sexta-feira, 11 de julho de 2025

Asas da Poesia * 48 *



Trova Humorística de
RENATA PACCOLA
São Paulo/SP

Teve um chilique tão forte
que logo tomou vacina
e se mandou para o norte
temendo a gripe sulina ...
= = = = = =

Soneto de
LEANDRO BERTOLDO SILVA
Padre Paraíso/ MG

Esperança

Quero fazer dos meus olhos mentira
Para acordar igual a um passarinho
Ouvindo ao longe, bem longe do ninho
O que o cansaço fadiga e suspira.

Oh, mar de gente, de sangue e de ira!
Torpe desejo de espúrio caminho.
Faça-me livre de seu escarninho.
Não me embandeire; seu ardil não me inspira.

E nesta febre que (se)invade - há jeito?
Saudades tenho as que me recordo
Quando, feliz, dormíamos no leito.

Há de chegar o dia em que a bordo,
Mesmo a noite sendo em meu peito,
Desta cingida nau outro me acordo. 
= = = = = = = = =  

Trova de
ADELIR MACHADO
São Gonçalo/RJ (1928 – 2003) Niterói/RJ

A empregada de hoje em dia
quando vai para o fogão,
cozinha em banho-maria
as cantadas do patrão!!!
= = = = = = 

Poema de
CRISTINA CAMPO
Bolonha/Itália, 1923 – 1977

Teu Nome…

Amor, hoje teu nome
a meus lábios escapou
como ao pé o último degrau…

Espalhou-se a água da vida
e toda a longa escada
é para recomeçar.

Desbaratei-te, amor, com palavras.

Escuro mel que cheiras
nos diáfanos vasos
sob mil e seiscentos anos de lava
Hei de reconhecer-te pelo imortal
silêncio.

Ficou para trás, quente, a vida,
a marca colorida dos meus olhos, o tempo
em que ardiam no fundo de cada vento
mãos vivas, cercando-me…

Ficou a carícia que não encontro
senão entre dois sonos, a infinita
minha sabedoria em pedaços. E tu, palavra
que transfiguravas o sangue em lágrimas.

Nem sequer um rosto trago
comigo, já traspassado em outro rosto
como esperança no vinho e consumado
em acesos silêncios…

Volto sozinha
entre dois sonos lá ’trás, vejo a oliveira
rósea nas talhas cheias de água e lua
do longo inverno. Torno a ti que gelas
na minha leve túnica de fogo.  
= = = = = = 

Poetrix de
LUIZ GONDIM DE ARAÚJO LINS
Rio de Janeiro/RJ

Procura

Averiguara portas e janelas,
percorrera todas as telas
do perímetro da solidão
= = = = = = 

Soneto de
HILDEMAR CARDOSO MOREIRA 
São Mateus do Sul/PR, 1926  – 2021, Contenda/PR

Lagrimas e risos

Você chorou quando aportou na terra,
E nós choramos de alegria imensa,
Por isso cremos que em teu peito encerra
Toda a pureza que o amor condensa.

 E foi grande a euforia que sentimos
Naquele lindo vinte e um de julho,
Que então choramos e então sorrimos
Num misto de alegria e de orgulho.

 Você é o fruto de um amor bendito.
O pranto e o riso assim se misturaram
Ao contemplar o teu perfil bonito.

 E hoje existe com mais intensidade
Aquele amor dos dias que passaram
Porque ele aumenta quanto avança a idade.
= = = = = = = = = 

Trova do
PROFESSOR GARCIA
Caicó/ RN

Esta dor que em mim persiste
e não me deixa dormir!...
é "aquela" lembrança triste
do que deixou de existir!
= = = = = = 

Poema de
CARLOS DRUMMOND DE ANDRADE
Itabira do Mato Dentro (1902 – 1987) Rio de Janeiro/RJ

Poema patético

Que barulho é esse na escada?
É o amor que está acabando,
é o homem que fechou a porta
e se enforcou na cortina.

Que barulho é esse na escada?
É Guiomar que tapou os olhos
e se assoou com estrondo.
É a lua imóvel sobre os pratos
e os metais que brilham na copa.

Que barulho é esse na escada?
É a torneira pingando água,
é o lamento imperceptível
de alguém que perdeu no jogo
enquanto a banda de música
vai baixando, baixando de tom.

Que barulho é esse na escada?
É a virgem com um trombone,
a criança com um tambor,
o bispo com uma campainha
e alguém abafando o rumor
que salta do meu coração.
= = = = = = 

Trova de 
ADEMAR MACEDO
Santana do Matos/ RN, 1951 – 2013, Natal/ RN

Da Bebida fiquei farto, 
bebendo, perdi quem amo; 
hoje bebo no meu quarto 
as lágrimas que eu derramo.
= = = = = = 

Poema de 
MÁRIO A. J. ZAMATARO
Nova Esperança/PR

Lances

Às margens do acaso,
um lance de sorte!

De calar contido:
Aguardado lance
em lúcido olhar
em úmida boca
em túmida carne
em único afeto
em cínico corpo...
A falar revanche,
dado sem sentido:

No acaso das margens,
a sorte de um lance!
= = = = = = 

Trova de
IZO GOLDMAN
Porto Alegre/ RS, 1932 – 2013, São Paulo/ SP

Enquanto a guerra inundar 
num dilúvio, a Terra inteira, 
onde a pomba irá buscar 
outro ramo de oliveira?!…
= = = = = = 

Hino de
PUXINANÃ/ PB

Enchei de orgulho vossos corações
para o nosso torrão exaltar!
"Cidade dos Lagedos" imponentes,
que ostenta como marco singular.
Outrora, foi a nobre e boa fonte
que a sede de tantos matou;
por isso, ao espelho das águas
gente amiga teu núcleo formou.

Puxinanã, a nossa fé desponta
na tua gente brava e sem temor!
Hás de crescer por nossas mãos,
fiéis que somos, pelo vosso amor!

Ó terra mãe por crença de teus filhos,
rua independência se fez!
Joaquim Limeira e Zoroastro
erguerão o pavilhão, com altivez,
da luta pelo Desenvolvimento
com teu Trabalho e União.
No campo, mostra tua riqueza,
na Cultura, também na Educação.

Já inspiraste a musa do Poeta
com "As flores de Puxinanã",
que evoca o vigor da juventude:
a tua esperança do amanhã..
"Lagoa da Pedras", foste no começo,
amada pelos ancestrais;
agora, mais do que outrora,
os teus filhos te adoram muito mais.
= = = = = = 

Trova Premiada de
RITA MOURÃO 
Ribeirão Preto/ SP

Felicidade, abre a porta 
vem logo ressuscitar 
minha esperança já morta 
cansada de te esperar.
= = = = = = 

Soneto de 
ALPHONSUS DE GUIMARAENS FILHO
Ouro Preto/MG, 1870 – 1921, Mariana/MG

Quando eu disser adeus...

Quando eu disser adeus, amor, não diga
adeus também, mas sim um "até breve";
para que aquele que se afasta leve
uma esperança ao menos na fadiga

da grande, inconsolável despedida...
Quando eu disser adeus, amor, segrede
um "até mais" que ainda ilumine a vida
que no arquejo final vacila e cede.

Quando eu disser adeus, quando eu disser
adeus, mas um adeus já derradeiro,
que a tua voz me possa convencer

de que apenas eu parti primeiro,
que em breve irás, que nunca outra mulher
amou de amor mais puro e verdadeiro.
= = = = = = = = =  

Trova Humorística de
NEWTON MEYER
Pouso Alegre/MG (1936 – 2006)

Verão assim, credo em cruz?
– Foi tanto calor na cuca,
que uma porca deu à luz
três leitões à pururuca!!!
= = = = = = = = =

Soneto premiado em 2024, de
GERALDO TROMBIN
Americana/SP

Colecionamento de insignificâncias
 
Coleciono pousos de borboletas
e, também, os voos dos passarinhos;
dos insetos, os rasantes, piruetas;
dos pés de vento, os seus redemoinhos;
 
e, dos jabutis, os seus passos lentos.
Além do doce sabor das amoras,
coleciono, ainda, os uivos dos ventos
e o despertar pacato das auroras.
 
Coleciono o desabrochar do hibisco;
o gotejar suave do chuvisco;
os brotos que enchem de graça a avenida.
 
Coleciono essas insignificâncias
– pra muitos, coleções de irrelevâncias –
que, pra mim, dão significado à vida!
= = = = = = = = =  

Aldravia de
CECY BARBOSA CAMPOS
Juiz de Fora/MG

a
turba
ruge
o
tiro
ecoa
= = = = = = = = =  

Poema premiado em 2024, de
JACIMAR BERTI BOTI 
Colatina/ES

Residência do poeta 

Moro na esquina da rua
Lá no bloco da esperança
Onde o vento faz a curva
Nos olhos da linda criança 

De dia sou amigo do sol
O vento brincando na rua
Versejando nas minhas poesias
De noite, sou namorado da lua
Beijando a boca da noite
No silêncio da madrugada
O amanhecer no meu abraço
Com o canto da passarada

Viajo nas asas do vento
Junto ao olhar da saudade
A lua como companheira
Conduzindo-me a felicidade 

Escrevo na boca da noite
Talvez, no romper da aurora
O tempo passa, não perdoa
Aqui, nosso futuro é agora.
= = = = = = = = =  

Spina de
ISABEL PERNAMBUCO
Maceió/AL

Lua…

Banhando a noite,
bela lua cheia...
Infinda de beleza

Tão linda lua, traz-me você.
Ela é dos namorados... enamorados.
Basta admirá-la, foge a tristeza.
Suas fases, as tenho também.
Segue sempre brilhando, só boniteza.
= = = = = = = = =  

Soneto de
CARMO VASCONCELLOS
(Maria do Carmo Figueiredo de Vasconcellos)
Lisboa/Portugal

Moinhos de vento

Ainda não esqueci em tantos anos
As setas aguçadas de ciúme
Partindo de teus olhos arcos-lume
Feitas dardos ferinos e insanos

Em mim ainda sangram incrustadas
Palavras tuas tão incoerentes
Chagas minhas antigas mas latentes
Que de vez só na tumba são saradas

De culpas inventadas me vesti
Fiz delas a couraça e resisti
Cedendo a quixotescos desalinhos

Minha espada... A palavra de Cervantes
No punho… Vês gigantes? São gigantes
No gume… Vês moinhos? São moinhos
= = = = = = = = =  

Quadra popular
AUTOR ANÔNIMO

Quem me dera estar agora
onde está meu coração,
lá no campo da saudade,
onde meus suspiros vão.
= = = = = = = = =  

Poema de
DINAIR LEITE
Paranavaí/PR

Encantamento

Minha mãe de branco eu vi,
sentada em belo jardim,
onde havia beija-flores,
araras e um juriti.

Não tinha ar de madona,
nem era fluída, etérea.
Era real e tão bela;
do jardim ela era a dona.

Não valsava, nem cantava,
quedava-se pensativa;
com suas mãos ajeitava
linda guirlanda florida.

Minha mãe era poesia
feita de branco e de flores,
de sons azuis, de tons claros
de luz, de brilhos, de dia.

De raios ensolarados,
iluminando os cabelos;
de corpo esbelto marcado,
pelo vestido vermelho,
seu ar suave, inocente.

Minha mãe tece a coroa
com seus dedinhos gentis,
alinhando as florezinhas
tão leves e tão sutis.

A sua pele é tão alva
que ao vestido se incorpora;
seus gestos são tão suaves
recendendo à malva, aurora.

Os seus cabelos sedosos,
– cascatas  de caracóis –
junto dos seios resvalam,
entremeadas de sóis.

Brilhos e luzes agitam
os cachos negros, macios,
que bailam ao som do vento
buscando cor, movimento.

Minha mãe urde a grinalda
pelas mãos e pelo olhar –
indica o seu coração,
de uma beleza, sem par!

Minha mãe é tão bonita...
Pequena, leve e catita!
Parece um sonho encantando,
em seu jardim-paraíso.

Ela tece a uma coroa
e, coroada, ela está,
de luz, de sons tão azuis,
de pássaros e borboletas,
de pingos d`água, garoa.

Minha mãe termina a obra,
feita com tanto primor...
Oferta a mim a coroa,
entrelaçada de amor.

Minha mãe, mamãe, mãezinha,
Sua luz em mim reluz.
Batizada de Tereza,
viveu, por obra do amor,
Terezinha de Jesus.
= = = = = = = = =  

Trova de
ELISABETE DO AMARAL
(Elisabete do Amaral Albuquerque Freire Aguiar)
Mangualde/ Portugal

Sobre o fumo mais escuro,
fruto da vil ambição,
quero pintar um futuro
sol ridente, meu irmão!
= = = = = = = = =  

Colar de pérolas culturais

 
Lavoisier foi guilhotinado por ter inventado o oxigênio.

O nervo ótico transmite ideias luminosas ao cérebro.

O vento é uma imensa quantidade de ar.

O terremoto é um pequeno movimento de terras não cultivadas.

Os egípcios antigos desenvolveram a arte funerária para que os mortos pudessem viver melhor.

Péricles foi o principal ditador da democracia grega.

O problema fundamental do terceiro mundo e a superabundância de necessidades.

O petróleo apareceu há muitos séculos, numa época em que os peixes se afogavam dentro d'água.

A principal função da raiz é se enterrar.

O sol nos dá luz, calor e turistas.

As aves têm na boca um dente chamado bico.

A unidade de força é o Newton, que significa a força que se tem que realizar em um metro da unidade de tempo, no sentido contrario.

Lenda é toda narração em prosa de um tema confuso.

A harpa é uma asa que toca.

A febre amarela foi trazida da China por Marco Polo.

Os ruminantes se distinguem dos outros animais porque o que comem, comem por duas vezes.

O coração é o único órgão que não deixa de funcionar 24 horas por dia.

Quando um animal irracional não tem água para beber, só sobrevive se for empalhado.

A insônia consiste em dormir ao contrário.

A arquitetura gótica se notabilizou por fazer edifícios verticais.

A diferença entre o Romantismo e o Realismo é que os românticos escrevem romances e os realistas nos mostram como está a situação do país.

O Chile é um país muito alto e magro.

As múmias tinham um profundo conhecimento de anatomia.

O batismo é uma espécie de detergente do pecado original.

Na Grécia a democracia funcionava muito bem porque os que não estavam de acordo se envenenavam.

A prosopopeia é o começo de uma epopeia.

Os crustáceos fora d'água respiram como podem.

As plantas se distinguem dos animais por só respirarem à noite.

Os hermafroditas humanos nascem unidos pelo corpo.

As glândulas salivares só trabalham quando a gente tem vontade de cuspir.

A fé é uma graça através da qual podemos ver o que não vemos.

Os estuários e os deltas foram os primitivos habitantes da Mesopotâmia.

O objetivo da Sociedade Anônima é ter muitas fabricas desconhecidas.

A Previdência Social assegura o direito à enfermidade coletiva.

O Ateísmo é uma religião anônima.

A respiração anaeróbia é a respiração sem ar que não deve passar de três minutos.

O calor é a quantidade de calorias armazenadas numa unidade de tempo.

Antes de ser criada a Justiça, todo mundo era injusto.

Fontes:
"Jornal do Brasil". Rio de Janeiro: 21/10/84
Imagem criada com Microsoft Bing

Machado de Assis (Duas juízas)

Uma era a Devoção de Nossa Senhora das Dores, outra era a Devoção de Nossa Senhora da Conceição, duas irmandades de damas estabelecidas na mesma igreja. Qual igreja? Este é justamente o ponto falho do meu conto; não posso lembrar-me em qual das nossas igrejas era. Mas, pensando bem, que necessidade há de saber-lhe o nome? Uma vez que eu diga os outros e todas as circunstâncias do acontecimento, do caso, o resto pouco importa.

No altar da esquerda, à entrada, ficava a imagem das Dores, e no da direita a da Conceição. Esta posição das duas imagens definia até certo ponto a das Devoções, que eram rivais. Rivalidade nestas obras de culto e religião não pode ou não deve dar de si se não maior zelo e esplendor. Era o que acontecia aqui. As duas Devoções brilhavam de ano para ano; e que era tanto mais admirável quanto que o ardor fora quase repentino e recente. Durante longos anos, as duas associações vegetaram na obscuridade; e, longe de serem contrárias, eram amigas, trocavam obséquios, emprestavam alfaias, as irmãs de uma iam, com as melhores toaletes, às festas da outra.

Um dia, a Devoção das Dores elegeu para juíza uma senhora D. Matilde, pessoa abastada, viúva e fresca, ao mesmo tempo que a da Conceição punha à sua frente a esposa do comendador Nóbrega, D. Romualda. O fim de ambas as Devoções era o mesmo: era dar mais alguma vida ao culto, desenvolvê-lo, comunicar-lhe certo esplendor que não tinha. Ambas as juízas eram pessoas para isso, mas não corresponderam às esperanças. O que fizeram no seguinte ano foi pouco; e, ainda assim, nenhuma das Devoções pôde dispensar os obséquios da congênere. Enfim, Roma não se fez num dia, repetiram as devotas de ambas, e esperaram.

Na verdade, as duas juízas tinham distrações noutras partes; não podiam subitamente cortar por hábitos antigos. Note-se que eram amigas, andavam muita vez juntas, encontravam-se em bailes, e teatros. Eram também bonitas e vistosas; circunstância que não determinara a eleição, mas agradou às eleitoras, tão certo é que a beleza não é só um ornato profano, e, posto que a religião exija principalmente a perfeição moral, os pintores não se esquecem de pôr o arrependimento de Madalena dentro de belas formas.

Vai senão quando, D. Matilde, presidindo a uma sessão de mesa administrativa da Devoção das Dores, disse que era preciso cuidar seriamente de levantar a associação. Todas as companheiras foram do mesmo parecer, com grande contentamento, porque realmente não desejavam outra coisa. Eram pessoas religiosas; e, salvo a secretária e tesoureira, viviam na obscuridade e no silêncio.

— As nossas festas, continuou D. Matilde, têm sido muito descuidadas. Não vem quase ninguém a elas; e da gente que vem pouca é a de certa ordem. Vamos trabalhar. A deste ano deve ser esplêndida. Há de pontificar monsenhor Lopes; estive ontem com ele. A orquestra deve ser de primeira qualidade; podemos ter uma cantora italiana.

E foi por diante a juíza, dando os primeiros lineamentos do programa. Em seguida, adotaram certas resoluções: — alistar novas devotas — e D. Matilde indicava as suas amigas da alta sociedade —, fazer entrar as anuidades atrasadas, comprar alfaias porque, ponderou a juíza, “não é bonito estarmos a viver de Coisa interessante! Quinze dias depois, ou três semanas, quando muito, a outra Devoção celebrava uma sessão da mesa administrativa em que D. Romualda exprimia iguais sentimentos, propunha uma reforma análoga, espertava o espírito religioso das companheiras para o fim de celebrar uma festa digna delas. D.

Romualda também prometeu fazer entrar um certo número de devotas abastadas e briosas.

Dito e feito. Nem uma nem outra das duas juízas deixou de cumprir o prometido. Era uma ressurreição, uma vida nova; e justamente o fato da vizinhança das duas Devoções serviu-lhes de estímulo. Ambas souberam dos planos, ambas tratavam de levar a cabo os seus com mais particular fulgor.

D. Matilde, que a princípio não cuidava daquilo principalmente, daí a pouco não pensava em mais nada. Não rompeu com outros hábitos; mas não lhes deu mais do que se dá a um costume. O mesmo acontecia a D. Romualda. As duas associações estavam contentíssimas, porque, em verdade, a maior parte das devotas não o eram só de nome. Uma delas, pertencente à Devoção das Dores, que supunha continuar a antiga troca de serviços, lembrou que se pedisse não sei o que à outra devoção. D. Matilde repeliu com desdém: — Não; antes vendamos a última joia.

A devota não compreendeu bem a resposta; era digna e espartana, mas pareceu-lhe que, em matéria de religião, a confraternidade e a caridade eram as primeiras leis. Entretanto, achou bom que todas se obrigassem ao sacrifício, e não tornou ao assunto. Ao mesmo tempo, dava-se na Devoção da Conceição análogo incidente. Dizendo uma das irmãs que D. Matilde trabalhava muito, acudiu D.

— Eu saberei trabalhar muito mais.

Era claro que a rivalidade e o despeito ardiam nelas. Por desgraça, tanto o dito de uma como o da outra correram mundo, e chegaram ao conhecimento de ambas; foi como lançar palha ao fogo. D. Romualda bradou em casa de uma amiga: — Vender a última joia? Talvez ela já tenha as suas empenhadas! E D. Matilde: — Creio, creio... Creio que trabalhe mais do que eu, mas há de ser de A festa das Dores foi realmente bonita; muita gente, boa música, excelente sermão. A igreja estava tomada com um luxo desconhecido dos paroquianos.

Alguns entendidos da matéria calcularam as despesas e subiram a um algarismo muito alto. A impressão não se restringiu ao bairro, foi a outros; os jornais deram notícia minuciosa da festa, e o trouxe o nome de D. Matilde, dizendo que a esta senhora era devido aquele esplendor. “Folgamos de ver, concluía aquele órgão religioso, folgamos de ver que uma senhora de tão superiores qualidades emprega uma parte da sua atividade no serviço da Virgem Santíssima.” D. Matilde mandou transcrever a notícia nos outros jornais.

Não é preciso dizer que D. Romualda não foi à festa das Dores; mas soube de tudo, porque uma das zeladoras foi espiar e contou-lhe o que houve. Ficou passada e jurou que havia de meter D. Matilde num chinelo. Quando, porém, leu nos , a irritação não teve mais limites. Não todos os nomes feios, mas aqueles que uma senhora educada pode dizer de outra, esses disse-os D. Romualda falando da juíza das Dores — pretensiosa, velhusca, tola, intrometida, ridícula, namoradeira, e poucos mais. O marido procurava aquietá-la: — Mas, Romualda, para que há de você irritar-se tanto assim? E batia o pé, amarrotava a folha que tinha na mão. Chegou ao extremo de dar ordem para não receber mais o ; mas a ideia de que podia merecer da folha alguma justiça, quando chegasse a festa da Conceição, fê-la retirar a ordem.

Dali em diante, não se ocupou de outra coisa, senão de preparar uma festa que vencesse a das Dores, uma festa única, admirável. Convocou as irmãs, e disse-lhes francamente que não poderia ficar abaixo da outra Devoção; era preciso vencê-la, não igualá-la; igualá-la era pouco.

E toca a trabalhar na coleta de donativos, na cobrança de anuidades. Nas últimas semanas, o comendador Nóbrega quase não pôde ocupar-se de outra coisa, senão de ajudar a mulher nos preparos da grande festa. A igreja foi armada com uma perfeição que excedia a da festa das Dores. D. Romualda, a secretária, e duas zeladoras não saíam de lá; viam tudo, falavam de tudo, corriam tudo. A orquestra foi a melhor da cidade. Estava de passagem um bispo da Índia; alcançaram dele que pontificasse. O sermão foi incumbido a um beneditino de fama. Durante a última semana trabalhou a imprensa, anunciando a grande festa.

D. Matilde caiu em mandar para as folhas algumas mofinas anônimas, em que arguia a juíza da Conceição de ser dada à charlatanice e à inveja. Respondeu D. Romualda, também anonimamente algumas coisas duras; a outra voltou à carga, e recebeu nova réplica; e isto serviu ao esplendor da festividade. O efeito não podia ser maior, todas as folhas deram uma notícia, embora curta; o um longo artigo, dizendo que a festa da Conceição fora das melhores que se tinham dado no Rio de Janeiro, desde muitos anos. Citou também o nome de D. Romualda como o de uma senhora distinta pelas qualidades de espírito, como digna de apreço e louvor pelo zelo e piedade. “Ao seu esforço, concluía a folha, devemos o prazer que tivemos no dia 8. Oxalá muitas outras patrícias possam imitá-la!” Foi uma punhalada em D. Matilde. Trocaram-se os papéis; ela agora é que deitava à outra os nomes mais cruéis de um vocabulário elegante. E jurava que a Devoção das Dores não ficaria vencida. Imaginou então umas ladainhas aos sábados e contratou uma missa especial aos domingos, fazendo anunciar que era a missa aristocrática da paróquia. D. Romualda respondeu com outra missa, e uma prática, depois da missa; além disso, instituiu um mês de Maria, e convidou a melhor gente.

Esta luta durou uns dois anos. No fim deles, D. Romualda, tendo dado à luz uma filha, morreu de parto, e a rival ficou só em campo. Vantagem do estímulo! Tão depressa morreu a juíza da Conceição como a das Dores sentiu afrouxar o zelo, e já a primeira festa esteve muito aquém das anteriores. A segunda foi feita com outra juíza, porque D. Matilde, alegando cansaço, pediu dispensa do posto.

Um paroquiano curioso tratou de indagar, se além das causas de estímulo religioso, alguma outra houve; e veio a saber que as duas damas, amigas íntimas, tinham tido uma pequena questão, por causa de um vestido. Não se sabe qual delas ajustara primeiro um corte de vestido; sabe-se que o ajuste foi vago, tanto que o dono da loja imaginou ter as mãos livres para vendê-lo a outra pessoa.

— A sua amiga, disse ele à outra, já aqui esteve e gostou muito dele.

— Muito. E quis até levá-lo.

Quando a primeira mandou buscar o vestido, soube que a amiga o comprara. A culpa, se a havia, era do vendedor; mas o vestido era para um baile, e no corpo de outra fez maravilhas; todos os jornais o descreveram, todos louvaram o bom gosto de uma senhora distinta, etc... Daí um ressentimento, algumas palavras, frieza, separação. O paroquiano, que, além de boticário, era filósofo, tomou nota do caso para contá-lo aos amigos. Outros dizem que era tudo mentira dele.

Fontes:
ASSIS, Machado de. Contos sem data. Disponível em Domínio Público..
Imagem criada com Microsoft Bing  

Arthur C. Clarke (Os Nove Bilhões de Nomes de Deus)

 
O doutor Wagner conseguiu reprimir-se. Era meritório. Depois disse:

- O seu pedido é um pouco desconcertante. Que eu saiba, é a primeira vez que um mosteiro tibetano faz a encomenda de um calculador eletrônico. Não quero ser curioso, mas estava longe de pensar que semelhante instituição pudesse necessitar desta máquina. Posso perguntar-lhe em que deseja utilizá-la?

O Lama ajeitou as dobras de sua túnica de seda e pousou sobre a secretária a régua de calcular com a qual acabava de fazer conversões libra-dólar.

- Naturalmente. O seu calculador eletrônico tipo 5 pode fazer, segundo diz o catálogo, todas as operações matemáticas até 10 decimais. No entanto, o que me interessa são letras, não números. Pedir-lhe-ei portanto que modifique o circuito de saída de forma que imprima letras em vez de colunas de números.

- Não compreendo muito bem...

- Desde que a nossa instituição foi fundada, há mais de três séculos, que nos consagramos a um determinado trabalho. É um trabalho que pode parecer-lhe estranho e peço-lhe que me escute com a maior largueza de espírito.

- De acordo.

- É simples. Tentamos organizar a lista de todos os nomes possíveis de Deus.

- Perdão?

O lama continuou imperturbavelmente:

- Temos excelentes motivos para crer que todos esses nomes incluem quando muito nove letras do nosso alfabeto.

- E ocuparam-se disso durante três séculos?

- Sim. Tínhamos calculado que precisaríamos de quinze mil anos para terminar o trabalho.

O doutor deu um assobio de vencido, e disse um pouco atordoado:

- O.K., agora compreendo o porque deseja alugar uma das nossas máquinas. Mas qual é o objetivo da operação?

Durante uma fração de segundo o lama hesitou e Wagner receou ter ofendido aquele estranho cliente que acabara de fazer a viagem Lassa-Nova Iorque com uma régua de calcular e o catálogo da companhia de contadores eletrônicos no bolso de sua túnica cor de açafrão.

- Chame a isto um ritual se quiser - disse o lama - mas é uma da bases fundamentais da nossa religião. Os nomes de Ser Supremo, Deus, Júpiter, Jeová, Alá etc., não passam de etiquetas feitas pelos homens. Certas considerações filosóficas demasiado complexas para que as possa expor agora, deram-nos certeza de que, entre todas as perguntas e possíveis combinações das letras, se encontram os verdadeiros nomes de Deus. Ora, o nosso objetivo é descobri-los e escrevê-los todos.

- Já compreendo: Começam por A.A.A.A.A.A.A.A.A., e acabarão por chegar a Z.Z.Z.Z.Z.Z.Z.Z.Z.

- Simplesmente utilizamos o nosso alfabeto. Evidentemente que lhe há de ser fácil modificar a máquina de escrever elétrica, de forma que ela utilize nosso alfabeto. Mas o problema mais importante será o de preparar os círculos especiais de forma que eliminem antecipadamente as combinações inúteis. Por exemplo, nenhuma das letras deve aparecer mais de três vezes sucessivamente.

- Três? Quer dizer duas.

- Não. Três. Mas a explicação completa exigiria muito tempo, mesmo que o senhor compreendesse a nossa língua.

Wagner disse precipitadamente:

- Claro, claro. Continue por favor.

- Ser-lhe-á fácil adaptar o calculador automático em função desse objetivo. Com um plano bem elaborado, uma máquina desse gênero pode trocar as letras umas após outras e imprimir um resultado. Desta forma, concluiu calmamente o lama, aquilo que nos levaria ainda quinze milênios estará terminado em cem dias.

O Doutor Wagner sentia que ia perdendo o sentido das realidades. Através das janelas do edifício, os ruídos e as luzes de Nova Iorque perdiam a intensidade. Sentia-se transportado a um mundo diferente. Lá longe, no seu longínquo asilo montanhoso, geração após geração, os monges tibetanos há trezentos anos elaboravam sua lista de nomes desprovidos de sentido... Não havia então limite para a loucura dos homens?

Mas o Doutor Wagner não devia deixar transparecer os seus pensamentos. O cliente tem sempre razão...

E respondeu:

- Não duvido que possam modificar a máquina do tipo 5, de forma a imprimir listas desse gênero. A instalação e a conservação é que mais me inquietam. Aliás, não será fácil enviá-la para o Tibete.

- Nós trataremos disso. As peças separadas têm dimensões suficientemente pequenas para serem transportadas por avião. De resto, foi esse o motivo porque escolhemos a máquina. Envie as peças para a Índia, nós nos encarregamos do resto.

- Deseja contratar dois dos nossos engenheiros?

- Sim, para montarem e vigiarem a máquina durante esses cem dias.

- Vou mandar instruções à direção de pessoal - disse Wagner enquanto escrevia na agenda. - Mas restam duas questões a resolver...

Antes que tivesse podido terminar a frase, o lama tirou do bolso uma delgada folha de papel:

- Esta é a situação de minha conta no Banco Asiático.

- Muito obrigado. Está muito bem... Mas, se me permite, a segunda questão é de tal maneira elementar que hesito em mencioná-la. Acontece muitas vezes esquecermos qualquer coisa evidente... Têm uma fonte de energia elétrica?

- Temos um gerador Diesel elétrico de 50 KW de potência, 110 volts. Foi instalado há cinco anos e funciona bem. Facilita-nos a vida no convento. Compramo-lo sobretudo para acionar os moinhos de orações.

- Ah! Sim, evidentemente, eu devia ter pensado nisso...

Do parapeito a vista era vertiginosa, mas habituamo-nos a tudo. Tinha decorrido três meses e George Hanley já não se importava com os seiscentos metros em vertical que separavam o mosteiro do quadriculado dos campos da planície. Apoiado sobre as pedras que o vento arredondara, o engenheiro contemplava com olhar triste as montanhas longínquas de que ignorava o nome. "A operação nome de Deus", como batizara um humorista da Companhia, era sem dúvida a pior tarefa de louco em que jamais participara.

Semana após semana, a máquina tipo 5, modificada, cobrira milhares de folhetos de uma incrível algaravia. Paciente e inexorável, o calculador reunira as letras do alfabeto tibetano em todas as combinações possíveis, esgotando série após série. Os monges recortavam certas palavras à saída da máquina de escrever elétrica e colavam-nas com devoção em enormes registros. Dentro de uma semana acabariam.

Hanley ignorava quais os cálculos obscuros que os levavam à conclusão de que não deviam estudar conjuntos de dez, vinte, cem mil letras, e nem pretendia sabê-lo. nos seus pesadelos sonhava às vezes que o grande lama decidiria bruscamente complicar um pouco mais a operação e que o trabalho continuaria até o ano 2060. Aliás aquele estranho homenzinho parecia perfeitamente capaz de o fazer.

A pesada porta de madeira estalou. Chuck vinha ter com ele no terraço. Chuck fumava, como de costume, um charuto: tornara-se popular com os lamas distribuindo-lhes havanas. Aqueles tipos poderiam ser completamente amalucados - pensou Hanley - mas não eram puritanos. As frequentes expedições a aldeia não tinham sido desprovidas de interesse...

- Ouve, George - disse Chuck - vamos ter aborrecimentos.

- A máquina escangalhou-se?

- Não.

Chuck sentou-se sobre o parapeito. Era espantoso, pois habitualmente receava ter vertigens:

- Acabo de descobrir o objetivo da operação.

- Mas já o sabíamos!

- Sabíamos o que os monges queriam fazer, mas não sabíamos por quê.

- Bah! São uns loucos...

- Escuta, George, o velho acaba de explicar-me. Eles creem que assim que tenham escrito todos aqueles nomes ( e segundo pensam são cerca de nove bilhões), o objetivo divino será atingido. A raça humana terá realizado a tarefa para que foi criada.

- E então? Esperam que nos suicidemos?

- Inútil. Quando a lista estiver terminada, Deus intervirá e será o fim.

- Quando terminarmos, será então o fim do mundo?

Chuck teve um risinho nervoso:

- Foi o que eu disse ao velho. Ele olhou-me de forma estranha, como um professor olha para um aluno particularmente estúpido, e disse-me: "Oh, não será assim tão insignificante!..."

George refletiu por um instante.

-É um tipo que visivelmente tem ideias largas, mas, mesmo assim, que importância tem isso? Nós já sabíamos que eram uns loucos.

- Sim. Mas não vês o que pode acontecer? Se a lista ficar pronta e se as trombetas do anjo Gabriel, versão tibetana, não soarem, eles podem decidir que é por nossa culpa. Afinal de contas, era a nossa máquina que eles utilizavam. Não gosto disso...

- Percebo... - disse lentamente Jorge - mas eu já vi tanta coisa! - Quando era garoto na Luisiana, apareceu um pregador que anunciou o fim do mundo para o domingo seguinte. Houve centenas de tipos que acreditaram nele. Alguns mesmo chegaram a vender suas casas. Mas ninguém se endureceu no domingo seguinte. As pessoas pensaram que ele apenas errara um pouco os cálculos, e muitas delas ainda acreditam.

- Caso não te tenhas apercebido faço-te notar que não estamos na Luisiana. Estamos ambos sozinhos, no meio de centenas de monges. Adoro-os, mas preferia estar longe quando o velho lama aperceber-se que a operação falhou.

- Há uma solução. Uma pequenina sabotagem inofensiva. O avião chega dentro de uma semana e a máquina termina o trabalho dentro de quatro dias à razão de 24 horas por dia. Basta-nos começar a reparar qualquer coisa durante dois ou três dias. Se calcularmos bem, poderemos estar lá embaixo, no aeroporto, quando o último nome sair da máquina.

Sete dias mais tarde, enquanto os pequenos pôneis das montanhas desciam o caminho em espiral, Hanley disse:

- Sinto um pouco de remorsos. Não fujo por medo, mas porque tenho pena. Não gostaria de ver a cara daqueles pobres homens quando a máquina parar.

- Na minha opinião - disse Chuck - eles desconfiaram que fugimos, e não se incomodaram. Agora já sabem até que ponto a máquina é automática, e que não precisa de vigilância. E supõem que não haverá nenhuma depois.

George voltou-se para trás e olhou.

Os edifícios do mosteiro apareciam em silhueta escura sobre o poente. De vez em quando brilhavam pequeninas luzes sob a massa sombria das muralhas, como as vigias de um navio singrando no mar. Lâmpadas elétricas colocadas sobre o circuito da máquina n.º 5.

Que aconteceria ao calculador elétrico? - pensou George. - Na fúria e desapontamento iriam os monges destruí-lo? Ou então recomeçariam tudo?

Como de ainda lá estivesse, via o que naquele momento se passava na montanha atrás das muralhas. O grande lama e os seus assistentes examinavam as folhas, enquanto alguns noviços recortavam os nomes barrocos e os colavam no enorme caderno. e tudo aquilo era feito em religioso silêncio. Só se ouviam as teclas da máquina, batendo no papel como se fossem chuva miúda. O próprio calculador, que combinava milhares de letras por segundo, estava completamente silencioso...

A voz de Chuck interrompeu o seu devaneio:

- Lá está ele! Que grande alegria que dá!

Semelhante a uma minúscula cruz prateada, o velho avião de transportes D.C.3 acabava de pousar lá embaixo no pequeno aeródromo improvisado. Aquela visão dava vontade de beber um grande copo de uísque gelado. Chuck começou a cantar, mas depressa se calou. As montanhas não o encorajavam.

George consultou o relógio.

- Estaremos lá dentro de uma hora - disse. E acrescentou: - Pensas que o cálculo já terminou?

Chuck não respondeu e George levantou a cabeça. Viu o rosto de Chuck muito branco, voltado para o céu.

- Olha - murmurou Chuck.

George, por sua vez, levantou os olhos.

Pela última vez, por cima deles, na paz das alturas, uma a uma as estrelas começavam a extinguir-se...

Fontes:
Conto publicado originalmente em 1968.
Imagem criada com Microsoft Bing  

Dicas de Escrita (A Narração e sua estrutura)

  NARRAÇÃO

A narração ou narrativa pode ser definida como um dos três modos literários, sendo os outros o lírico e o dramático; ou como um dos três modos básicos de redação, sendo as outras a descrição e a dissertação.

Basicamente narrar é contar uma história, e para tanto teremos personagens, cenários, conflitos, cenas. O estudo da narrativa e destes elementos é chamado de narratologia, comumente associado ao estruturalismo, mas com referências na Poética grega e no formalismo russo.

Roland Barthes, mestre no estudo da narrativa, afirma que "a narrativa está presente em todos os tempos, em todos os lugares, em todas as sociedades, começa com a própria história da humanidade; é fruto do gênio do narrador ou possui em comum com outras narrativas uma estrutura acessível à análise".

Ação

A ação é o conjunto de acontecimentos que se desenrolam num determinado espaço e tempo. Aristóteles, em sua Poética, já afirmava que "sem ação não poderia haver tragédia". Sem dificuldade se estende o termo tragédia à narração, e assim a presença de ação é o primeiro elemento essencial ao texto narrativo.

Estrutura da ação

A ação da narrativa é constituída por três ações: Intriga, Ação principal e Ação secundária.

•Intriga: Ação considerada como um conjunto de acontecimentos que se sucedem, segundo um princípio de causalidade, com vista a um desenlace. A intriga é uma ação fechada.

•Ação principal: Integra o conjunto de sequências narrativas que detêm maior importância ou relevo.

•Ação secundária: A sua importância define-se em relação à principal, de que depende, por vezes; relata acontecimentos de menor relevo.

Sequência

A ação é constituída por um número variável de sequências (segmentos narrativos com princípio, meio e fim), que podem aparecer articuladas dos seguintes modos:

•Encadeamento ou organização por ordem cronológica

•Encaixe, em que uma ação é introduzida numa outra que estava a ser narrada e que depois se retoma

•Alternância, em que várias histórias ou sequências vão sendo narradas alternadamente.

Tempo

Tempo cronológico ou tempo da história - determinado pela sucessão cronológica dos acontecimentos narrados.

•Tempo histórico - refere-se à época ou momento histórico em que a ação se desenrola.

•Tempo psicológico - é um tempo subjetivo, vivido ou sentido pela personagem, que flui em consonância com o seu estado de espírito.

•Tempo do discurso - resulta do tratamento ou elaboração do tempo da história pelo narrador. Este pode escolher narrar os acontecimentos:

Por ordem linear

•(anacronia), recorrendo à analepse (recuo a acontecimentos passados) ou à prolepse (antecipação de acontecimentos futuros);

•(isocronia), como, por exemplo, na cena dialogada;

•(anisocronia), recorrendo ao resumo ou sumário (condensação dos acontecimentos), à elipse (omissão de acontecimentos) e à pausa (interrupção da história para dar lugar a descrições ou divagações).

Personagens

Roland Barthes, além de retomar a importância que os clássicos davam à ação, avança ao afirmar que “não existe uma só narrativa no mundo sem personagens”. Aqui se entende personagem não como pessoas, seres humanos. Um animal pode ser personagem (Revolução dos Bichos), a morte pode ser personagem (As intermitências da morte), uma cidade decadente ou uma caneta caindo podem ser personagens, desde que estejam num espaço e praticando uma ação, ainda que involuntária.

Relevo das personagens

•Protagonista, personagem principal ou herói: desempenha um papel central, a sua atuação é fundamental para o desenvolvimento da ação.

•Personagem secundária: assume um papel de menor relevo que o protagonista, sendo ainda importante para desenrolá-lo da ação.

•Figurante: tem um papel irrelevante no desenrolar da ação, cabendo-lhe, no entanto, o papel de ilustrar um ambiente ou um espaço social de que é representante.

Composição

•Personagem modelada ou redonda: dinâmica, dotada de densidade psicológica, capaz de alterar o seu comportamento e, por conseguinte, de evoluir ao longo da narrativa.

•Personagem plana ou desenhada: estática, sem evolução, sem grande vida interior; por outras palavras: a personagem plana comporta-se da mesma forma previsível ao longo de toda a narrativa.

•Personagem-tipo: representa um grupo profissional ou social.

•Personagem coletiva: Representa um grupo de indivíduos que age como se os animasse uma só vontade.

Caracterização

Direta

•Autocaracterização: a própria personagem refere as suas características.

•Heterocaracterização: a caracterização da personagem é-nos facultada pelo narrador ou por outra personagem.

Indireta 
O narrador põe a personagem em ação, cabendo ao leitor, através do seu comportamento e/ou da sua fala, traçar o seu retrato.

Espaço

•Espaço físico: é o espaço real, que serve de cenário à ação, onde as personagens se movem.

•Espaço social: é constituído pelo ambiente social, representando, por excelência, pelas personagens figurantes.

•Espaço psicológico: espaço interior da personagem, abarcando as suas vivências, os seus pensamentos e sentimentos.

Final

Narrador

Participação

• Heterodiegético: Não participante.

• Autodiegético: Participa como personagem principal.

• Homodiegético: Participa como personagem secundária.

• Focalização: É a perspectiva adotada pelo narrador em relação ao universo narrado.

• Focalização onisciente: colocado numa posição de transcendência, o narrador mostra conhecer toda a história, manipula o tempo, devassa o interior das personagens.

• Focalização interna: o narrador adota o ponto de vista de uma ou mais personagens, daí resultando uma diminuição de conhecimento.

• Focalização externa: o conhecimento do narrador limita-se ao que é observável do exterior.

Sucessão e Integração

Claude Bremond, ao definir narrativa, acrescenta a sucessão e a integração como essenciais para a narratividade: "Toda narrativa consiste em um discurso integrando uma sucessão de acontecimento de interesse humano na unidade de uma mesma ação. Onde não há sucessão não há narrativa, mas, por exemplo, descrição, dedução, efusão lírica, etc. Onde não há integração na unidade de uma ação, não há narrativa, mas somente cronologia, enunciação de uma sucessão de fatos não relacionados".

Totalidade de significação

A totalidade de significação é apontada por Greimas como outro elemento fundamental da narrativa. Ainda que aparentemente o leitor não entenda um texto, há de ter nele uma significação para que se configure como história, como narração.

Em prosa e verso

Apesar de aparecer comumente em prosa, a narração pode existir em versos. Os exemplos clássicos são as epopeias, como a Odisseia, ou os romanceiros, como o Romanceiro da Inconfidência. Mas poemas como O Caso do Vestido e Quadrilha, de Carlos Drummond de Andrade, são verdadeiras narrativas em versos, com ação, personagens, sucessão, integração e significação.

Fontes:
Imagem obtida com Microsoft Bing