quinta-feira, 4 de julho de 2024

Recordando Velhas Canções (Pau de arara)


Compositores: Carlos Lyra e Vinicius de Moraes

Eu um dia cansado que eu tava
Da fome que eu tinha
que eu num tinha nada
que fome que eu tinha
que seca danada no meu Ceará
Eu peguei
e juntei os restinhos de coisas que eu tinha
duas calça velha e uma violinha
e num pau-de-arara toquei para cá

E de noite eu ficava na praia de Copacabana
Zanzando na praia de Copacabana
Dançando o xaxado pra moças oià

Virge Santa que a fome era tanta
Que nem voz eu tinha
Meu Deus quanta moça
Que fome que eu tinha
Que seca danada no meu Ceará

Foi aí que eu resolvi comer gilete. 
Tinha um compadre meu lá de Quixeramobim, que ganhou um dinheirão comendo gilete na praia de Copacabana.
De dia ele ia de casa em casa pedindo gilete velha e de noite ele comia aquilo tudinho pro pessoal ver. 
Eu num sei não Elis, mas eu acho que ele comeu tanto, que quando eu cheguei lá na praia, aquele pessoal já tava até com indigestão, de tanto ver o camarada comer gilete.
Uma vez, eu tava com tanta fome que falei assim prum moço que ia passando:
-Decente, deixa eu cume uma giletezinha, pra vosmecê vê?
Então ele me respondeu assim:
- Sai prá lá pau-de-arara. Tú não te manca não?
- Oh! Distinto, só uma, que eu num comi nadinha inda hoje.
- Tú enche, hein, pau-de-arara?
Aquilo me deixou tão aperriado, que se num fosse o amor que eu tinha na minha violinha, eu tinha arrebentado ela na cabeça daquele pai-d'égua.

Puxa vida não tinha uma vida
pior do que a minha
Que vida danada, que fome que eu tinha
Zanzando na praia pra lá e pra cá.
Quando eu via toda aquela gente
num come que come, eu juro que tinha
saudade da fome, da fome que eu tinha
No meu Ceará
E daí eu pegava e cantava
e dançava o xaxado
E só conseguia porque no xaxado
A gente só pode é mesmo se arrastá

Virge Santa
Que a fome era tanta
que até parecia que mesmo xaxando
meu corpo subia igual se tivesse
querendo voar

Às veiz a fome era tanta, que vorta e meia a gente rumava uma briguinha pra ir comer a bóia no xadrez.
Êta quentinho bom na barriga! Mas, com perdão da palavra, a gente devorvia tudo dispois, porque a bóia já vinha estragada... Mas enquanto ela ficava ali dentro da barriga, quietinha... Que felicidade!
Não, mas agora as coisas estão miorando. Tem uma senhora muito bondosa lá no Leblon, que gosta muito de ver eu comer é caco de vrido. Isso é que é bondade da boa! Com isto eu já juntei uns 500 mil réis.
Quando eu tiver mais um pouquinho, vou simbora, vorto pro meu Ceará.

Vou simbora pro meu Ceará
Porque lá tenho um nome
Aqui num sou nada, sou só Zé com fome
Sou só pau-de-arara, nem sei mais cantá.
Vou picar minha mula, vou antes que tudo arrebente
porque to achando que o tempo tá quente,
Pior do que anda num pode ficar.
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A Jornada de um Migrante Nordestino: A Luta pela Sobrevivência em 'Pau De Arara'
A música 'Pau De Arara', interpretada por Ary Toledo, retrata a dura realidade de um migrante nordestino que, cansado da fome e da seca no Ceará, decide buscar uma vida melhor no Rio de Janeiro. A letra é um relato sincero e doloroso das dificuldades enfrentadas por muitos nordestinos que, na esperança de encontrar melhores condições de vida, se aventuram em outras regiões do Brasil. O 'pau de arara' mencionado no título e na letra é uma referência ao meio de transporte precário utilizado por muitos migrantes, que viajavam em caminhões adaptados, muitas vezes em condições desumanas.

Ao chegar ao Rio de Janeiro, o protagonista se depara com uma realidade igualmente difícil. Ele passa as noites na praia de Copacabana, tentando ganhar a vida dançando e cantando o xaxado, uma dança típica do Nordeste. A fome, que parecia insuportável no Ceará, continua a ser uma presença constante em sua vida, e ele se vê zanzando pela cidade, observando a abundância ao seu redor e sentindo saudades até mesmo da fome que conhecia em sua terra natal. A letra transmite um sentimento de desespero e desilusão, mostrando que a migração não trouxe a solução esperada para seus problemas.

A música também aborda a perda de identidade e dignidade que o migrante enfrenta. No Ceará, ele tinha um nome e uma identidade, mas no Rio de Janeiro, ele se sente como 'só Zé com fome', um ninguém. A decisão final de retornar ao Ceará, apesar das dificuldades, reflete um desejo de recuperar sua identidade e dignidade, mesmo que isso signifique voltar à fome e à seca. 'Pau De Arara' é uma poderosa narrativa sobre a luta pela sobrevivência, a busca por dignidade e a saudade de casa, temas que ressoam profundamente na experiência de muitos migrantes nordestinos.

Carlos Lyra ainda vivia sua fase de maior criatividade — que coincidiu com o melhor período do contemporâneo Tom Jobim — quando começou a sua parceria com Vinícius de Moraes. Então, certo dia, ao entregar ao poeta uma fita com várias melodias para serem letradas, dele recebeu a sugestão de transformarem aquele repertório num musical.

Assim surgiu “Pobre Menina Rica”, com Vinícius criando-lhe as letras, o enredo e os personagens numa estada em Petrópolis, onde também criara os versos de “Garota de Ipanema”. Com o papel título destinado a Nara Leão, a peça narrava a historinha de uma solitária menina rica, que se apaixonava por um mendigo, integrante de uma inacreditável comunidade de desvalidos, estabelecida ao lado de sua casa.

Com tal enredo servindo de pretexto para a apresentação de uma série de belas canções, como “Primavera”, “Maria Moita”, “Sabe Você” e “Samba do Carioca”, a peça foi inicialmente exibida no Teatro Maison de France, sendo depois levada para o Teatro de Bolso, quando vários atores seriam substituídos. Entre estes estava o paulista de Bauru, Ary Toledo, que pediu a Lyra para gravar “Pau de Arara”, a música que cantava no palco.

Essa composição era inspirada num tipo real, um pobre nordestino que sobrevivia dançando xaxado na praia de Copacabana e que, de repente, teve a ideia de melhorar seus rendimentos.., comendo gilete.

Em três longas estrofes, entremeadas por trechos recitados, a canção desfia espirituosamente as desventuras do personagem, que no final promete um sensato retorno às origens: “Vou-me embora pro meu Ceará / porque lá tenho um nome / e aqui não sou nada, sou um Zé-com-Fome.”

Depois de uma gravação realizada em estúdio e lançada num compacto, Ary Toledo voltou a gravar “Pau de Arara”, desta vez ao vivo, no Teatro Record, durante o programa “O Fino da Bossa”, versão que ganhou gargalhadas estrepitosas da plateia e de Elis Regina, o que acabou enriquecendo em alegria e espontaneidade a performance do intérprete.

O sucesso do disco foi tamanho, que fez muita gente pensar que Ary Toledo era realmente “um mísero cearense”, autor de “O Comedor de Gilete”, nome pelo qual a composição ficou conhecida.

Relembrando “Pobre Menina Rica”, Carlinhos Lyra conta que, ao tomar conhecimento do enredo da peça (na qual o mendigo seresteiro), ponderou com o parceiro: “Mas, Vinícius, você não acha assim meio artificial esse negócio de uma menina rica e bonitona se apaixonar por um mendigo?” Ao que o poeta respondeu: “Acontece que esse é um mendiguinho muito simpático, incrementado, arrumadinho”, e, reforçando a argumentação, fulminou: “Além do mais era primavera parceirinho, primavera, entendeu?” (A Canção no Tempo – Vol. 2 – Jairo Severiano e Zuza Homem de Mello – Editora 34).

Fontes:

quarta-feira, 3 de julho de 2024

Isabel Furini (Poema) 64: Sonhos

 

Mensagem na Garrafa = 123 =


Antonio Brás Constante 
Canoas/RS

A SIMPLES CORAGEM DE SORRIR

Sorrir é uma prova de coragem. Neste mundo pessimista e individualista, ter forças para sorrir nos faz compartilhar com nossos semelhantes à janela de nossas almas. O sorriso é um símbolo de carinho. É universal. Une as pessoas e embeleza a vida.

Pena que este gesto tão nobre e bonito, cada vez mais se perca dentro daqueles que se guiam pelo ódio e pelo preconceito. Para eles, um simples olhar já é motivo para externar toda sua raiva. Um sorriso é um sinal de fraqueza que deve ser combatido com agressividade insana, deboche ou tola antipatia. Não consideram os outros como sendo seus semelhantes, apenas intrusos aos seus domínios ilusórios. Comportam-se como animais. Não se enquadrando nas definições que conhecemos sobre humanidade. Pois preferem atear fogo em dicionários a descobrir suas definições. Pisar em sentimentos a ter que estender a própria mão.

Tais seres dantescos parecem estar sempre dispostos a tirar a luz de quem cruza o seu caminho nefasto. O único sorriso que conhecem é o do desprezo. Pobres essencialmente de espírito. São parasitas que apodrecem as relações entre as pessoas. Espalhando medo, crueldade e selvageria por onde passam. E é neste mundo louco em que vivemos, que a voz silenciosa do sorriso deve emergir com cada vez mais força. Combater o caos com civilidade, desespero com esperança, desamparo com auxilio, mas sempre com um cartão de apresentações saído de nossos corações e expresso em nossos lábios. O sorriso é uma arma de paz, que não mata, mas desarma. Encanta. Purifica sentimentos. Basta sabermos usá-lo, basta querermos usá-lo.

Enfim, mesmo vivendo em meio a uma realidade que cada vez mais nos fecha em conchas de solidão, quem sabe se esta demonstração de coragem oferecida gratuitamente e gentilmente aos nossos irmãos de vida, moradores e tripulantes desta pequena e grande nave chamada Terra, não consiga transformar as caras fechadas de tantas pessoas (meras fachadas vazias e tristes), em fachos de um singelo brilho de amizade, criando assim, um mundo onde nossos filhos tenham mais motivos para sorrir do que para chorar. O simples gesto de sorrir não depende de palavras, só depende de nós. 

Você já sorriu hoje?

Vereda da Poesia = 51 =


Trova Humorística de Maringá/PR

A. A. DE ASSIS

Entre o passado e o futuro,
mudou o amor um bocado:
- o que o vovô fez no escuro,
faz o neto, escancarado!
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Poema de Vila Velha/ES

APARECIDO RAIMUNDO DE SOUZA

À espera...

Aqui me pego, à tua saudade, esperando
que venhas e traga ternura em teus traços...
Porém, passam-se as horas... E já desanimado
Cismo que não chegarás até meus braços

E meus anseios vão se arrastando
em tua ausência c’os meus embaraços...
Tão depressa as horas foram passando,
Que até ouço a saudade e seus tristes passos...

Perto de mim, uma pá de gente segue cruzando
indiferente ao anseio de que desejo ver-te
e que aos poucos estou me definhando...

Esgotou-se o tempo... Esperar-te foi em vão.
Mas a angústia louca de amanhã rever-te,
faz regressar feliz este meu coração!...
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Aldravia do Rio de Janeiro/RJ

ELVANDRO BURITY

tentando
ser
amado
cobiço
seu
coração
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Soneto de Leopoldina/MG

AUGUSTO DOS ANJOS
(Augusto de Carvalho Rodrigues dos Anjos)
Cruz do Espírito Santo/PB (1884 – 1914) Leopoldina/MG

Asa de Corvo

Asa de corvos carniceiros, asa
De mau agouro que, nos doze meses,
Cobre às vezes o espaço e cobre às vezes
O telhado de nossa própria casa...

Perseguido por todos os reveses,
É meu destino viver junto a essa asa,
Como a cinza que vive junto à brasa,
Como os Goncourts, como os irmãos siameses!

É com essa asa que eu faço este soneto
E a indústria humana faz o pano preto
Que as famílias de luto martiriza...

É ainda com essa asa extraordinária
Que a Morte — a costureira funerária —
Cose para o homem a última camisa!
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Trova Premiada  em Natal/RN, 2001

J. STAVOLA PORTO 
(Niterói/RJ)

Labaredas, nas queimadas
da floresta em combustão,
lembram mãos agoniadas,
rogando aos céus proteção.
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Poema de São Paulo/SP

FILEMON FRANCISCO MARTINS

O amor

É como a flor que nasce no jardim
e vai florindo com cuidado e zelo.
O amor também floresce e cresce assim
com carícia, paixão, amor, desvelo...

É preciso cuidar, plantando, enfim,
compreensão, carinho e defendê-lo
da praga do ciúme tão ruim
que teima em desfazer e ser, sem sê-lo.

Um grande amor toda a beleza exprime,
porque o amor faz a vida mais sublime
e exige inspiração de quem o quer.

A vida a dois há de ficar mais bela,
se houver no coração a flor singela
e um sorriso feliz de uma MULHER.
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Quadra Popular

Toda vez que considero
que tenho de te deixar,
me foge o sangue da veia,
e o coração do lugar.
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Soneto de São Paulo/SP

PEDRO XISTO
(Pedro Xisto Pereira de Carvalho)
Limoeiro/PE, 1901 – 1987, São Paulo/SP

Unidade

Do crepúsculo as faixas carregadas
eu desato, as primícias perseguindo
do sonho a que se volva o dia findo
(já não terá o rei suas espadas).

De toda diferença, ora, prescindo:
disputem outros sobre as bem-amadas
(ai! alma, em dúbio sangue sobrenadas...)
ou se é o rosto, sob os véus, mais lindo.

A pouco e pouco, afrouxaram-se estas malhas;
os olhos as trespassam, de tão falhas;
e um só, de volta em volta, o meu caminho.

As mãos, eu pouse — ó Vida! — em frescas toalhas
eu, contra o peito, quando me agasalhas
definitivamente, sou sozinho.
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Trova de Santos/SP

CAROLINA RAMOS

Ante o horror de uma queimada,
tenho a impressão verdadeira
de ver a Pátria enlutada,
sem mais verde na bandeira!
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Poema de Niterói/RJ

JACY PACHECO
Duas Barras/RJ, 1910 – 1989, Niterói/RJ

Primavera do Mundo 

Primavera do mundo, tu virás!
Talvez não venhas na tranquilidade
de um dia claro e musical.
Trarás as mãos ensanguentadas
e as rosas se abrirão todas vermelhas.

Mas chegarás!
E extirparás a tirania
e todos os princípios egoístas.
E as máquinas da paz
revolverão o solo redimido
pelo sangue de irmãos idealistas.

Primavera do mundo, eu te entrevejo
numa nesga de sol recém-nascido,
anunciando o bem dos homens livres,
a vitória do amor, do ideal fecundo!   

Aguardo o teu instante triunfal
primavera do mundo!
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Haicai de Caucaia/CE

JOÃO BATISTA SERRA

Azulão contempla
O firmamento azulado:
Deseja ser livre.
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Sextilha Agalopada de Natal/RN

JOSÉ LUCAS DE BARROS
Serra Negra do Norte/RN, 1934 – 2015, Natal/RN

Ontem vi, na internet, em lindas cores,
a beleza da aurora boreal...
Lembrei todas as flores do sertão
e os encantos do verde litoral
para expor, em palavras coloridas,
uma espécie de língua universal.
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Trova de Campinas/SP

ARTHUR THOMAZ

Poeta! Em que mundo vives?
Vais flanando, sonhador,
lapidando feito ourives
os versos de um grande amor…
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Glosa de Fortaleza/CE

NEMÉSIO PRATA

MOTE 
Caminhando pro horizonte 
quis a minha dor levar, 
lá eu encontrei uma fonte, 
sem água pra me aliviar! 
José Feldman 
(Campo Mourão/PR)

GLOSA
Caminhando pro horizonte, 
sedento, foi que eu dei fé 
que um rio, descendo um monte, 
corria até o seu sopé! 

A vida, já por um fio, 
quis a minha dor levar 
pra junto daquele rio 
pra minha sede passar! 

Dei a volta pelo monte 
mas cruel foi o destino; 
lá eu encontrei uma fonte, 
vazia..., que desatino! 

Qual foi a minha agonia 
quando pude constatar 
que a fonte estava vazia; 
sem água pra me aliviar!
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Aldravia de Itajaí/SC

ANNA RIBEIRO

nas
entrelinhas
em
busca
de
mim
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Soneto de Recife/PE

JORGE WANDERLEY
(Jorge Eduardo Figueiredo de Oliveira Wanderley)
1938 – 1999

Pátio secreto

Vejo-o talvez em sonho, quando nada
Parece mal: o mesmo pátio, as sombras,
O chafariz envelhecido, a pátina
Que a algum luar de mármore responde.

O muro, o musgo, a vinha, o abandono
Da pedra e a quase fria madrugada
Passada em névoa ao cinzento do outono,
O sono que flutua em tudo, em nada.

Tudo está morto e vivo pela imagem,
Recanto, quadro, música, memória
Que visito dormindo e sem matéria.

Outros o viram, também. De passagem
Deixaram algo oculto a sua história,
Marca secreta, assinatura etérea.
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Trova Premiada  em São Jerônimo da Serra/PR, 1992

ADELIR COELHO MACHADO 
São Gonçao/RJ, 1928 - 2003, Niterói/RJ

Nosso grisalho carinho
é bênção que Deus nos deu:
és presença em meu caminho,
eu sou presença no teu!
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Poema de Campinas/SP

NORTON CORDEIRO

Maria rainha

Maria rainha não minha
Maria de outro, seu dono,
Vigilante perspicaz e cruel
Que não lega a ninguém o direito
De usufruir, mesmo um pouco
Pequeno que seja,
Do toda daquela sensual nobreza.

Maria rainha não minha
vã esperança - mas viva -
deste plebeu sonhador que anseia,
num dia de sorte reversa,
despistar seu cruel ditador,
pra num rompante de pura ousadia
fazê-la aia do meu amor.
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Triverso de de Guarulhos/SP

JOÃO TOLOI

Silêncio na estação
Sobre o trem que parte
A chuva de outono.
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Setilha Sobre o Mar, de Dom Basílio/BA

CREUSA MEIRA 

Primeiro dia do ano
As flores eu vou levar
São as minhas oferendas
Para a rainha do mar
Jogo gotas de alfazema
Leio um belo poema
Nas ondas a caminhar
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Trova de Santos/SP

CLÁUDIO DE CÁPUA
São Paulo/SP, 1945 – 2021, Santos/SP

Em noite alta... madrugada,
contemplo a lua contrito:
- Barca de prata aportada
nos segredos do infinito.
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Hino de Limeira/SP

Música: Prof.ª Dyrcéia Ricci Ciarrochi
Letra: Dr. Guilherme Mallet Guimarães

Chão bendito de berços gloriosos
Tua origem uma linda limeira,
Fundada por labores ditosos
És cidade tão bela e faceira

Frutas doces, colhemos aos montes
Pomares verdejantes com flores
Laranjais circundam as fontes
Acariciando a vida de amores.
 
Tuas indústrias crescem e agigantam
As grandezas de nosso porvir
Jardins - Praças todos se encantam
Com músicas sonoras a ouvir.

Chão bendito de berços gloriosos
Tua origem uma linda limeira,
Fundada por labores ditosos
És cidade tão bela e faceira

Povo amigo de ação relevante
Nossas escolas padrões elevados
Nossa fé seguirá triunfante
Sendo os mestres heróis abençoados.

Chão bendito de berços gloriosos
Tua origem uma linda limeira,
Fundada por labores ditosos
És cidade tão bela e faceira

Limeira! Limeira!
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Hino de Limeira: Uma Ode à Terra de Frutas e Indústrias
O 'Hino de Limeira - SP' é uma celebração poética e musical da cidade de Limeira, localizada no interior do estado de São Paulo. A letra exalta as belezas naturais, a prosperidade econômica e o espírito comunitário da cidade. Desde o início, a música destaca a origem gloriosa de Limeira, referindo-se a ela como um 'chão bendito de berços gloriosos'. A palavra 'limeira' no contexto histórico remete à árvore de limão, simbolizando a fertilidade e a abundância da região.

O estribilho da música enfatiza a riqueza agrícola de Limeira, mencionando as frutas doces e os pomares verdejantes. A imagem dos laranjais circundando as fontes sugere uma paisagem idílica e fértil, onde a natureza e a vida humana coexistem em harmonia. Essa parte da letra não só celebra a produção agrícola, mas também evoca um sentimento de amor e carinho pela terra.

Além das belezas naturais, o hino também destaca o crescimento industrial da cidade, mencionando que as indústrias 'crescem e agigantam'. Isso reflete a modernização e o desenvolvimento econômico de Limeira, que se tornou um importante polo industrial. A letra também faz referência à educação e à fé, exaltando as escolas de padrões elevados e a fé triunfante do povo limeirense. A música termina com um chamado apaixonado à cidade, repetindo o nome 'Limeira' como um grito de orgulho e pertencimento.  https://www.letras.mus.br/hinos-de-cidades/564261/ 
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Poetrix de João Pessoa/PB

REGINA LYRA

Afinado

Nas cordas do violão
o músico faz de um chorinho
belo sorriso.
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Soneto do Rio de Janeiro/RJ

BASTOS TIGRE
(Manuel Bastos Tigre)
Recife/PE, 1882-1957, Rio de Janeiro/RJ

Amor de pronto

Suplicas que eu te escreva e que te diga
Se te não quero mais com o mesmo ardor.
Pedes "três linhas... uma frase amiga,
Um rápido bilhete... o quer que for."

Nada perdeu da intensidade antiga
Meu sempre novo e apaixonado amor;
O ofício de te amar não me fatiga
E além do mais eu sou conservador.

Dizes estar de tanta espera farta;
Que os homens, às amantes sempre infiéis,
Só merecem (que horror!) que um raio os parta.

Não! Meu silêncio tem razões bem cruéis:
Ando "por baixo" e custa cada carta
Tinta, papel e um selo de cem réis.
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Trova Humorística de São João de Meriti/RJ

CLEBER ROBERTO DE DE OLIVEIRA

Fiquei surpreso!... Foi chato,
com gente no "reservado",
ter de correr para o mato
e ler num galho: "OCUPADO"!
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Fábula em Versos da França

JEAN DE LA FONTAINE
Château-Thierry, 1621 – 1695, Paris

O lobo e o cordeiro

De ardente sede obrigados,
Foram ao mesmo ribeiro
A beber das frescas águas
Um lobo e mais um cordeiro.

O lobo pôs-se da parte
De onde o regato nascia;
O cordeiro, mais abaixo,
Na veia de água bebia.

A fera, que desavir-se
Com a mansa rês desejava,
Num tom severo e medonho,
Desta sorte lhe falava:

«Por que motivo me turvas
A água que estou bebendo?»
E o cordeirinho inocente
Assim respondeu, tremendo:

«Qual seja a razão que tenhas
De enfadar-te, não percebo!
Tu não vês que de ti corre
A mim esta água que bebo?»

Rebatida da verdade,
Tornou-lhe a fera cerval:
«Aqui haverá seis meses,
Sei de mim disseste mal.»

Respondeu-lhe o cordeirinho,
De frio medo oprimido:
«Nesse tempo, certamente,
Ainda eu não era nascido!

— Que importa? Se tu não foste,
Disse o lobo carniceiro,
Foi teu pai.» E, por aleives,
Lacera o pobre cordeiro!

Esta fábula dá brados
Contra aqueles insolentes
Que por delitos fingidos
Oprimem os inocentes.

(tradução: Malhão)
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Colaborações: gralha1954@gmail.com

Contos das Mil e Uma Noites (O falso cego e os cegos de nascença)

Meu irmão Kafat é cego de nascença e era um dos chefes da confraria dos mendigos em Bagdá. Um dia, Alá levou-o a uma mansão. Bateu com seu cajado na porta. Perguntaram do interior da casa: “Quem é?” Meu irmão não respondeu.

Devo dizer-lhe, ó Comandante dos Fiéis, que meu irmão Kafat, que era o mais astucioso dos mendigos, tinha um sistema. Batia na porta, mas nunca respondia a quem perguntasse: “Quem está aí”?” Ficava calado até que alguém abrisse a porta, sabendo que se dissesse: “É um mendigo pedindo esmola”, os moradores não abririam, mas gritariam: “Que Alá tenha pena de ti”, e o mandariam seguir seu caminho. 

Assim, quando, naquele dia, alguém perguntou: “Quem é?” meu irmão não respondeu. Após um momento, a porta foi aberta por um homem de cara tão amarrada que, se meu irmão a pudesse ter visto, com certeza teria ido embora sem nada pedir. Mas cada um carrega seu destino pendurado ao pescoço.

O homem perguntou: “Que queres?” 

Kafat respondeu: “Alguma esmola em nome do Compassivo.” 

– És cego? perguntou o homem.

- Sou cego e muito pobre.

- Dá-me a mão e conduzir-te-ei.

Meu irmão estendeu a mão, e o homem conduziu-o, uma escada após a outra, até um alto terraço. Kafat estava sem fôlego, mas animava-o a esperança de receber as sobras de um grande festim.

Finalmente, o dono da casa perguntou: “Que queres, ó cego? 

- Esmolas, pelo amor de Alá, respondeu meu irmão, surpreso.

- Possa Alá abrir outra porta para ti.

- Ó coisa, disse Kafat com indignação, não me podias ter dado essa resposta quando estávamos embaixo?

- Ó sujeira mais vil, retrucou o outro, não podias responder quando perguntei quem estava batendo na porta?

- Se não quiseres ser chutado como uma bola, trata de sair daqui por ti mesmo, ó desastrado conjunto de misérias.

Meu pobre irmão, cego como é, teve que descer as escadas sozinho. Quando faltavam vinte degraus, escorregou, rolou pelo restante da escada e bateu a cabeça no chão. Saiu pela rua, queixando-se amargamente. Breve, dois de seus companheiros juntaram-se a ele e perguntaram-lhe o que tinha. Contou-lhes, e acrescentou: “Agora, meus amigos, devo ir para casa apanhar algum dinheiro para comprar comida neste dia funesto. Terei que mexer em nossas economias, as quais já são bastante gordas, como sabeis, e foram colocadas sob minha guarda.”

Ora, durante todo esse tempo, o homem que havia tratado meu irmão com tanta vileza - e que era um grande bandido seguia-o pela rua sem ser visto nem por ele nem pelos dois amigos cegos que o acompanhavam. Continuou a segui-los até a casa de meu irmão; e quando os três entraram lá, insinuou-se atrás deles antes que fechassem a porta. Meu irmão retirou o dinheiro da confraria do esconderijo, e os três verificaram que já somava 10 mil dinares. Ficaram com algumas moedas e recolocaram o tesouro no seu esconderijo. Só então sentiram a presença do intruso. Pegaram-no e, mesmo cegos, conseguiram dominá-lo e começaram a gritar: “Ladrão! Ladrão! Socorro, ó muçulmanos, socorro!” 

Muitos vizinhos acorreram. Vendo isto, o bandido cerrou os olhos, fingindo ser cego também, e começou a gritar: “Por Alá, ó amigos, sou um mendigo cego, sócio destes três. Eles estiveram tentando matar-me para ficarem com minha parte nas economias que fizemos juntos e que já somam 10 mil dinares. Juro-o por Alá, pelo sultão, pelo emir! Levem-me, oh, levem-me ao uáli.”

Nesse ínterim, os guardas já haviam chegado e arrastaram os quatro querelantes até o palácio do uáli. “Quem são esses homens?” perguntou o uáli. 

O ladrão respondeu logo: “Justo e penetrante uáli, ouve-me e saberás a verdade. Contudo, como irias acreditar em mim antes de submeter-me à tortura? Manda bater em mim, primeiro, depois nestes três companheiros meus e então contar-te-emos toda a verdade.”

- Estendei este homem no chão e batei nele, já que o deseja tanto, ordenou o uáli.

Os guardas apanharam o homem, estenderam-no no chão e cobriram-lhe o corpo com chicotadas. Após um momento, o homem começou a gemer e abriu um olho. Após outros golpes, abriu deliberadamente o outro olho. 

Vendo isso, o uáli gritou furioso: “Que vergonha é essa!” 

O ladrão gemeu: “Parai de bater em mim, e contarei tudo.”

O uáli deu as ordens devidas, e o homem pôs-se de pé e disse:

“Somos quatro ladrões que fingimos ser cegos para extorquir esmolas e entrar nas casas e olhar as mulheres na intimidade. Então, corrompemo-las e agarramos elas. Depois, roubamo-las e preparamos planos para os assaltantes. Estivemos fazendo isso por muito tempo, e já juntamos 10 mil dinares. Hoje, pedi minha parte; mas eles se recusaram a entregá-la e teriam batido em mim até me matar se os guardas de nosso senhor uáli não me tivessem socorrido. Essa é toda a verdade que meus companheiros confirmarão quando forem submetidos à tortura. Eles são bastante duros e manterão os olhos fechados por muito tempo.”

Enganado pelo audacioso ladrão, o uáli mandou bater em meu irmão até que perdeu os sentidos. Quando voltou a si, recebeu mais trezentas chicotadas, não obstante seus gritos de que era cego de nascença. Seus dois companheiros foram submetidos ao mesmo tratamento, sem abrir, naturalmente, os olhos. Por excesso de perversidade, o ladrão exortava-os a abrir os olhos, repetindo:

“Respeitai nosso senhor uáli. Abri os olhos. Confessai a verdade.”

O uáli mandou apanhar o dinheiro da confraria na casa de Kafat, entregou a quarta parte, isto é, 2.500 dinares, ao bandido e ficou com o saldo.

Finalmente, dirigiu-se a meu irmão e a seus dois companheiros nestes termos:

“Miseráveis embusteiros, comeis o pão que é uma dádiva de Alá e cometeis os piores delitos em seu santo nome, fingindo ser cegos. Dai o fora daqui e não sejais mais vistos em qualquer parte de Bagdá.”

Fonte: As Mil e uma noites. (tradução de Mansour Chalita). Publicadas originalmente desde o século IX. Disponível em Domínio Público

Recordando Velhas Canções (Corcovado)

 
Compositor: Tom Jobim

Um cantinho e um violão
Este amor, uma canção
Pra fazer feliz a quem se ama
Muita calma pra pensar
E ter tempo pra sonhar
Da janela vê-se o Corcovado
O Redentor, que lindo

Quero a vida sempre assim
Com você perto de mim
Até o apagar da velha chama

E eu que era triste
Descrente deste mundo
Ao encontrar você, eu conheci
O que é felicidade, meu amor
O que é felicidade, o que é felicidade

E eu que era triste
Descrente deste mundo
Ao encontrar você, eu conheci
O que é felicidade, meu amor
= = = = = = = = = = = = = = = = = = = =  = 

A Serenidade do Amor em 'Corcovado’

Provedor de melodias para versos alheios, Tom Jobim é também o autor das letras de alguns de seus maiores sucessos. Este é o caso do samba “Corcovado, um cartão postal do Rio de Janeiro, poética e musicalmente impregnado pelo espírito da bossa nova: “Um cantinho, um violão /esse amor, uma canção / pra fazer feliz a quem se ama / muita calma pra pensar / e ter tempo pra sonhar / da janela vê-se o Corcovado / o Redentor, que lindo.”

Sobre esta letra há duas curiosidades a assinalar: originalmente o primeiro verso dizia: “um cigarro, um violão.” Nos ensaios para a gravação, João Gilberto convenceu Tom Jobim a mudá-lo para “um cantinho, um violão”. Já os versos “da janela vê-se o Corcovado / o Redentor, que lindo”, foram inspirados pela paisagem vista das janelas do apartamento em que o autor morava na ocasião. “Pouco depois, a construção de um edifício em frente acabou com a paisagem”, comenta Paulo Jobim, filho de Tom. Por sua vez, esse apartamento, situado na Rua Nascimento Silva, 107, em Ipanema, acabou entrando para a letra do samba “Carta ao Tom 74”, de Toquinho e Vinícius de Moraes.

Começando com uma introdução que o identifica de imediato e é parte integrante da composição — um desenvolvimento melódico sobre a harmonia dos compassos iniciais do tema principal — , “Corcovado” encantou dezenas de músicos e cantores no Brasil e no exterior. Daí a sua vasta discografia, que o faz figurar entre as canções mais conhecidas de Antônio Carlos Jobim, destacando-se entre os seus intérpretes João Gilberto (o primeiro), o próprio Tom (em quatro versões, uma delas com a participação de Elis Regina) e, com o título de “Quiet Nights of Quiet Stars”, um vasto elenco de cantores (Sinatra, Ella Fitzgerald) e músicos de jazz (Stan Getz, Miles Davis, Teddy Wilson).

Em 1987, num levantamento realizado por Jairo Severiano e Vera de Alencar, “Corcovado” ostentava a terceira colocação entre as canções mais gravadas de Jobim, superado apenas por “Garota de Ipanema” e “Samba de uma Nota Só” (A Canção no Tempo - Vol. 2 - Jairo Severiano e Zuza Homem de Mello- Ed. 34).

A música 'Corcovado', composta por Tom Jobim, é uma das pérolas da Bossa Nova, gênero musical que surgiu no final dos anos 50 e início dos anos 60 no Brasil. A letra da canção reflete uma simplicidade serena e um contentamento profundo com as coisas simples da vida, como um cantinho, um violão e a companhia de alguém amado. A referência ao Corcovado, com a estátua do Cristo Redentor no Rio de Janeiro, evoca uma imagem icônica de beleza e tranquilidade, que se alinha ao estado de espírito proposto pela canção.

A música também aborda a transformação pessoal do eu lírico, que de uma condição de tristeza e descrença no mundo, passa a conhecer a felicidade ao encontrar o amor. Essa mudança é um testemunho do poder do amor de transformar a visão de mundo de uma pessoa, trazendo um novo significado à existência. A repetição da pergunta 'O que é felicidade?' sugere uma reflexão sobre a natureza da verdadeira felicidade, que, na perspectiva da música, parece estar nas pequenas coisas e momentos compartilhados com quem se ama.

A canção é um convite à apreciação dos momentos de calma e contemplação, longe da agitação do dia a dia. A imagem do 'apagar da velha chama' pode ser interpretada como o fim de um período de vida menos feliz, que se encerra com a chegada do amor. 'Corcovado' é uma ode à beleza da vida cotidiana e ao amor como fonte de alegria e significado, encapsulando a essência da Bossa Nova com sua melodia suave e poesia lírica.

Fontes:

segunda-feira, 1 de julho de 2024

Daniel Maurício (Poética) 70

 

Humberto de Campos (A derradeira "morada")

O administrador do cemitério de São Geraldo, Alfredo Costa Ximenes, residia há anos, na rua Real Grandeza, quando, em março último, forçado a mudar de casa, foi alugar um prédio de segunda ordem, de que era proprietário o Comendador Augusto Gonçalves Teixeira, que lhe foi dizendo logo, sem circunlóquios:

— O aluguel da casa é quinhentos e vinte mil réis, fora a pena d'água e a taxa sanitária. Além disso para que eu lhe dê a chave, o senhor terá de pagar-me seis contos de réis, de "luvas".

Debalde o honrado funcionário da Morte chorou, suplicou, implorou; o Comendador mostrou-se inabalável na sua exigência, e ele teve de arranjar, mesmo, as "luvas", para não se ver de uma hora para outra, lançado à rua com a família.

Dois meses depois desse episódio, estava o administrador, uma tarde, no seu posto, na secretaria da necrópole, quando parou ao portão, buzinando e rolando, um cortejo funerário. Levada às suas mãos a papeleta fúnebre, o funcionário viu pelo nome, que o morto era, nada mais, nada menos, do que o seu senhorio, o Comendador Gonçalves Teixeira e teve, de repente, a ideia de uma represália: chegou ao portão, onde o esquife já repousava, agaloado, na carreta do cemitério, e recebendo da família a chave do caixão, mandou rodar o ataúde no rumo da sepultura.

Terminadas, ali, entre lágrimas e vertigens, as angustiosas despedidas da praxe, um filho do defunto mandou chamar o administrador, a quem havia dado a chave do esquife, para que fosse identificar o morto, e fechar o caixão.

— Pronto! — apresentou-se Ximenes, apertado na sua sobrecasaca preta. — Que desejam?

— A chave! — explicou um parente do defunto.

— Suspendam a tampa do esquife! — ordenou o administrador.

Um amigo abriu o caixão funerário, onde jazia, inteiriçado, vestido de preto o corpo do desventurado capitalista.

Ximenes passou, meticuloso, a vista sobre o cadáver, e, vendo-lhe as mãos nuas, cruzadas sobre o peito bojudo, reclamou, severo:

— E as "luvas"? Querem, então, que ele desça à derradeira "morada" sem as "luvas"?

E não entregou a chave!

Humberto de Campos. A Serpente de Bronze. Publicado originalmente em 1925. Disponível em Domínio Público.