homis tá ca razão, nós arranja outro lugar
Só se conformemos
Quando o Joca falou
Deus dá o frio conforme o cobertor

E hoje nós pega paia nas grama do jardim
E pra esquecer, nós cantemos assim

Saudosa maloca, maloca querida
Dim, dim, donde nós passemo os dias feliz de nossas vidas
Saudosa maloca, maloca querida
Dim, dim, donde nós passemo os dias feliz de nossas vidas

Saudosa maloca, maloca querida
Dim, dim, donde nós passemo os dias feliz de nossas vidas
Saudosa maloca, maloca querida
Dim, dim, donde nós passemo os dias feliz de nossas vidas
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A Melancolia e Resistência em 'Saudosa Maloca'
A música 'Saudosa Maloca', composta pelo icônico Adoniran Barbosa, é uma crônica cantada que retrata a realidade dos moradores de uma maloca, ou seja, uma habitação improvisada e precária, que é despejada para dar lugar a um 'adifício arto', um edifício alto. A letra é um relato nostálgico e triste de um dos moradores que, junto com seus companheiros Mato Grosso e Joca, é forçado a deixar o lugar que chamavam de lar.

A canção é marcada por uma melodia que transmite a melancolia da situação, mas também a resignação dos personagens diante da realidade. A expressão 'Deus dá o frio conforme o cobertor' é uma metáfora que ilustra a aceitação da condição de vida e a capacidade de adaptação dos menos favorecidos. A música também reflete a urbanização acelerada e a consequente marginalização de pessoas de baixa renda, que são deslocadas sem consideração pelas suas histórias e memórias.

'Saudosa Maloca' é um retrato social que denuncia as injustiças e a desigualdade, mas também celebra a resiliência e a solidariedade entre aqueles que compartilham do mesmo destino. Adoniran Barbosa, conhecido por suas composições que retratam o cotidiano paulistano, utiliza a linguagem coloquial e elementos do samba para dar voz aos sentimentos e desafios enfrentados pelos personagens da música.

Sílvio Romero (O rei Andrada)

(Folclore do Sergipe)

Havia um rei de nome Andrada, que tinha três filhas, e lhes disse que o que sonhassem lhe contassem todos os dias pela manhã. 

Uma delas, logo no dia seguinte, contou ao rei um sonho que foi o seguinte: “Sonhei que havia de mudar de estado nestes poucos dias, e cinco reis haviam de me beijar a mão, e entre eles el-rei meu pai.” 

O rei ficou muito zangado com a filha e lhe ordenou que, se de novo sonhasse aquilo, não lhe contasse mais, senão a mandaria matar. 

A moça tornou a sonhar coisa semelhante, e pela manhã, apesar de lhe rogarem as irmãs, ela contou o sonho ao pai. Ele mandou matá-la, e cortar-lhe o dedo mindinho que os matadores lhe deviam trazer.

Os criados do rei levaram a princesa para um ermo, e tiveram pena de a matar; cortaram-lhe somente o dedo, que levaram ao rei, deixando a moça nas brenhas. 

Ela começou a caminhar, e, muito longe, encontrou um buraco, e entrou por ele dentro, e, quanto mais entrava, mais o buraco se alargava até que ela foi dar num rico palácio. Aí ela tinha o almoço, a janta, e a ceia, sem ver ninguém, porque o palácio era encantado. Apenas ela ouvia, de um quarto que estava fechado, falar um papagaio. 

Depois de alguns dias, apareceu-lhe um lindo moço que lhe deu a chave do quarto, e disse que o abrisse e respondesse ao papagaio coisa que fizesse sentido ao que ele dissesse. O moço desapareceu. 

A princesa abriu o quarto, e o papagaio, que era muito grande e bonito, e das asas douradas, ficou muito alegre, sacudindo-se todo, e disse:

“Como vem a filha
Do rei Andrada
Tão bonita,
Tão formosa,
E tão ornada!”

— Ó meu papagaio dourado,
Eu das tuas ricas penas
Pretendo fazer um toucado.

Aí o papagaio desencantou-se no lindo moço que antes lhe tinha aparecido. O moço mandou logo vir um padre e se casou com a princesa, mandando convidar cinco reis, que no cortejo beijaram a mão de sua noiva. 

No meio deles veio o rei Andrada. Todos os outros beijaram a mão da princesa, e, quando chegou a vez do rei Andrada, a nova rainha não lhe quis dar a mão; pelo que ele ficou muito injuriado, e foi queixar-se ao rei seu amigo, e dono da casa. 

O noivo, indo perguntar a razão daquilo, a moça lhe contou a sua história, o que sabendo o rei Andrada foi pedir perdão à sua filha.

Fonte: Sílvio Romero. Contos populares do Brasil. Publicado originalmente em 1885. Disponível em Domínio Público. 

segunda-feira, 27 de maio de 2024

Daniel Maurício (Poética) 67

 

Laé de Souza (Mudanças de um tocador)

Eminiana conhecia muito bem o Laureano. Nos seus quase dez anos de casados pouca coisa tinha mudado no moço.

Era tradição, no final do dia, trancar-se no quarto e tocar pelo menos por uma hora suas músicas de rock. 

Eminiana segurava os filhos para não importunar o cantor. Se quisessem ouvir que colassem o ouvido na porta. Ferrenho crítico e de ouvido apurado, repetia por diversas vezes a mesma canção, até que se desse por satisfeito e, aí sim, tocaria numa reunião com amigos.

Por mais que insistissem, se não estivesse com os acordes perfeitos, ritmo e harmonia acasalados, não tocaria uma canção, mesmo que embalado por churrasco e bebedeira e ainda que algum se oferecesse a acompanhá-lo ou a fazer uma segunda voz.

Muitos achavam o fulano esnobe, metido e extremamente carinhoso com seu instrumento. Até brincavam: "Podem arranhar e amassar a mulher do Laureano, mas ai de quem melindrar o seu violão." Mas todo artista tem o seu estilo e o Laureano era criterioso com sua arte. E foi num animado churrasco na casa do Doidão que, pela primeira vez, Eminiana percebeu que, embalado pela caipirinha, o tocador batia um sertanejo acompanhado em coro pelos amigos. Apareceram até com uma revista de músicas do Zezé di Camargo e Luciano, que jogaram nas mãos do Laureano que se esforçava no pontear de boleros sertanejados e no arrastar de voz. A alegria era geral com o novo estilo do violeiro.

'Agora sim! Tá do jeito que a gente gosta", dizia o Doidão. Mas Eminiana não se entusiasmava nem entrava no clima. Estava no seu canto, apagada e pensativa com aquela mudança de estilo do marido. E foi no refrão de Pão de Mel, música que o marido já sabia de cor, que ela abriu um choro baixinho, daqueles que perturbam mais que um berreiro, e que acabou com a festa. Questionamentos sobre o quê? Qual o problema?... E nada. Conjecturas e comentários em cochichos, Mas foi quando o Laureano lhe perguntou qual a dor que lhe incomodava, que ela se abriu: 

"Dor de coração. E a mudança no teu estilo Laureano. Como é que tu, que só queria saber de rock e só tocava quando atingia a perfeição, me vem com estes sertanejos e melodias dengosas e ainda arranhando o violão de qualquer jeito?"

Não adiantou ele retrucar que estava em voga, A Eminiana rebateu que ele nunca foi de modismo e que, pelo que se sabia, o que estava em moda e crescendo no gosto do povo era o forró e não aquelas canções que ele estava tocando num jeito apaixonado. Embora o tocador argumentasse que forró e sertanejo eram quase iguais, a mulher chamava-lhe ã atenção de que ele era muito bom de ouvido e de viola para querer confundir os ritmos.

A festa acabou, a viola está por uns dias encostada e até empoeirando, mas não me sai da cabeça e nem da cuca da Eminiana que o jeitão do Laureano é de quem está com o coração com paixão nova, o que faz com que ela se ligue em outros comportamentos do mancebo e fique a observar suas conversas com amigas que sejam caídas por moda caipira.

Fonte> Laé de Souza. Acredite se quiser. SP: Ecoarte, 2000. Enviado pelo autor. 

Vereda da Poesia = 19 =


Trova Premiada  em Camboriú/SC, 2004

Clair Fernandes Malty 
Itapema/SC

Quando as ondas desta vida
ameaçam me tragar,
a minha carga sofrida
lanço nas águas do mar.

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Setilhas do de Natal/RN

Ademar Macedo
Santana do Matos/RN, 1951 – 2013, Natal/RN

O poeta já vem com a verve feita
por Deus Pai nosso mestre e criador;
alguns nascem com a mente de aprendiz
outros tantos já nascem professor,
e Deus vendo chegar a minha vez,
com a bênção sagrada Ele me fez:
Fuzileiro, Poeta e Trovador.

Escorado no topo da muleta,
eu me fiz um poeta e trovador;
meu passado de atleta e de boêmio
para mim, não foi nada alentador;
mas depois do meu trágico acidente,
encontrei na poesia e no repente
o remédio eficaz pra minha dor.

Como prova de amor, maior do mundo,
Cristo morre por nós, os pecadores.
Vejo ainda no manto de Maria
os vestígios de suas próprias dores;
e, dotado de toda perfeição,
pra falar deste amor e do perdão
Deus criou os poetas Trovadores.
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Aldravia de Pires do Rio/GO

Iranilda Divina Resende Paes

chuva
fina
no
milharal
saudade
desaguando!
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Soneto de Eldorado/SP

Francisca Júlia
(Francisca Júlia da Silva Munster)
Eldorado/SP (antiga Xiririca) 1874 –  1920, São Paulo/SP+

NOTURNO

Pesa o silêncio sobre a terra. Por extenso
Caminho, passo a passo, o cortejo funéreo
Se arrasta em direção ao negro cemitério...
À frente, um vulto agita a caçoula do incenso.

E o cortejo caminha. Os cantos do saltério
Ouvem-se. O morto vai numa rede suspenso;
Uma mulher enxuga as lágrimas ao lenço;
Chora no ar o rumor de um misticismo aéreo.

Uma ave canta; o vento acorda. A ampla mortalha
Da noite se ilumina ao resplendor da lua...
Uma estrige soluça; a folhagem farfalha.

E enquanto paira no ar esse rumor das calmas
Noites, acima dele, em silêncio, flutua
O lausperene mudo e súplice das almas.
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Trova de Paranavaí/PR

Dinair Leite

A trova quando é sentida
viaja em nossa emoção
Nos faz fiéis toda a vida,
une os povos, faz irmãos.
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Soneto de Portugal

Florbela Espanca
(Florbela d'Alma da Conceição Espanca)
Vila Viçosa/Portugal, 1894 — 1930, Matosinhos/Portugal

CARAVELAS

Cheguei a meio da vida já cansada
De tanto caminhar! Já me perdi!
Dum estranho país que nunca vi
Sou neste mundo imenso a exilada.

Tanto tenho aprendido e não sei nada.
E as torres de marfim que construí
Em trágica loucura as destruí
Por minhas próprias mãos de malfadada!

Se eu sempre fui assim este Mar-Morto,
Mar sem marés, sem vagas e sem porto
Onde velas de sonhos se rasgaram.

Caravelas douradas a bailar…
Ai, quem me dera as que eu deitei ao Mar!
As que eu lancei à vida, e não voltaram!…
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Quadra Popular

Quando vires a tarde triste
e a noite para chover,
são lágrimas de meus olhos
que correm por não te ver.
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Soneto de São Paulo/SP

Filemon Martins
(Filemon Francisco Martins)

REVISITANDO A INFÂNCIA

Refaço, de memória, a longa estrada, 
caminhos que trilhei desde menino. 
De manhã cedo, ainda na alvorada, 
eu preparava a terra, meu destino. 

Tempos depois, aposentei a enxada, 
para estudar, no chão diamantino. 
A vida era feliz lá na Chapada, 
quando brilhava a luz do sol, a pino... 

Tudo passou, bem sei, tão de repente, 
meu coração, parece, anda descrente 
e o sentimento, quantas vezes, trunca... 

Hoje, guardo no peito, com cuidado, 
lembranças que marcaram meu passado 
e uma saudade que não passa nunca…
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Trova Humorística, de Maringá/PR

A. A. de Assis
(Antonio Augusto de Assis)

Esta é uma antiga lorota, 
que jamais se esclareceu: 
– Se Judas nem tinha bota, 
como foi que ele a perdeu?... 
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Glosa de Fortaleza/CE

Nemésio Prata
(Nemésio Prata Crisóstomo)

UMA GLOSA "TRAIÇOEIRA"! 

Mote:
Minha vida vai sem rumo 
buscando um sonho encantado, 
em seus braços me consumo... 
sou mais um pobre enganado!
(José Feldman – Campo Mourão/PR)

Glosa:
Minha vida vai sem rumo 
pelo mar da solidão 
depois que perdi o prumo 
norte do seu coração! 

Náufrago, na maresia, 
buscando um sonho encantado, 
sonhei que você, um dia, 
voltaria pro meu lado! 

E neste sonho sem prumo 
dizia pra minha amada: 
em seus braços me consumo... 
foi só um sonho e mais nada! 

Neste sonho eu percebi 
outro "sujeito" ao seu lado, 
finalmente eu entendi: 
sou mais um pobre enganado!
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Triverso de São Paulo/SP

Alberto Marsicano

Cumes
de cumulus
se acumulam
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Martelo Agalopado de Caicó/RN

Professor Garcia
(Francisco Garcia de Araújo)

Nosso velho rojão é tão dolente
que as estrelas marejam no infinito,
chora a imagem pintada no granito
nos instantes finais do sol morrente;
as estrelas fulguram no nascente
e a montanha se cobre de beleza,
para ouvir a canção da singeleza
que o poeta verseja e não vacila,
cada verso é uma estrela que cintila
no universo da santa natureza!
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Trova do Rio de Janeiro/RJ

Bastos Tigre
(Manuel Bastos Tigre)
Recife/PE, 1882 – 1957, Rio de Janeiro/RJ

Como infeliz é esta gente             
que pensa que ser feliz        
é não dizer o que sente      
e não sentir o que diz!
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Décima de Fortaleza/CE

Francisco José Pessoa
(Francisco José Pessoa de Andrade Reis)
Fortaleza/CE, 1949 - 2020

A mais cara e perfeita maquilagem
que lambuza e restaura certo rosto
por prazer ou se não a contra gosto
torna falso o semblante da imagem
é o outono tristonho sem plumagem
é o alto do céu sem um condor
é um jarro quebrado sem a flor
é a infância sem um conto de fada
eu não vejo beleza em quase nada
que não tenha beleza interior.
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Epigrama de Salvador/BA

Clóvis Amorim
(Clovis Gonçalves Amorim)
Amélia Rodrigues/BA, 1912 – 1970, Salvador/BA

Veio ao mundo esse Raimundo 
Devido a um erro, talvez, 
E só Deus que fez o mundo 
Sabe ao certo quem o fez.
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Spina de São Paulo/SP

Solange Colombara

SER MÃE 

Abraços em braços 
que tocam, acolhem,
afastam as tristezas 

em gestos mágicos, doces sutilezas.
De mãos dadas, imortalizam olhares
disfarçados em beijos, raras riquezas
que amenizam as aflições. Saudosos
risos, para sempre nossas fortalezas.
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Trova de Curitiba/PR

Victorina Sagboni
Joaquim Távora/PR, 1932 – 2009, Curitiba/PR

Quando chora um trovador
 não é o seu pesar somente,
 canta, sofre e chora a dor
colhida de toda gente.
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Elegia* de Lisboa/Portugal

David Mourão-Ferreira
(David de Jesus Mourão-Ferreira)
1927 – 1996

ELEGIA DO CIÚME 

A tua morte, que me importa,
se o meu desejo não morreu?
Sonho contigo, virgem morta,
e assim consigo (mas que importa?)
possuir em sonho quem morreu.

Sonho contigo em sobressalto,
não vás fugir-me, como outrora.
E em cada encontro a que não falto
inda me turbo e sobressalto
à tua mínima demora.

Onde estiveste? Onde? Com quem?
— Acordo, lívido, em furor.
Súbito, sei: com mais ninguém,
ó meu amor!, com mais ninguém
repartirás o teu amor.

E se adormeço novamente
vou, tão feliz!, sem azedume
— agradecer-te, suavemente,
a tua morte que consente
tranquilidade ao meu ciúme.
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* Modernamente, elegia é uma poesia de tom terno e triste. Geralmente é uma lamentação pelo falecimento de um personagem público ou um ser querido. Vale ressaltar que na elegia também há digressões moralizantes destinadas a ajudar ouvintes ou leitores a suportar momentos difíceis. Por extensão, designa toda reflexão poética sobre a morte: a elegia, assim como a Ode, tem extensões variadas. O que as difere é que a elegia trata de acontecimentos infelizes.

Na antiguidade, a elegia era uma composição da poesia lírica monódica (ou seja, declamada pelo próprio poeta, geralmente, e acompanhada por um só instrumento musical - como a lira; ao contrário da lírica coral, apresentada por um coro, como ou sem acompanhamento musical), aparentada à épica pela sua forma. No entanto, o metro utilizado era o dístico elegíaco. Havia vários tipos de elegia, conforme seu conteúdo: elegia marcial ou guerreira, elegia amorosa e hedonista, elegia moral e filosófica, elegia gnômica...

Inicialmente definida pelo metro específico, chamado metro elegíaco, a elegia passou a designar um gênero poético que se caracterizou não pela forma, mas pelo assunto: a tristeza dos amores interrompidos pela infidelidade ou pela morte.

A elegia surgiu na Grécia antiga, com Calino de Éfeso (século VII a.C.), Tirteu e Mimnermo. Seus poemas eram cantos guerreiros que incitavam à luta. Calímaco, importante poeta alexandrino do século III a.C., foi um dos primeiros a escrever elegias no sentido do moderno termo, ou seja, como poemas líricos e tristes. Sua elegia “Os cabelos de Berenice”, da qual só restaram fragmentos, constituiu o primeiro modelo do gênero.

Entre os romanos, o primeiro grande poeta elegíaco foi Tibulo. Seus três livros sentimentais, muito lidos durante a Idade Média, influenciaram fortemente os poetas da Renascença. Foram preferidos às elegias de Propércio, que inauguraram um subgênero, com poemas ardentemente eróticos. O mais importante dos elegíacos romanos foi Ovídio: os Poemas tristes e as Cartas do Ponto, que lamentavam seu exílio, se aproximam bastante das elegias modernas.

No século XVI, a elegia transformou-se num dos gêneros poéticos mais cultivados, embora ainda pouco definido. Em Portugal, o primeiro escritor de elegias foi Sá de Miranda, mas Camões foi o principal: da edição de 1595 de suas obras completas, constam quatro elegias, tidas pelas melhores em língua portuguesa. Na França da Renascença, destacou-se no gênero Pierre de Rosnard.

Na poesia inglesa, a elegia apareceu com Astrophel, lamento fúnebre de Edmund Spenser. Durante quase três séculos produziram-se, dentro desse modelo, alguns dos maiores poemas da literatura inglesa, como Lycidas, de Milton (1638), Adonais, de Shelley (1821), sobre a morte de Keats, e muitas outras. Contudo a mais famosa elegia da língua inglesa foi Elegy Written in a Country Church Yard (1751; Elegia escrita num cemitério da aldeia), de Thomas Gray, meditação sobre a morte de gente humilde e anônima e uma das obras capitais do pré-romantismo europeu.

Em outras literaturas, a elegia assumiu características [[pagãs], como as belas e eróticas Römische Elegien (1797; Elegias romanas), de Goethe, obra prima da literatura alemã. No século XX, a obra mais importante do gênero foi sem dúvida Duineser Elegien (1923; Elegias de Duino), do poeta alemão Rainer Maria Rilke. No Brasil, o mais importante autor de elegias foi Fagundes Varela, no século XIX. Destacam-se ainda Cristiano Martins, Vinicius de Moraes, Cecília Meireles (em Solombra) e Dantas Mota, no século XX. 

Leon Tolstói (A menina-camundongo)

Um homem andava perto do rio e viu um corvo levando um camundongo pelo bico. O homem jogou uma pedra e o corvo largou o camundongo; o camundongo caiu na água. O homem tirou o camundongo da água e levou para casa. 

Ele não tinha filhos e disse:

− Ah! Quem dera esse camundongo virasse uma menina!

E o camundongo virou uma menina. 

Quando a menina cresceu, o homem perguntou para ela:

− Com quem você quer casar?

A menina disse:

− Quero casar com o mais forte do mundo.

O homem foi falar com o sol e disse:

− Sol! Minha menina quer casar com o mais forte do mundo. Você é o mais forte de todos; case com minha menina.

O sol respondeu:

− Não sou o mais forte de todos: as nuvens me escurecem.

O homem foi falar com as nuvens e disse:

− Nuvens! Vocês são os mais fortes de todos; casem com minha menina.

As nuvens responderam:

− Não, nós não somos os mais fortes de todos, o vento nos espalha.

O homem foi falar com o vento e disse:

− Vento! Você é o mais forte de todos; case com minha menina.

O vento respondeu:

− Não sou o mais forte de todos: as montanhas bloqueiam minha passagem.

O homem foi falar com as montanhas e disse:

− Montanhas! Casem com minha menina; vocês são os mais fortes de todos.

As montanhas responderam:

− Mais forte que nós é o rato. Ele nos rói.

Então o homem foi falar com o rato e disse:

− Rato! Você é o mais forte de todos; case com minha menina.

O rato concordou. O homem voltou para casa e disse para a menina:

− O rato é o mais forte de todos: rói as montanhas, as montanhas bloqueiam a passagem do vento, o vento espalha as nuvens, as nuvens escurecem o sol e o rato quer casar com você.

Mas a menina disse:

− Ah! O que vou fazer agora? Como posso casar com o rato?

Então o homem disse:

− Ah! Quem dera minha menina virasse de novo um camundongo!

E a menina virou camundongo e casou com o rato.

Fonte: Liev Tolstói. Livros de leitura para crianças. Publicado originalmente em 1864.  Disponível em Domínio Público

Recordando Velhas Canções (Tiro ao Álvaro)


Compositores: Osvaldo Molles / Adoniran Barbosa

De tanto levar frechada do teu olhar
Meu peito até parece sabe o quê?
Táubua de tiro ao Álvaro
Não tem mais onde furar
(Não tem mais)

De tanto levar frechada do teu olhar
Meu peito até parece sabe o quê?
Táubua de tiro ao Álvaro
Não tem mais onde furar

Teu olhar mata mais do que bala de carabina
Que veneno estricnina
Que peixeira de baiano
Teu olhar mata mais que atropelamento de automóver
Mata mais que bala de revórver

De tanto levar frechada do teu olhar
Meu peito até parece sabe o quê?
Táubua de tiro ao Álvaro
Não tem mais onde furar
Não tem mais

De tanto levar frechada do teu olhar
Meu peito até parece sabe o quê?
Táubua de tiro ao Álvaro
Não tem mais onde furar

Teu olhar mata mais do que bala de carabina
Que veneno estricnina
Que peixeira de baiano
Teu olhar mata mais que atropelamento de automóver
Mata mais que bala de revórver
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O Amor e Suas Metáforas em 'Tiro Ao Álvaro'
A música 'Tiro Ao Álvaro', interpretada por Elis Regina em parceria com Adoniran Barbosa, é um clássico da música popular brasileira que utiliza metáforas bem-humoradas para descrever os efeitos do amor e da paixão. A letra compara o olhar da pessoa amada a uma série de elementos perigosos e letais, evidenciando o impacto profundo que esse olhar tem sobre quem o recebe. A expressão 'táubua de tiro ao Álvaro' faz referência a uma superfície repleta de furos, sugerindo que o coração do eu lírico já foi 'atingido' inúmeras vezes pelo olhar da pessoa amada, a ponto de não haver mais espaço para novos 'ferimentos'.

Elis Regina, conhecida por sua voz marcante e interpretação intensa, dá vida à canção de maneira única, transmitindo a mistura de dor e deleite que o amor pode causar. Adoniran Barbosa, por sua vez, é reconhecido por suas composições que retratam o cotidiano e a cultura paulistana com linguagem coloquial e humor. A música faz uso de comparações exageradas, como 'mata mais do que bala de carabina' ou 'que peixeira de baiano', para enfatizar a força do olhar da pessoa amada, que é descrito como mais letal do que armas ou venenos.

A escolha de elementos tão diversos e potencialmente mortais para descrever o olhar da pessoa amada serve para ilustrar a intensidade da paixão, que pode ser tanto avassaladora quanto perigosa. 'Tiro Ao Álvaro' é uma música que brinca com a ideia de que o amor pode ser tão impactante quanto um tiro, e que o coração apaixonado é um alvo constante, sempre vulnerável aos 'tiros' do ser amado. A canção permanece como um exemplo da habilidade de Elis Regina e Adoniran Barbosa em transformar sentimentos complexos em arte, utilizando a música como veículo para expressar as nuances do coração humano.

domingo, 26 de maio de 2024

Carolina Ramos (Trovando) “15”

 

Geraldo Pereira (Consertador de Panelas)

O último artigo que escrevi nesta página do Jornal do Commercio – “Macaxeira Rosa” –, fazendo um comentário a propósito de antigos vendedores de rua da cidade, desaparecidos, em maioria, nesses tempos de globalização e de mundialização do tudo e de todos, obteve junto ao leitor generosa repercussão. Recebi alguns telefonemas e outros tantos cumprimentos pessoais, pelo resgate, sobretudo, de figuras assim, típicas da cidade provinciana, ainda, como era o Recife em décadas passadas. Foram muitas as contribuições sobre personagens que terminei omitindo, por falha mesmo da memória, haja vista os 53 anos bem vividos, já. 

Outros, também, pediram que continuasse a crônica, seguindo o tema e a tônica anterior, para complementar a lista. Faço isso, pois, em atenção àqueles que se ocupam de meus escritos e com isso me dão satisfação especial. 

Como esquecer do consertador de panelas, que passava oferecendo os seus préstimos às custas do toque cadenciado e peculiar de um pequeno varão de ferro sobre uma frigideira usada? O simples escutar dessa musicalidade característica, produzia na cozinha um rebuliço e as peças de alumínio furadas eram, de logo, selecionadas e entregues ao especialista na arte do remendo. Voltavam novas, praticamente, trazendo no fundo, sempre, o acréscimo de que precisavam e tinham a destinação habitual, a do cozimento, a depender, apenas, da receita do dia. Quando a galinha ia para a mesa, por certo que fora comprada ao homem que a cavalo trazia dois caçuás de penosas, um de cada lado. Cabia ao comprador sustentar a ave pelas asas e optar pela de peso maior, pois que o preço era unitário somente, não interessando os quilogramas a mais, de um ou de outro exemplar.

Musicalidade mais apurada, entretanto, era a do amolador de tesouras, de facas, também, que usava um instrumento assemelhado a um realejo, do qual nasciam as notas da oferta. Um desses tinha parte do antebraço amputada, mas com um revestimento de couro, uma luva apropriada, manuseava a peça, cega por hora. Usava um carrinho que vinha empurrando e ao primeiro sinal de serviço a ser realizado, invertia a posição, alinhava a polia grande de borracha e com o pé num pedal artesanal girava o esmeril. Na realidade, terminava desgastando as lâminas a serem amoladas e em casa de toda a gente algumas das facas não serviam mais para atender às visitas ou aos mais cerimoniosos da família. Eram facas da cozinha. 

O vendedor de pirulitos, com uma tábua toda furada e os doces cônicos encaixados, usava um apito e ia passando adiante o seu produto de fabricação caseira, que pregava nos dentes.

Já o homem das vassouras e dos espanadores era diferente, trazia um material de cabos coloridos e de pilosidade formando desenhos, para o chão da casa e a poeira dos móveis, além de vender, também, o vasculhador, que passado no teto sacudia as aranhas, afugentando-as das teias. Tinha um grito característico, chamando a atenção para a sua variedade em material assim, destinado à coleta do lixo doméstico, o grosso e o fino. Mas a oferta da lã de barriguda para travesseiro era cantada em versos sem muita rima: “Eu tenho lã de barriguda/Para travesseiro.” E como não havia a espuma de hoje, sintética e mais prática, conseguia boa freguesia nas ruas por onde passava. Era preciso encher esses apetrechos, que nos servem à cabeça, para um bom e reparador sono, a intervalos de tempo certos.

O peixe, do mesmo jeito, chegava à porta de casa, vinha em dois balaios, os quais, sustentados por cordas à ponta de um suporte de madeira carregado às costas, pendiam livres, quase, balançando, pra lá e pra cá, à medida que o vendedor andava pelas ruas e oferecia o produto gritando. Alguns desses homens do peixe faziam verdadeiros malabarismos com os balaios. Paravam, então, e apresentavam as espécies e as espécimes de que dispunham, utilizando-se depois de uma tábua para preparar as postas, tudo segundo as preferências do freguês. Peixe fresco, ao tempo, sem a ação, às vezes deletéria, do gelo, que da carne branca rouba o sabor. Com os anos, apareceram os frigoríficos e a albacora popularizou-se na mesa do recifense. Mas, o nome desse bicho dos mares era muito aplicado como apelido para as mulheres gordas, ricas em adiposidades.

E foi de Leda Alves a lembrança do vendedor de cambará: “Olha a bolinha de cambará/Dois pacotes é um vintém...” E do poeta Paulo Montezuma a saudade do acendedor de lampiões nas ruas do Recife, iluminando os passeios da gente faceira. Não esqueço, todavia, do acendedor das lâmpadas, já, nos velhos postes de meu bairro, ligando as chaves e alumiando o tempo.

Fonte: Geraldo Pereira. A medida das saudades. Recife/PE, 2006. Disponível no Portal de Domínio Público