quarta-feira, 30 de julho de 2025

Ronaldo Correia de Brito (Eufrásia Meneses)

– Sentada estou. É aqui que me veem todas as tardes e me imaginam a esperar a noite. O que mais esperaria além da passagem da claridade? A hora em que me trancarei no meu quarto à espreita de um visitante que rondará a casa e que nem sei se é real ou se urdido pela minha fatigada solidão? Meu marido é incerto no vir, e todos o sabem. Pressentem que anoiteço e, se passam à minha porta, me perguntam: “Esperando a noitinha, dona Eufrásia?”. Mas o que me trará a noite além de um vento frio e de um silêncio fundo? O cheiro de carne apodrecida do gado morto neste ano de seca, um bater de portas que se fecham, o balido de ovelhas se aconchegando, o fungar das vacas prenhes, o estalar das brasas que se apagam no fogão.

Meu filho dorme ao lado, numa rede alva e cheirosa. Ouço o seu respirar leve e tenho a certeza de que está vivo. Habitamos este universo de ausências: ele dormindo, eu acordada. Atrás de nós, uma casa nos ata ao mundo. É imensa, caiada de branco, com portas e janelas ocupando o cansaço de um dia em abri-las e fechá-las. Fechada, a casa lacra a alegria dos seus antigos donos, seus retratos nas paredes, selas gastas, metais azinhavrados, telhado alto que a pucumã vestiu. Ela julga e condena os nossos atos, pela antiga moral de seus senhores, de quem meu marido é herdeiro. Assim, se penso no casual nome de outro, o estrangeiro que me olhou com mansidão, ela me escuta pensar e depois, nos meus sonhos, grita-me com todas as suas vozes. Sou escrava destas paredes, prisioneira de pessoas mortas há anos que, agora, se nutrem de mim. Abarcada pelo calçadão alto, onde me sento e olho a eterna paisagem: o curral, as lajes do riacho, a curta estrada, a capoeira, os roçados, as casas dos moradores. Envolvendo tudo, um silêncio e um céu azul sem nuvens, que o vento nem toca. E longe, onde não enxergo, a terra de onde vim.

Já é quase noite. Meu marido e seus vaqueiros tangeram o gado até o curral e voltaram a campear reses desgarradas. Trouxeram as ovelhas, com seus chocalhinhos tinindo e uma nuvem mansa de lã e poeira. Os animais estão magros e famintos. Também os homens. O sol queima e requeima as doze horas do dia e, à noite, um vento morno e cortante bebe a última gota d’água do nosso corpo. Já somos garranchos secos, quebradiços, inflamáveis. Basta que nos olhem para ardermos numa chama brilhante e fugaz, que logo é cinza.

Minhas veias guardam um resto de vida, alimento do meu marido. Ele deita sobre mim, funga, rosna, machuca-me sem me olhar no rosto. Depois cai para o lado. 

Não sei como escapar. São tantos os anos e há este filho doce, que repousa na rede. De tardezinha, nos debruçamos na janela e vemos o gado que chega. As vacas mugem, os touros andam lentos. O sol se avermelha, morrendo. É tudo tão triste que choramos, eu e ele. Ensino-lhe o pranto e a saudade. O pai ensina-lhe a dureza e a coragem. Quero este filho só para mim. Fazê-lo ao meu modo é a maior vingança contra meu marido, que me trouxe para cá, terras de "Sulidão", onde o galo só canta uma vez a cada madrugada.

É verdade que vim com as minhas pernas, que não fui forçada. Deixei o verde Paraí da minha mãe, onde meu pai descansa morto. Se fecho os olhos agora, vejo os canaviais ondulando e sinto o cheiro da rapadura. Nem sei como os meus pés despregaram de lá. Não consigo recompor o passo, na ligeireza que foi tudo. Um tio me levou para ser professora no Cameçá, a dez léguas de onde nasci. Ficaria por uns tempos na casa dos Meneses, que antes habitavam o Sulidão. Chegados há pouco na nova propriedade, o contato de pessoas civilizadas tinha-lhes imposto a necessidade de conhecer as letras. Meus alunos seriam os filhos: cinco mulheres e nove homens. Os velhos não se dariam a tais vexames.

Uma revoada de aves de arribação me acorda das lembranças. A África acolherá esses pássaros que abandonam o sertão. Se ficam aqui, morrem de fome e de sede. Voam num comprido manto, estendido no céu. Nós ficaremos, chupando a última gota d’água das pedras, lendo no sol, todos os dias, nossa sentença.

Um vaqueiro passa. Um galho de aroeira rasgou-lhe o couro do gibão e do braço. Vão à procura de mastruço para acalmar a ferida. A fome enerva o gado e os homens não conseguiram juntar os garrotes e os touros. Ouço-o dizer que o meu marido está nervoso e ameaçou de morte um chamado João Menandro, o de outras paragens. Desentendera-se. Meu marido, afeito ao mando, quer passar por cima de quem lhe esbarra na frente. Ou terá pressentido o que nenhum gesto meu jamais revelou? Tremo e mostro ao homem um canto do quintal onde poderá achar a sua meizinha. Ele me agradece, parece querer dizer outra coisa, porém cala e me olha com pena. Todos me olham assim. Se passam na minha porta, tiram o chapéu, desejam-me boa-hora e seguem em frente. Apesar dos anos passados, veem-me como estrangeira. É difícil o caminho que leva aos seus corações. Gostarão de mim, tão silenciosa e distante? Suspeitarão dos meus ocultos sentimentos? Procuro a resposta no vaqueiro e, quando vai embora, se despede num brusco balançar de cabeça.

No começo tentei amar esta terra e sua gente. Trazia a minha fresca alegria, banhada de novo nas fontes do Paraí. Mas aqui o sol queima forte e somos bebidos até a última gota. Seca, deixei de bater às portas e me recolhi ao labirinto da casa, onde continuo esperando. Os homens são o sol abrasante, vistos de dia, ocultos de noite. Na casa dos Meneses, fiquei o tempo de me apaixonar por Davi, meu futuro marido, e de ensinar aos alunos as primeiras letras. Fui tratada a açúcar, enquanto os outros comiam rapadura. Tempo de corredores escuros. Conheci a força dos abraços do meu marido, o ímpeto do seu desejo, e cedi. E aqueci minha alma de mulher e nem perguntei pelo amor. Só ardia. Deixei-lhe a mão solta, o desejo sem freios. Cavalgada, retornei à casa da minha mãe e esperei o dia do casamento. Dançamos os três dias de festa, viemos para este seco Sulidão. Esta casa fora abandonada por seus antigos donos, mas aguardava o peso cruel das suas presenças. Coube-nos perpetuar neste sertão uma herança de estirpe, sólida como as pedras do calçadão alto.

Meu filho, mexendo-se na rede, traz-me de volta à casa. Está tudo escuro e terei de acender os candeeiros. Numa noite como esta, passou correndo um lobo-guará. Meu marido deu tiros, mas não o acertou. Falou-se sobre o lobo por muitos dias. São os acontecimentos desta terra. Vivo de silêncio e de lembranças. Às vezes, quando não quero sonhar, penso em nomes de pássaros, retardando a hora em que terei de me trancar a ferrolhos. Procuro esquecer um tropel que ronda a minha janela, todas as noites em que me deito só. É a hora de decidir? Ouço um respirar que não é o meu. A noite é um lençol que cobre a fadiga dos homens. Dominada pelo cansaço, adio mais uma vez a minha escolha. A realidade de uma lâmina de faca, guardada sob o travesseiro, lembra-me o instante em que poderei cortar o sono e cavar a vida.

Um vaqueiro vem me avisar que meu marido não retornará esta noite. Celebram uma festa perto daqui. Vieram músicos e mulheres de longe. Na madrugada, ainda se ouvirão os gritos de prazer e as notas perdidas de uma música que não conseguirei identificar. O homem me oferece a companhia de uma filha sua e eu agradeço. Diz-me que a briga entre meu marido e o que veio de longe deixou no ar uma sentença de morte. A noite poderá trazer surpresas e eu devo me recolher cedo. Estou só. Não há pai, nem há mãe, nem sorriso de irmãos. Só a casa espreita, querendo me tragar.

João Menandro é um nome que se confunde com o meu sonho. Haverá mesmo, lá fora na noite, alguém que me aguarda, ou o meu desejo inventou esse ser? A noite interminável me cansa e penso em apressar o desfecho de tudo. Não há tempo para contemplar passiva o mundo morrendo em volta. A mão se endurece ao toque da lâmina que o travesseiro esconde. Meu marido retornará sonolento. O outro virá até minha janela. Eu me olharei num espelho. Chegará sim, a madrugada. Aquela que poderá ser a última, ou a primeira.

(Extraído do livro do autor, "Faca": contos, 2003)
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Ronaldo Correia de Brito (Saboeiro/CE, 1951) é um escritor, médico e dramaturgo brasileiro. Radicado no Recife, formou-se em Medicina pela Universidade Federal de Pernambuco, 1975. Foi escritor residente da Universidade de Berkeley, participou de diversos eventos internacionais, como a Feira do Livro de Bogotá e o Salon du Livre de Paris. Recebeu homenagens por sua obra, como a da VIII Bienal Internacional do Livro de Pernambuco.. Sua carreira artística envolve as mais diferentes linguagens, como literatura, teatro e música. São de sua autoria Baile do Menino Deus (teatro), Faca (livro de contos), Galileia (romance ganhador do Prêmio São Paulo de Literatura), Estive lá fora (romance) e O amor das sombras (contos). Em 2011 lança os livros Arlequim de Carnaval e Bandeira de São João. É finalista do Prêmio Jabuti de Literatura com o livro Retratos Imorais. Em 2012 lança o romance Estive lá Fora. Em 2015 lança o livro de contos O Amor das Sombras. Em 2013 foi um dos autores brasileiros convidados a participar da Feira do Livro de Frankfurt e da Jornada Literária de Pequim. Tem livros e contos traduzidos para diversas línguas. Desde 2000, é colunista da Continente, revista mensal de cultura.

Fontes: 
– MACIEL, Nilto. Contistas do Ceará: d’a Quinzena ao Caos Portátil. Fortaleza: Imprence, 2008. Enviado por Nilto..
– Imagem = http://rossi.blog.uol.com.br

Espada e Feitiçaria

É um sub-gênero da fantasia e da fantasia histórica, geralmente caracterizado por heróis espadachins envolvidos em conflitos emocionantes e violentos. Um elemento de romance está sempre presente, como um elemento de magia e do sobrenatural. Ao contrário de obras de alta fantasia, os contos, embora dramáticos, concentram-se principalmente em batalhas pessoais dos heróis, em vez de questões que podem afetar os mundos em que estes habitam.

Um gênero de filme tangencialmente relacionado com espada e feitiçaria, pelo menos no nome, é a Espada e sandália, embora seus temas são geralmente orientados para os tempos bíblicos e da Antiguidade, em vez de fantasia.

O termo "espada e feitiçaria" foi cunhado pela primeira vez em 1961, quando o autor britânico Michael Moorcock publicou uma carta no fanzine Amra, exigindo um nome para o tipo de história de fantasia e aventura escrito por Robert E. Howard. Ele havia proposto inicialmente o termo "fantasia épica". No entanto, o célebre escritor americano Fritz Leiber respondeu na revista Ancalagon (6 de abril de 1961), sugerindo , espada e feitiçaria como um bom slogan popular para o campo.

Apesar de não ser mencionado explicitamente na carta de Leiber, o gênero de filmes "espada e sandália", surgido na Itália, que descreve as aventuras heroicas nas configurações derivadas da Bíblia ou da mitologia grega, estava no auge de sua popularidade nos Estados Unidos no momento em que a carta foi escrita.

O subgênero tem raízes antigas. Em última análise, como de mitologia e épicos clássicos como A Odisséia de Homero e as sagas nórdicas. Ele também é influenciado pela ficção histórica, iniciada por Sir Walter Scott, sob a influência da coleção romântica de folclore e baladas. No entanto, muito poucos dos seus trabalhos contêm elementos fantásticos.; na maior parte, o aparecimento de tais é explicado, mas em seus temas de aventura em uma sociedade estranha, isso levou às aventuras estabelecidas em terras estrangeiras por H. Rider Haggard e Edgar Rice Burroughs. As obras de Haggard incluem muitos elementos fantásticos.

No entanto, os progenitores imediatos de espada e de feitiçaria são os contos capa e espada de Alexandre Dumas, pai (Os Três Mosqueteiros (1844), etc.), Rafael Sabatini (Scaramouche (1921), etc.) e seus imitadores publicados em revistas pulp, como Talbot Mundy, Harold Lamb, e H. Bedford-Jones, todos influenciaram Robert E. Howard. No entanto, estes romances históricos não possuíam o elemento verdadeiramente sobrenatural (embora a ficção de Dumas continha muitos tropos de fantasia). Outra influência era início da ficção fantástica como "The Fortress Unvanquishable, Save for Sacnoth" de Lord Dunsany (1910), The Ship of Ishtar de A. Merritt (1924). Todos esses autores influenciaram as tramas, personagens e paisagens usadas em espada e feitiçaria.

Além disso, muitos primeiros escritores de espada e feitiçaria, como Robert E. Howard e Clark Ashton Smith, foram fortemente influenciados pelos contos orientais das Mil e Uma Noites cujas histórias de monstros mágicos e feiticeiros malignos foram uma grande influência sobre o gênero.

Também pode-se notar que, nas suas representações frequentes de tabernas esfumaçadas e becos malcheirosos, por exemplo, a cidade Lankhmar de Fritz Leiber tem semelhança considerável com a Sevilha do século 16 como descrita no conto Rinconete y Cortadillo de Miguel de Cervantes.

Espada e feitiçaria adequada só verdadeiramente começou nas revistas de fantasia pulp, onde surgiram a partir do gênero "weird fiction". Particularmente importante foi a revista Weird Tales, que publicou histórias de Conan, o Bárbaro de Robert E. Howard e Jirel of Joiry de C. L. Moore, bem como influências importantes como H. P. Lovecraft e Clark Ashton Smith.

O gênero foi definido, fortemente, pela obra de Robert E. Howard, em particular seus contos de Conan, o Bárbaro e Kull da Atlântida, a maioria publicada na Weird Tales de 1932 e 1929, respectivamente.

Outros livros e séries que definem o gênero de espada e feitiçaria incluem:

As séries de contos Zothique e Hyperborean de Clark Ashton Smith, começando com "The Empire of the Necromancers" e The Tale of Satampra Zeiros

A série de contos Jirel of Joiry de C. L. Moore, começando com "Black God's Kiss" (1934), que introduziu a primeira notável heroína de espada e feitiçaria.

Fafhrd and the Gray Mouser de Fritz Leiber, começando com "Two Sought Adventure" (1939)

Elric de Michael Moorcock, começando com The Dreaming City (publicada em 1961 na revista Science Fantasy), notável por sua adesão ao contra estereótipo.

Swords and Sorcery de L. Sprague de Camp, a primeira antologia de espada e feitiçaria, Pyramid Books, Dezembro de 1963.

Kane de Karl Edward Wagner, começando com Darkness Weaves (1970), creditado com a revitalização do gênero.

Thieves World de Robert Lynn Asprin, uma série de antologias de universo compartilhado criado em 1978. Return to Nevèrÿon de Samuel R. Delany, uma série de três coleções de histórias e um romance influenciado pela teoria crítica, publicado de 1979 a 1987.

Imaro de Charles R. Saunders, começando com Imaro (1981), uma coleção de contos publicados pela primeira vez na década de setenta no fanzine Dark Fantasy, que introduziu o primeiro protagonista negro de espada e feitiçaria.

Kothar, Kyrik e Crom the Barbarian de Gardner Fox, sendo Crom, a primeira série de quadrinhos do gênero.

Outras de histórias de fantasia pulp, tais como Barsoom de Edgar Rice Burroughs e Sea Kings of Mars de Leigh Brackett se assemelham a espada e feitiçaria, mas a ciência alienígena substitui o sobrenatural, e geralmente são descritos como romance planetário ou espada e planeta, gêneros mais ligados a ficção científica.

Apesar disso, romance planetário está estreitamente alinhada com espada e feitiçaria, o trabalho de Burroughs, Brackett, e outros foram significativos na criação e difusão de espada e feitiçaria. Otis Adelbert Kline, que foi agente literário de Robert E. Howard, também escreveu histórias similares. Em 1939, após quase três anos do falecimento de Howard, foi publicado nas páginas da revista Weird Tales, o romance Almuric, cuja autoria é atribuída a Howard.

Da década de 1960 até a década de 1980, sob a orientação de Lin Carter, um seleto grupo de escritores formaram a Swordsmen and Sorcerers Guild of America (SAGA) para promover e ampliar o gênero espada e feitiçaria. De 1973 a 1981, cinco antologias de contos de membros SAGA foram publicados: editadas por Carter, estas foram conhecidas coletivamente como Flashing Swords. Devido a estas e outras antologias (como a série Ballantine Adult Fantasy), a sua própria obra, e sua crítica, Carter é considerado um dos mais importantes divulgadores do gênero de fantasia em geral, e espada e feitiçaria em particular.

Outra espada série de antologia notável que decorreu de 1977 a 1979 foi Swords Against Darkness. Esta série teve cinco volumes e contou histórias de autores como Poul Anderson, David Drake, Ramsey Campbell, Andre Norton, e Manly Wade Wellman.

Na década de 1980, espada e feitiçaria foi usado como um termo depreciativo para os filmes baratos de fantasia que surgiram na época como um resultado do sucesso da adaptação cinematográfica de Conan, o Bárbaro (1982), figura emblemática do gênero. O termo também é usado depreciativamente por escritores e leitores de fantasia épica. Revistas como Black Gate e os e-zines Flashing Swords (não confundir com as antologias Lin Carter) e Beneath Ceaseless Skies publicam contos do gênero.

Apesar da importância do C. L. Moore, Leigh Brackett, Andre Norton, e outras autoras, bem como a primeira heroína, Jirel of Joiryl de C. L. Moore, espada e feitiçaria tem sido caracterizada como tendo um viés fortemente masculino. Personagens femininas eram donzelas geralmente em dificuldades para ser resgatado ou protegidas, ou de outra forma serviam como um incentivo ou recompensa para as aventuras de um herói masculino. As mulheres que tiveram sua próprias aventuras muitas vezes para combater a ameaça de estupro, ou por motivo de vingança.

Sword and Sorceress série de antologia de Marion Zimmer Bradley (1984 em diante) tentou o inverso. Bradley encorajou escritoras e a criação de protagonistas femininas: as histórias apresentam espadachins hábeis e feiticeiras poderosas. A série foi imensamente popular e Bradley estava editando seu volume final, no momento da sua morte (a série continuou com outros editores).

O primeiro escritor de espada e feitiçaria, Robert E. Howard, tinha opiniões feministas, que ele adotou tanto na vida pessoal quanto profissional. Ele escreveu para seus amigos e associados defendendo as conquistas e capacidades das mulheres. Fortes personagens femininas nas obras de ficção de Howard incluem Dark Agnes de Chastillon (primeira aparição em "Sword Woman", por volta de 1932- 34), a pirata moderna Helen Tavrel ("A Ilha dos Piratas" Doom ", 1928), bem como duas piratas e Conan, o Bárbaro, personagens de apoio, Bêlit ("The Isle of Pirates' Doom", 1934) e Valeria da Irmandade Vermelha ("Red Nails", 1936).

Introduzida como uma personagem menor em uma história histórica não-fantástica de Howard, "The Shadow of the Vulture", Red Sonya of Rogatino viria a inspirar uma heroína chamada Red Sonja, que apareceu pela primeira vez na série de quadrinhos da Marvel Comics, Conan, o Bárbaro escrita por Roy Thomas. Red Sonja ganhou seu próprio título, eventualmente, uma série de romances por David C. Smith e Richard L. Tierney, bem como a adaptação para o cinema de Richard Fleischer lançada em 1985.

Fontes:
Imagem: Capa do romance The Chessmen of Mars, da série literária Barsoom de Edgar Rice Burroughs, 1922.

segunda-feira, 28 de julho de 2025

Asas da Poesia * 59 *


Poema de 
LAIRTON TROVÃO DE ANDRADE
Pinhalão/PR

Lágrima oculta
"Levanta-te, minha amada, formosa minha."
(Ct 2.13)

Gota de pranto d'alma escondida,
Que sutilmente caiu da flor;
Foi o pulsar da emoção dorida,
Que ternamente me trouxe amor.

Foi essa lágrima, então, pendida,
Que dos teus olhos eu vi brotar,
Lágrima única, enternecida,
Que, compungido, me fez sonhar.

Lágrima afável e misteriosa,
Secretamente mui delicada,
Deixou esbelta - manhã graciosa,
A linda face sempre corada.

Sereno rosto, alma lacrimante,
Quão silenciosa é a oculta dor!
Teu seio puro - pombinha errante,
Só busca o sonho de um puro amor.

Lágrima doce em face formosa,
Ó lábios virgens de viva cor,
Encosta aqui teu rostinho rosa
E que eu, de graça, te dê amor.
= = = = = = = = =  

Trova de
CAROLINA RAMOS
Santos/SP

Não temas portas fechadas,
nem mesmo fracassos temas,
há sempre forças guardadas
para as conquistas supremas.
= = = = = = = = =  

Soneto de
EDY SOARES
Vila Velha/ES

Desalento

Quem vai nunca vai sozinho,
leva um pedaço da gente;
quem fica não fica inteiro;
pois, a alma fica doente.

Quem fica sente saudades,
o soluço sufoca o peito.
Quem chora apascenta a alma;
quem sorri, o faz com respeito.

Qual livro na prateleira
e conto que vai pra memória,
a saudade rasga o peito,
qual página que finda a história.

A lágrima, que lava os olhos,
não leva a dor de quem chora.
= = = = = = = = =  

Aldravia de
MARÍLIA SIQUEIRA LACERDA
Ipatinga/MG

minh’alma
constrói
madrugadas
poéticas:
solitárias
palavras
= = = = = = = = =  

Poema de
SILVIAH CARVALHO
Manaus/AM

Como se fosse a última vez!

Já era dia
Desejei tanto que fosse noite,
...E aquela noite parecia dia!
Aqueles dias infindáveis de tão grande harmonia.

Eu te amei de uma forma tamanha, estranha,
Que toda noite era dia, e o dia se aproximava,
E eu nem percebia! Queria velar teu sono,
Tocar seu rosto enquanto dormia.

Dizer-te baixinho eu amo você!
Fica mais um dia, mas se te acordasse,
Eu não me perdoaria, estava tão lindo!
Seus olhos fechados, sua boca entreaberta.

Pedia-me um beijo, eu não resistia...
Amei-te, como quem ama pela última vez.
Senti seu coração bater, Como se fossem as últimas batidas,
Senti seu calor como se fosse sentir frio o resto da vida.

E já era noite, a lua desejava ver-te, 
Encantá-lo com sua beleza, talvez.
Roubá-lo de mim outra vez.

Mas um tão grande egoísmo em mim se fez,
Fechei a janela, queria tê-lo só para mim dessa vez.
E desejar que fosse dia, mesmo sendo noite.

...Como se fosse a última noite, a última vez!
= = = = = = = = =  

Trova de
ELEN DE NOVAIS FELIX 
Rio de Janeiro/RJ

Mesmo numa noite triste
quando meu mar se encapela,
minha canoa resiste:
é que Deus vai dentro dela.
= = = = = = = = =  

Poema de
DOMINGOS FREIRE CARDOSO
Ilhavo/ Portugal

Tudo o que sou é menos do que eu quero
(José Carlos Ary dos Santos in "Cem Sonetos Portugueses", p. 146)

Tudo o que sou é menos do que eu quero
Para matar a sede em que me afogo
E acabrunhado aos pés da vida eu rogo
O fim da pequenez que não tolero.

Amarrado a um corpo que é severo
Nas margens do impossível em que eu vogo
Perplexo, pobre e puro eu me interrogo
Do modo como ser mais do que um zero.

Tem razões para estar insatisfeito
O coração que trago no meu peito
Vestindo a sua estranha condição:

Com asas de voar para se erguer
O destino o condena a padecer
E a morder esse pó que há pelo chão.
= = = = = = = = = 

Trova de
ARTHUR THOMAZ
Campinas/SP

No momento da partida,
o beijo cala um adeus
e uma lágrima incontida
vem molhar os lábios teus.
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Soneto de
AFONSO FREDERICO SCHMIDT
Cubatão/ SP, 1890-1964, São Paulo/SP

A beleza

Neste crisol do coração, Beleza
Que iluminas a nossa noite escura,
És a Bondade — que se fez Grandeza
E a Dor sofrida — que se fez Doçura.

És a muda expressão da Natureza;
Beijo no amor, sorriso na candura,
Prece na morte, pranto na tristeza
E, para os poetas, mística tortura.

Ninfeia azul no pântano estagnado,
Flores brotando na aridez das lousas,
Ou mistério no páramo estrelado,

Em tudo o que nos cerca, tu repousas,
Porque a Beleza é Deus manifestado,
A nos sorrir pela expressão das cousas*.
= = = = = = = = =  = = = = = = = = =  = = = = 
* cousa = a grafia correta é “coisa”. A forma ‘cousa’ era utilizada em português, mas caiu em desuso a partir da evolução da língua portuguesa moderna. Contudo, não é errado a sua utilização, tanto que a palavra ainda faz parte dos dicionários. 
= = = = = = 

Haicai de
A. A. DE ASSIS
Maringá/PR

Hai…tchim!!!

Filas nos postinhos.
Em meio a espirros e tosses,
velhinhos papeiam.
= = = = = = = = =  

Poema de
FILEMON MARTINS
São Paulo/ SP

Compondo versos

Eu quisera compor uns lindos versos
que falassem do amor e da paixão,
destes sonhos antigos e dispersos
que ocuparam meu pobre coração.

Teus olhos cor de mar (quase perversos),
pousaram sobre mim, que perdição,
e meus sonhos agora estão imersos
neste mar de beleza e solidão.

Por que partiste assim, sem dizer nada,
deixando apenas tua gargalhada
que em saudade se fez e em mim convive?

Peço para que voltes, doce amada,
porque sem luz não há mais alvorada,
sem teu amor meu coração não vive!
= = = = = = = = =  

Trova de
JERSON LIMA DE BRITO
Porto Velho/RO

Sentindo o golpe certeiro
da paixão que me extasia
louvo teu sorriso, arqueiro
de notável pontaria.
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Soneto de
MIGUEL RUSSOWSKY
Santa Maria/RS (1923 – 2009) Joaçaba/SC

Noite sem aurora

A noite de um adeus não tem aurora
mas tem silêncios longos por recheio;
tem farpas arranhando, bem no meio...;
tem desesperos mil vagando fora...

A noite de um adeus, eu sei que chora
ao ver a sepultura de um anseio.
Não a censuro e até a manuseio
com estes versos que componho agora.

A noite de um adeus ensina a gente
ter dias sem relógio...e alguém já disse
que nunca cicatriza totalmente.

A noite de um adeus...só bem depois
expõe a solidão, numa velhice,
em que murchamos tristes nós, os dois.
= = = = = = = = =  

Aldravia de
MARIA BEATRIZ DEL PELOSO RAMOS
Rio de Janeiro/RJ

Mar
arado
pelos
olhos
colho
saudade
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Cantiga Infantil de Roda
A VELHA A FIAR

Estava a velha no seu lugar, 
veio a mosca lhe incomodar.
A mosca na velha 
e a velha a fiar.

Estava a mosca no seu lugar, 
veio a aranha lhe fazer mal.
A aranha na mosca, 
a mosca na velha 
e a velha a fiar.

Estava a aranha no seu lugar, 
veio o rato lhe fazer mal.
O rato na aranha, 
a aranha na mosca,
a mosca na velha 
e a velha a fiar.

Estava o rato no seu lugar, 
veio o gato lhe fazer mal.
O gato no rato, 
o rato na aranha, 
a aranha na mosca,
a mosca na velha 
e a velha a fiar.

Estava o gato no seu lugar, 
veio o cachorro lhe fazer mal.
O cachorro no gato, 
o gato no rato,
o rato na aranha, 
a aranha na mosca,
a mosca na velha 
e a velha a fiar.

Estava o cachorro no seu lugar, 
veio o pau lhe fazer mal.
O pau no cachorro, 
o cachorro no gato, 
o gato no rato,
o rato na aranha, 
a aranha na mosca,
a mosca na velha 
e a velha a fiar.

Estava o pau no seu lugar, 
veio o fogo lhe fazer mal.
O fogo no pau, 
o pau no cachorro, 
o cachorro no gato,
o gato no rato, 
o rato na aranha, 
a aranha na mosca,
a mosca na velha 
e a velha a fiar.

Estava o fogo no seu lugar, 
veio a água lhe fazer mal.
A água no fogo, 
o fogo no pau, 
o pau no cachorro,
o cachorro no gato, 
o gato no rato, 
o rato na aranha,
a aranha na mosca, 
a mosca na velha 
e a velha a fiar.

Estava a água no seu lugar, 
veio o boi lhe fazer mal.
O boi na água, 
a água no fogo, 
o fogo no pau,
o pau no cachorro, 
o cachorro no gato, 
o gato no rato,
o rato na aranha, 
a aranha na mosca,
a mosca na velha 
e a velha a fiar.

Estava o boi no seu lugar, 
veio o homem lhe fazer mal.
O homem no boi, 
o boi na água, 
a água no fogo,
o fogo no pau, 
o pau no cachorro, 
o cachorro no gato,
o gato no rato, 
o rato na aranha, 
a aranha na mosca,
a mosca na velha 
e a velha a fiar.

Estava o homem no seu lugar, 
veio a mulher lhe incomodar.
A mulher no homem, 
o homem no boi, 
o boi na água,
a água no fogo, 
o fogo no pau, 
o pau no cachorro,
o cachorro no gato, 
o gato no rato, 
o rato na aranha,
a aranha na mosca, 
a mosca na velha 
e a velha a fiar.

Estava a mulher no seu lugar, 
veio a morte lhe levar.
A morte na mulher, 
a mulher no homem, 
o homem no boi,
o boi na água, 
a água no fogo, 
o fogo no pau,
o pau no cachorro, 
o cachorro no gato, 
o gato no rato,
o rato na aranha, 
a aranha na mosca,
a mosca na velha 
e a velha a fiar.
= = = = = = = = =  

Quadra Popular
AUTOR ANÔNIMO

Vi hoje uma árvore velha
toda coberta de flores
e me lembrei da minh’alma
carregadinha de dores.
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Poema de
VANICE ZIMERMAN
Curitiba/PR

Mandalas de folhas

Em uma das mãos seguro
Uma folha  do Plátano
Lembranças do Outono...
Na fragilidade da folha,
Ainda sinto o toque das tuas mãos,
E, de um tempo em que fazíamos
Mandalas de folhas...
E depois ficávamos juntinhos,
Observando a brisa
Acariciar as folhas,
E as cores do pôr do sol.
Não resisto e...
As lágrimas escapam.
= = = = = =

Trova de
MARIA HELENA URURAHY
Angra dos Reis/RJ

O sabor do beijo ousado,
naquele adeus na estação,
deixou comigo, guardado,
o amargo da ingratidão…
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Soneto de
THEREZINHA DIEGUEZ BRISOLLA
São Paulo/SP

Lar… doce lar…

Volto à casa, que “era minha”,
risco a calçada e, feliz,
vou pular amarelinha
mas, o pranto apaga o giz!

Hoje, saudosa, eu volto ao lar antigo
e escancarando a porta semiaberta,
procuro em vão… vasculho o doce abrigo…
Nem pai… nem mãe… a casa está deserta!

E volto ao lar, que dividi contigo…
– Vaivém dos filhos, pela porta aberta…
– Visita alegre de um ou de outro amigo…
E, hoje, é a saudade que o meu peito aperta.

Mas, por deixar pegadas nos caminhos,
não fiquei só!… Cercada de carinhos,
eu sou feliz!… Se volta o sonho louco

do teu amor, acalmo o coração
pois, ao sentir que chega a solidão,
no amor dos filhos eu te encontro um pouco.
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Poetrix de
RENATO FRATA
Paranavaí/PR

Manhã

Gemido de amor que se cala,
cão vadio que se deita:
– madrugada que se esvai…
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Poema de
FRANCISCO JOSÉ PESSOA
Fortaleza/CE, 1949 - 2020

No falado paraíso 
Onde nasceu a manhã 
Onde a primeira maçã 
Tirou do homem o juízo 
Extraído o dente ciso 
Com o velho boticão 
Da boca do velho Adão 
Fato que não se malogra 
Mas Adão foi sorteado 
E por Deus presenteado 
Pois nunca teve uma sogra!
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Trova de
NILTON MANOEL ANDRADE TEIXEIRA
Ribeirão Preto/SP, 1945 – 2024

Cavalgando sem rodeios
por galáxias estreladas,
o poeta em seus anseios
tece trovas requintadas.
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Andréia Donadon Leal (A Bibliotecária)

Os livros estavam devidamente enfileirados nas estantes. Poucos centímetros de distância um do outro. Nenhum torto, fora de foco. As orelhas desamassadas, passadas com chapa de ferro morno. O cuidado era devidamente dado para cada um, sem discriminação. O cheiro da sala, papel. O lugar pouco iluminado, embora o requeresse. Na mesa, ao fundo, uma figura vergada e escondida na pilha de livros para carimbar. Idade avançada. Cabelos cor de prata. Rugas rasgavam ponta a ponta o rosto descorado. Uma vida inteira de cultura, diversão, viagens, um pouco de tudo mostrado pelas palavras imprensas nas páginas dos livros.

Clarice estava pouco a aposentar. A preocupação acometia seus últimos dias com a ideia. Quem iria cuidar deles? Os sonhos lhe roubavam o sono; os olhos mais fundos. Os livros, sua vida, arremessados no lixão da cidade. Livros velhos? Antigos e restaurados; relíquias. Nas manhãs a cabeça queria explodir e quase Clarice perdera a hora de trabalhar. A biblioteca da escola não funcionava sem ela. Não abriam. Ninguém sabia mexer com carinho nos livros. Não encontravam a essência da pesquisa. Também só ela dera conta até hoje de livro por livro. As capas que fazia para os que estragavam tiravam exclamações de incredulidade. Ficavam perplexos. Era muito especial. Qualquer pesquisa Clarice dava conta. Ia sempre além, explicava com precisão todos os detalhes. Sabia um pouco de tudo. Com a sacola pesada de livros restaurados entrava diariamente na biblioteca cruzando a mão direita no rosto, rezava pai-nosso e ave-maria. Uma vida dedicada somente ao trabalho e nada mais.

Clarice morava três quarteirões da escola. Casa modesta, herdada. A outra única coisa que fizera foi cuidar de sua mãe – morta havia uma década. Cuidado devido de filha exemplar, solteirona e única. Dividia parte de suas horas ora com a mãe, ora com os livros. Dona Gertrudes morrera numa manhã cinzenta de sexta-feira treze. Clarice tinha pavor destes dias, mesmo sabendo que era lenda. O sossego, a paz e o sorriso meigo que sempre faziam parte do seu perfil ficavam tensos. Mas ninguém percebia. A bibliotecária, pessoa muito estimada, querida por todos. Falavam que nem pecado tinha. Nunca arrumara um namoro. Era santa. Diziam que quando a boa dona donzela morresse iria direto para o céu. Em quase trinta anos, Clarice nunca dera uma má resposta, uma palavra feia, nenhum olhar meio torto. Mas o sonho mexia com sua rotina. Seria aviso de morte repentina? Os dias estavam findando para ela? Livros no lixão da cidade! No livro de sonhos consistia informação de algo novo na vida.

Para Clarice, novo seria o fim. Deus dar cabo na vida atribulada e solitária. Ponto final. Tudo investido em quatro paredes infestadas de livros. Histórias, informações, um mundo, o segredo da vida impressos nas páginas. A sensação, a mesma de ter vivido com emoção detalhes, aventuras, desventuras… As paixões atingiam um mundo desconhecido para ela. Não abria estas páginas. As mãos iam vez ou outra em contramão com a cabeça. Rezava vários padre-nossos e pedia logo perdão. Mesmo com os livros não recomendados, tinha obrigação de conservá-los. Não discriminava nenhum. Apenas deixava-os de lado. Um outro gosto que não combinava com uma vida afastada dos desejos e maldades da carne. Mundo desconhecido. Um fim de expediente como outro qualquer. Um dia cinzento. Frio. Clarice limpou o último livro. Fechara com cuidado as janelas pesadas de madeira. Antes de sair, mais uma olhada. Uma olhada demorada, apaixonada, precisa. Os livros estavam cada um no seu lugar. Limpos, conservados. Devidamente enfileirados. Alguns estavam sobre a mesa. Estragados, mal conservados. Daria um jeito.

Clarice dirigiu-se à mesa. Pensou em juntá-los e levá-los para casa. Antes de dormir teria tempo para arrumar uns três. Pela primeira vez o cansaço venceu. Estava ficando mesmo velha. Tinha que aposentar. Uma dor de cabeça, corpo ruim. Com a idade, a gripe costumava visitá-la mais vezes no ano. E este frio piorava tudo. Em casa tomaria um chá quente. O resfriado iria embora.

Ainda com os olhos sobre a mesa de livros, Clarice pensava. Não viu quando um rapaz chegou e ficou olhando para ela. Alheia ao tempo e tudo. Voltou quando escutou um pigarro. Pela primeira vez, corou. Será que o rapaz pensaria que estava esclerosada? Falava sozinha? De vez em quando fazia isto. Costume de vida solitária. Ela, só na sua companhia. Mas, daí? Nunca importava. Não ligava. Ajeitou a postura, prontificou-se. O rapaz, viajante. Hoje iria demorar. O mal estar ficaria para depois. Certamente ele mostraria catálogos e mais catálogos de livros. Compra de livros.

Esquecera por completo.

O rapaz da editora sentou. Com os olhos puxados e enigmáticos abriu os catálogos. Mãos grandes e unhas bem aparadas. As mãos do rapaz. Clarice imaginou como seria o toque delas. Chegou a esbarrar sua mão. Desconfiou estar com febre. O danado do resfriado desestruturou tudo. O rapaz falava. Voz macia. Dentes brancos. Lábios bem desenhados. Clarice não escutava. Olhava para o rosto dele. Enfeitiçada. Como seria beijar aqueles lábios? O viajante perguntou algo, não respondeu. Não o ouvira. As mãos dele falavam. Tudo que queria era sentir o toque macio das mãos no rosto pálido. Aquelas mãos esquentariam a pele até torná-la corada, sadia. Uma vontade quase incontrolável.

Clarice pensou aterrorizada ter pedido ao viajante para acariciar-lhe o rosto. Um toque apenas, por favor. Fechou os olhos. Sentiu o calor das mãos do rapaz. Aquecida. Estava mesmo carente. Esqueceu de oferecer um chá para o viajante. A bibliotecária educada, contida, estava ficando lerda. Velha. O rapaz novamente perguntou. Voz grave, hálito cheiroso. Cheiro de menta. Um sorriso separou seus lábios. Clarice despertou dos pensamentos. Pediu desculpas. A explicação, pouco convincente, o cansaço, a gripe prestes a sair do corpo. O viajante sorriu. Os olhos também sorriram. Separou catálogos. Entregou um a um. Roçou as mãos. Olhou profundamente para ela. Chegou próximo. Mais alto que parecia. Mais bonito. Muito próximo. Clarice chegou a pensar que o viajante iria beijá-la. Fechou os olhos imaginando a cena. Nunca sentira um roçar de lábios e o gosto de uma boca que não fosse a sua.

Delicadamente as mãos do viajante passaram pelo rosto dela. Uma fração de segundos. Uma vida inteira, só. Um dia, um desejo. Toque como imaginara: suave, quente, delicado, gostoso… Uma última olhada apaixonada nos livros e com a chave passou a tranca na porta da biblioteca.
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Obs: Este conto foi escrito em um parágrafo. Contudo, para não tornar a leitura cansativa em uma tela do computador, tomei a liberdade de parti-lo em alguns parágrafos. O texto permanece o mesmo, sem ser alterada a sequência.
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Andreia Donadon-Leal nasceu em 1973, na cidade de Itabira/MG. Radicou-se em Mariana/MG. Graduada em Letras, Especialista em Artes Plásticas, Arteterapeuta, Mestre em Literatura e Doutora em Educação (tese: Metodologia de ensino da Arteterapia Aldravista para idosos).. Adaptou algumas peças clássicas para aliar o teatro, a fala e a socialização de alunos.. Criou o projeto social: Natal sem Fome em Santa Bárbara, com apresentações semestrais de peças teatrais adaptadas, com campanhas de arrecadação de alimentos. Criadora da primeira forma de poesia brasileira, ALDRAVIA.. Responsável pela implementação do Laboratório de Linguagens Afetivas- LALIA, nas unidades prisionais e APACS do Estado de Minas Gerais. Proprietária da Casa de Arte Aldravista, espaço de artes, literatura e cultura, onde recebe alunos, professores, escritores, artistas e jornalistas.. Ministrou oficinas e palestras na Espanha, para alunos e educadores.. Venceu o concurso de Artes Plásticas contemporâneas na Espanha, França e Itália. Sua obra "TERRA EM LAMAS" foi selecionada para fazer parte do Patrimônio Artístico do Tribunal de Justiça de Minas Gerais. Membro da Casa de Cultura - Academia Marianense de Letras. Dirigiu e supervisionou o livro de Restauro da Câmara Municipal e Casa de Cadeia de Mariana. Coordenou e idealizou a edição do box: Abra a História da gaveta do Patrimônio Imaterial de Mariana. Destacou a cidade de Mariana-MG em programas da globo: Fantástico, Terra de Minas, Jornal Nacional, Internacional, Jornal Hoje e Globo News. Organizou livros que colocam em destaque figuras femininas da cidade Mulheres cronistas e Contistas de Mariana-MG. Idealizou a Academia Marianense de Bordados (a primeira academia de Bordados do país). Membro benemérito da Academia Feminina Mineira de Letras, Embaixadora Universal da Paz do Círculo Universal da Paz - Genebra-Suíça, autora de 34 livros de poesia, ensaios, contos, crônicas e infantojuvenil.

Fontes:
Jornal Aldrava Cultural. http://www.jornalaldrava.com.br/ Acesso em 31.10.2009
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