segunda-feira, 11 de agosto de 2025

Márcia Lígia Guidin (Machado de Assis: Por que lê-lo)

Machado de Assis nasceu em 1839 e morreu em 1908. Foi um escritor do tempo de dom Pedro II. Por que, então, ler as obras de alguém que morreu há quase cem anos? Na verdade, poderíamos dar muitas razões acadêmicas e culturais: ele é o maior símbolo do realismo brasileiro, movimento que introduziu no país; fundou a Academia Brasileira de Letras, era genial, veio das classes baixas etc.

Mas o fato é que a melhor razão as pessoas não dizem: ler Machado é muito engraçado. Suas histórias são irônicas, reveladoras de coisas que todo mundo sabe, mas não comenta… Elas falam de valores morais que todos criticam, mas têm.

Quando alguém diz que Machado é “cético”, é disso que está falando: esse ótimo escritor não acreditava nas boas intenções, na bondade, na generosidade, no amor romântico, na eterna lealdade.

Máscaras da sociedade

Machado desmascarou com sutileza a falsidade de homens e mulheres de sua época de, sua cidade, de nosso país. Só que as situações e temas de que trata em sua obra são tão universais (amor, adultério, egoísmo, cinismo, apadrinhamentos, pobres e ricos, casamentos por interesse etc.), que nosso escritor pode ser lido em qualquer outro país. Ou seja, temos um escritor brasileiro (na época em que havia poucos), tão importante quanto Eça de Queirós, Dostoiévski, Flaubert.

Machado de Assis não imitava outros escritores, era original. A personalidade desse autor era tão irônica, tão observadora da realidade, que temos o riso de canto de boca a cada frase em que prestamos melhor atenção.

Essa conversa de que só entenderemos Machado depois de adultos é besteira. O que existe é falta de ajuda de outros leitores (professores, pessoas mais velhas) para começarmos a ler e apreciar esse escritor universal.

O defunto Brás Cubas

Por exemplo, um de seus mais famosos personagens, o solteirão Brás Cubas, do romance “Memórias Póstumas de Brás Cubas” (1881) resolve contar sua vida e seus amores depois da sua morte. Ele está entediado na eternidade, não tem o que fazer, é um defunto que vira autor (é, portanto, um defunto autor e não um autor defunto). Como Cubas quer ser original, diz que vai começar sua história narrando sua morte e não o nascimento. Moisés, o grande Moisés, começou pelo começo, diz ele; para ser original, então, vai começar pelo fim.

Perceba: só esse início (a primeira página do romance) já é suficiente para notarmos que esse defunto quer debochar de nós, leitores. E ele vai em frente: diz que havia poucas pessoas em seu enterro, mas um amigo fez um belo discurso à beira de sua cova. Depois, como se não percebesse o que diz, afirma: “Bom e fiel amigo! Não, não me arrependo das vinte apólices que lhe deixei”. Nós, leitores, rimos ao ler a frase, pois está claro que o amigo só fez o discurso (aliás, ridículo, vá ler!) porque havia recebido uma pequena herança. Sugerir o contrário do que de fato diz (ou seja, construir a ironia) é uma especialidade machadiana.

Ironia e linguagem

E nós continuamos a ler o tal romance; com um pouco de irritação com esse narrador estranho e arrogante, mas continuamos.

Adiante, Brás Cubas, contando sua juventude (era na verdade um playboy rico e desocupado), apaixona-se por uma prostituta de luxo, com quem gasta muito dinheiro (do pai, é claro). Este ficará furioso, mas Brás Cubas, fingindo certa ingenuidade, nos conta: “Marcela amou-me por quinze meses e onze contos de réis”. Esta curta frase é maravilhosa, pois, sem denegrir a moça diretamente, o protagonista nos afirma que o amor dela era profissional, interesseiro, por dinheiro. Marcela não o amava: o autor construiu outra ironia, sugerindo que entendêssemos o contrário do que disse.

E esse romance, tão famoso, vai por aí afora. É só diversão, embora, é claro, com um vocabulário do século XIX, o que nem sempre é simples para nós. Na verdade, o tal Brás Cubas se exibe até no uso do vocabulário, ele é pedante. Se prosseguirmos na leitura, conseguimos rir muito, pensando que os vários episódios vividos naquela sociedade (por ele e por todos), são os mesmos nos tempos de hoje. E muitas ações sociais e morais são as mesmas… O pai de Brás Cubas, por exemplo, era um exibicionista. Dava festas muito ricas para ‘fazer barulho’, para aparecer na sociedade. Quanta gente faz isso ainda hoje, não? Existem até revistas especializadas nessa exibição de ricos e famosos…

Acabamos percebendo que as pessoas são as mesmas, que o mundo da hipocrisia e farsa social não mudou. Esta sensação é parte do pessimismo machadiano de que tanto nos falam os livros Não gargalhamos, apenas rimos em silêncio, com o canto da boca, para nós mesmos. E este sinal é o famoso humor inglês de que falam os estudiosos: as piadas, as ironias são todas assim, inglesas; o defunto diz o que quer, fingindo não dizer.

Um dos momentos mais cruéis (sim, a ironia às vezes é cruel com os personagens) se chama “A flor da moita”. Sabe por quê? Quando pequeno, Brás havia presenciado um beijo às escondidas que um poeta casado dava numa dama solteirona atrás de uma moita da mansão de seus pais. Pois bem, anos depois, conheceu a filha bastarda dessa mesma senhora, a menina Eugênia. Era linda, educada, pura, mas coxa (manca). Eugênia ficou então sendo “a flor da moita” porque concebida no amor ilícito. Por isso teria defeitos. Perceba que Brás é grosseiro, vulgar e deseducado. Mas quem vai punir um defunto? Quem?

Quem inventou Brás Cubas?

Porém: Quem inventou Brás Cubas, que narra em primeira pessoa toda sua história? O verdadeiro autor da obra é Machado de Assis. Pensando melhor, vemos que esse Joaquim Maria Machado de Assis, fluminense, mulato, epilético, casado com Carolina, sem filhos, e muito famoso no Rio de Janeiro inventou um modo muito original de pôr na ” boca” de um defunto inventado coisas que ele, Machado, queria dizer. Quer dizer: o narrador Brás Cubas não é nem nunca será Machado. Mas Machado, usando seu personagem, ironiza a sociedade em que viviam os ricos no Rio de Janeiro.
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MÁRCIA LÍGIA DIAS DI ROBERTO GUIDIN nasceu em São Paulo, em 1950. Graduada em Música (piano) pelo Conservatório Dramático e Musical de São Paulo.  Cursou para Letras na FFLCH da USP, onde cursou a graduação em Letras Anglo-Germânicas. Licenciou-se pela Faculdade de Educação da USP.  Deu aulas em Ensino Médio regular, nas escolas do Estado, mas logo passou a lecionar em cursos de Madureza e Supletivo. No curso Santa Inês, trabalhou 8 anos como professora de língua portuguesa e literatura, e foi coordenadora de unidade. Em 1985, iniciou o mestrado em Literatura Brasileira na FFLCH da USP tendo produzido uma tese sobre as relações entre feminino e morte em obras de Clarice Lispector, com destaque para a última obra da escritora, A hora da estrela. Em 1990, inicia o doutorado na mesma faculdade, tendo então estudado a velhice na obra de Machado de Assis, numa tese chamada Armário de vidro, depois transformada em livro em 2000. Construiu sua carreira acadêmica como professora de Teoria Literária e Literatura Brasileira, na UNIP, onde se aposentou em 2006, como Professora Titular. Foi professora de graduação e pós-graduação da Universidade são Marcos e Docente Convidada do Departamento de Jornalismo e Editoração da ECA-USP, onde lecionou Edição de Texto e Literatura Brasileira (até 2002). Trabalhou também na Folha de S. Paulo (2000), onde foi professora Consultora da Redação. Exerceu simultaneamente a atividade de editora externa para algumas casas editorias paulistas, como Ática e Martins Fontes. Editou, traduziu e várias obras,  e coordena algumas coleções de obras paradidáticas no mercado editorial paulistano. Palestrante e editora  executiva da Miró Editorial, faz  coach para  escritores e integra a Comissão Organizadora do Prêmio Jabuti, da Câmara Brasileira do Livro, da qual faz parte sua empresa. Tem um programa da Radio USP-FM “Que tal seu português?”,  onde  comenta questões de língua  portuguesa e literatura brasileira. É crítica literária do Jornal Rascunho.

Fontes:
UOL Educação Especial para a Página 3 Pedagogia & Comunicação. Acesso em 28.12.2013.
http://educacao.uol.com.br/disciplinas/portugues/machado-de-assis-1-por-que-le-lo.htm
Imagem = http://www.naniesworld.,com

domingo, 10 de agosto de 2025

Asas da Poesia * 68 *


Trova de
ARI SANTOS CAMPOS
Balneário Camboriú/ SC

Hoje o sol nasceu tão lindo, 
tão lindo, e eu me confundo: 
- Será que Deus está rindo 
ou rindo está o nosso mundo?
= = = = = =

Soneto de
DOMINGOS FREIRE CARDOSO
Ilhavo/ Portugal

Em cada rosa o espinho que encontrei
Manuel Cardoso in "Antologia Poética, Tertúlia Hélice, 10." Aniversário", p. 53

Em cada rosa o espinho que encontrei
É renúncia a que a vida me obrigou
Pão da alma que às vezes me faltou
Trono vazio onde eu quis ser um rei.

Maldigo esse contrato que assinei
Em que a fortuna tanto me lesou
E não cumpriu comigo o que acordou
Em troca do futuro que eu lhe dei.

Deponho contra ela em tanta queixa
Que eu não entendo por que não me deixa
Entregue a mim, perdido no caminho.

Prefiro a viuvez da fresca fonte
Ou sozinho viver num alto monte
E a gemer, sempre ao vento, ser moinho.
= = = = = = = = =  

Trova de
JESSÉ FERNANDES DO NASCIMENTO
Angra dos Reis/ RJ

Bola no chão, pés descalços,
o futebol contagia;
menino pobre... percalços...
sonho de ser craque um dia.
= = = = = = 

Poema de
VANICE ZIMERMAN
Curitiba/PR

Doce magenta & textura

Entre as páginas do livro -
A poesia entreaberta
Recebe o bailar da Luz e sombra -
Diáfana por do sol...

Cores, recantos, da Holanda,
Das telas de Monet,
Saudades dos moinhos -
Ninhos de ventos
Pétalas dobradas...
Doce Magenta
Em silêncio, abraçando
As palavras, os versos,
E as anotações ao pé da página -
Inclinadas pétalas
De origem tão distante
Atemporais tintas -
Esmaecidas tulipas...
= = = = = = 

Trova de
EDMAR JAPIASSÚ MAIA
Miguel Couto/ RJ

Mesmo no aperto, o sobrado
do velho não foi vendido.
Pelo prédio estar tombado
é que o velho está "caído"!
= = = = = = 

Poema de
DANIEL MAURÍCIO
Curitiba/PR

De repente

De repente
Um quê de fada,
De anjo, de estrela,
Brilhou diferente entre os cachos de flores.
Borboletas...
Pequenas e ligeiras
Almas com asas,
Tingidas com pó de arco-íris
Rasgam o vento tão leve
Tal como o sono inocente.
Sonha em mim,
Coração em pétalas 
No suave pousar das borboletas.
Em silêncio falam aos meus olhos
De um mundo de paz, 
Amor e poesia.
= = = = = = = = = 

Trova de
MARIA LUÍZA WALENDOWSKI
Brusque/SC

Nunca mostres apatia
diante da luta na vida,
mas brinda com simpatia
e a inércia será vencida!
= = = = = = 

Poema de
OLAVO BILAC
Rio de Janeiro/RJ, 1865 – 1918

A avenida das lágrimas
(A um Poeta morto)

Quando a primeira vez a harmonia secreta
De uma lira acordou, gemendo, a terra inteira,
- Dentro do coração do primeiro poeta
Desabrochou a flor da lágrima primeira.

E o poeta sentiu os olhos rasos de água;
Subiu-lhe à boca, ansioso, o primeiro queixume:
Tinha nascido a flor da Paixão e da Mágoa,
Que possui, como a rosa, espinhos e perfume.

E na terra, por onde o sonhador passava,
Ia a roxa corola espalhando as sementes:
De modo que, a brilhar, pelo solo ficava
Uma vegetação de lágrimas ardentes.

Foi assim que se fez a Via Dolorosa,
A avenida ensombrada e triste da Saudade,
Onde se arrasta, à noite, a procissão chorosa
Dos órgãos do carinho e da felicidade.

Recalcando no peito os gritos e os soluços,
Tu conheceste bem essa longa avenida,
- Tu que, chorando em vão, te esfalfaste, de bruços,
Para, infeliz, galgar o Calvário da Vida.

Teu pé também deixou um sinal neste solo;
Também por este solo arrastaste o teu manto...
E, ó Musa, a harpa infeliz que sustinhas ao colo,
Passou para outras mãos, molhou-se de outro pranto.

Mas tua alma ficou, livre da desventura,
Docemente sonhando, às delícias da lua:
Entre as flores, agora, uma outra flor fulgura,
Guardando na corola uma lembrança tua...

O aroma dessa flor, que o teu martírio encerra,
Se imortalizará, pelas almas disperso:
- Porque purificou a torpeza da terra
Quem deixou sobre a terra uma lágrima e um verso.
= = = = = = 

Trova de 
ADEMAR MACEDO
Santana do Matos/ RN, 1951 – 2013, Natal/ RN

Fiz a “pergunta ao espelho” 
que para não me ofender: 
disfarçou, ficou vermelho 
e não quis me responder!
= = = = = = 

Poema de 
JOSÉ FARIA NUNES
Caçu/GO

O sonho de um povo

Um dia um povo sonhou com a liberdade
e esse povo acreditou no sonho e lutou por ele.
Houve até quem por ele morresse.
O sonho deste povo foi objeto do sonho
de tantos outros.
Mas o sonho deste povo foi um sonho
diferente dos outros sonhos.
Enquanto o sonho de além-mar
era um sonho de ambição e dominação
o sonho deste povo era de libertação.
O sonho deste povo era sonho de amor à terra;
terra já irrigada pelo suor
até de sangue de filhos deste povo.
O sonho deste povo foi um sonho de amor
e no ato de amar até parceiros de além-mar
a este sonho vieram se somar.
E no somar dos sonhos eis que ecoou o grito
de independência deste povo. E aquele grito
do sonho deste povo ainda ecoa no ar.
Ecoa aos ouvidos de geração a geração
que ainda insiste em sonhar.
= = = = = = 

Trova de
IZO GOLDMAN
Porto Alegre/RS, 1932 – 2013, São Paulo/SP

Lá na casa da Maria
é muito estranha a porteira ...
Não faz barulho de dia, 
bate e range a noite inteira …
= = = = = = 

Poema de
IALMAR PIO SCHNEIDER
Porto Alegre/RS

Quando Murchar a Primavera 

Quando murcharem as flores dos caminhos
e o peito calar-me indiferente
como a serena mudez dos passarinhos
em noite senil e permanente…

Órfão de afetos, insaciado de carinhos
caminharei tristonho de dolente,
buscando outras sensações em novos ninhos
como a cura ao meu amor fervente.

E nada há de curar a viva chaga
que deixaste a sangrar em meu desejo
ao provar a doçura do teu beijo

naquela tardinha rubra e vaga
e onde estiveres chorarás baixinho
a mágoa de deixar-me tão sozinho.
= = = = = = 

Trova de
CAROLINA RAMOS 
Santos/ SP

Ser livre é também saber
que a liberdade alcançada
faz parte do próprio ser
e não se troca por nada!
= = = = = = 

Hino de
SOBRADINHO/BA

Dos reclames do progresso,
à fundação da usina
quanto sonho convergia!
No cráton do São Francisco
Fez-se, pras águas, um aprisco:
Sobradinho assim nascia!

Sobre o espelho do lago
o gavião, a planar,
é testemunha ocular
da base de tua história;
tal qual as tuas xerófilas
enfrentando as intempéries,
os teus homens e mulheres
celebram cada vitória!

Pode vir sem cerimônia,
porque Sobradinho está
com seus braços sempre abertos
a quem vem lhe visitar!

Na depressão sertaneja,
onde te ergues, altaneira,
és amostra do milagre
da pura fé brasileira;
no cenário nordestino
vais cumprindo teu destino
de cidade alvissareira!

Despontando para o mundo
se espargindo em poesia,
és orgulho da Bahia.
Sobradinho, doce lar,
até mesmo o "Velho Chico"
modificando seu traço,
descansa no teu regaço,
antes de seguir pro mar!

Quem parte de Sobradinho
mesmo que pela vontade,
não demora, está voltando,
ferido pela saudade!

Entre tuas cordilheiras
recheados de cristais
surgem inscrições rupestres
com indivisíveis sinais;
no teu solo as avoantes
as musas itinerantes
vêm construir seus pombais!

Pelas asas dos alísios
teus mistérios, tuas lendas,
ficaram para as calendas,
como moquim nem sonhava...
Ó Juacema! O Opará
refugou ante barreira,
refreando a corredeira
onde você se banhava!
Do refluxo de teus filhos,
Sobradinho, vem teus brios
pelas águas generosas
desse caudaloso rio!...
= = = = = = = = =  

Trova de
LUCÍLIA A. T. DECARLI
Bandeirantes/PR

Envolto em véus do passado,
junto à solidão, que avança,
o amor é descortinado
nas janelas da lembrança
= = = = = = = = =  

Poema de 
RAIMUNDO NONATO DA SILVA
Sousa/PB

Os Passarinhos

Quem engaiola um canário
Um Graúna ou um vem-vem
Dê liberdade pro pássaro
Olhe escute e veja bem
Não faça do pássaro um réu
Ele não ofende ninguém

Eu tenho pena demais
Quando vejo um passarinho
No viveiro ou na gaiola
Sem liberdade e sozinho
Deus lhe fez para voar
Pra cantar e ter um ninho

A lua clareia a noite
De dia o sal é aceso
Mas quem prende um passarinho
Na consciência tem peso
Quem Deus fez para ser livre
Não era para estar preso

O passarinho parece
Um cantador de viola
O pássaro enfeita a floresta
Com a sua cantarola
Deus não gosta de quem prende
O pássaro numa gaiola

Se lembre que a floresta
Tem o ar mais belo e puro
Quem polui a natureza
Espere que no futuro
Deus vai cobrar sua conta
Com correção e com juro

Se a mata fosse minha
O rio, o lago e a fonte.
Talvez existisse hoje
Verde colorindo o monte
E todo mundo sonhava
Com um bonito horizonte

Se a mata fosse minha
Eu zelava até de mais
Mandava varrer a cama
Onde dorme os animais
Porque os brutos precisam
Dormir na cama da paz.

Se a mata fosse minha
Eu mandava alguém cercar
Com uma grande muralha
E mandava eletrificar
As paredes pra dar choque
Em quem quer lhe devastar

Não mate um sabiá
E nem outro passarinho
O cantador da floresta
Só quer amor e carinho
Não faz o mal pra ninguém
Mas alguém destrói seu ninho

Se a mata fosse minha
Lá tinha alegria e festa
Os animais tinham paz
Pássaro fazia seresta
E o homem sem coração
Não devastava a floresta

Se a mata fosse minha
E se eu mandasse nela
Se alguém pegasse um machado
Pra cortar uma árvore bela
Eu cortava os pés de quem
Quer cortar a raiz dela

Se a mata fosse minha
Não seria devastada
Ninguém destruía as árvores
Não existia queimada
Como a mata não é minha
Eu não posso fazer nada
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Trova de
RITA MOURÃO
Ribeirão Preto/ SP

Na minha fé hoje intensa 
repasso o tempo que avança. 
Foi recompondo essa crença 
que ainda tenho esperança.
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José Feldman (O Tempo e o Agora)

 
O relógio marca a hora,
cada instante é um agora...
A vida não demora.


O relógio marca a hora, e, com cada tique-taque, somos lembrados de que a vida é feita de instantes. Em um mundo que parece acelerar a cada dia, é fácil nos perdermos na correria. Corremos para o trabalho, para compromissos, para a rotina que nos consome. Mas a poesia nos lembra: cada instante é um agora.

Quantas vezes deixamos de apreciar o que está diante de nós? O cheiro do café fresco pela manhã, o sorriso de um amigo, a luz do sol filtrando pelas folhas. Esses momentos, muitas vezes simples, são os que realmente compõem a tapeçaria da nossa existência. A vida não demora, mas é feita de sutilezas que muitas vezes passam despercebidas.

A verdade é que o tempo é um mestre implacável. Ele não espera. O que temos é este agora, e é nele que devemos encontrar significado. A vida não se mede apenas em grandes eventos, mas nas pequenas alegrias do dia a dia. Cada risada, cada conversa, cada instante vivido intensamente é um lembrete de que estamos aqui, presentes.

Vale a pena parar e refletir. O que estamos fazendo com nosso agora? Estamos realmente vivendo ou apenas existindo? O relógio continua a marcar as horas, e a vida não espera. Por isso, vamos aprender a valorizar cada momento, a respirar fundo e a sentir a beleza do presente.

No final, o que levará a nossa história não serão apenas os grandes feitos, mas as memórias construídas em cada agora. E assim, ao invés de correr, que possamos caminhar, apreciar, amar. A vida é breve, e o tempo, esse sempre fiel companheiro, nos mostra que o agora é tudo o que realmente temos.
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JOSÉ FELDMAN, poeta, trovador, escritor e gestor cultural. Formado em patologia clínica trabalhou por mais de uma década no Hospital das Clínicas. Foi enxadrista, professor, diretor, juiz e organizador de torneios de xadrez a nível nacional durante 24 anos; como diretor cultural organizou apresentações musicais. Morou na capital de São Paulo, em Taboão da Serra/SP, em Curitiba/PR, Ubiratã/PR, Maringá/PR. Consultor educacional junto a alunos e professores do Paraná e São Paulo. Pertence a diversas academias de letras, como Academia Rotary de Letras, Academia Internacional da União Cultural, Confraria Luso-Brasileira de Trovadores, Academia de Letras de Teófilo Otoni, etc, possui os blogs Singrando Horizontes desde 2007, e Pérgola de Textos, um blog com textos de sua autoria, Voo da Gralha Azul (com trovas do mundo). Assina seus escritos por Floresta/PR. Dezenas de premiações em poesias e trovas no Brasil e exterior.
Publicações de sua autoria “Labirintos da vida” (crônicas e contos); “Peripécias de um Jornalista de Fofocas & outros contos” (humor); “35 trovadores em Preto & Branco” (análises); e “Canteiro de trovas”.. No prelo: “Pérgola de textos” (crônicas e contos) e “Asas da poesia”

Fontes:
José Feldman. Labirintos da vida. Maringá/PR: Plat. Poe. Biblioteca Voo da Gralha Azul.
Imagem criada com Microsoft Bing  

Teresa Lopes (Doutora Saladina – Bruxa para todos os males)

 (Para a Margarida e para a Pilar, sem outro sentir que não o do bem-me-quer)

Toda a gente sabe, ou se não sabe devia saber, que os reinos das bruxas e das fadas existem bem perto de nós. Só quem tem coração de pedra é que os não vê.

Ora num desses reinos havia uma bruxinha que, desde muito pequena, se habituara a brincar ao esconde-esconde com uma pequena fada do reino vizinho.

Isto acontecia porque, claro está, nenhuma das famílias tinha conhecimento de tal fato insólito.

Encontravam-se as duas nos limites dos respectivos reinos, escondidas entre os carvalhos e os abetos que serviam de fronteira. Era um regalo vê-las juntas, como se este mundo fosse um só: a fada sempre vestida de cor-de-rosa, asas de tule a esvoaçar ao vento e uma varinha de condão que era a prova incontestável de que ela era realmente uma fada.

A bruxinha, essa vestia sempre de negro, uma túnica que quase lhe chegava aos pés e um chapéu de alto bico que, dada a sua tenra idade, lhe tombava para o lado, sem, porém, nunca lhe ter caído.

Cavalgava, não uma vassoura de piaçaba, mas um modelo mais recente, semi-a-jato, que seus pais lhe haviam dado pelo seu último aniversário.

Saladina, a bruxa, e Gilda, a fada, voavam por entre as árvores sem lhes tocar, faziam piruetas de sobe-e-desce, e passavam tangentes às corujas e às andorinhas sem nunca, mas nunca, terem tido o menor acidente.

Quando, porém, chegou o dia de frequentarem as respectivas escolas, cada uma seguiu o seu caminho e o tempo para as brincadeiras acabou-se para tristeza de ambas. E nunca mais Saladina viu Gilda. E nunca mais Gilda viu Saladina.

Os anos foram passando, no calendário das bruxas e das fadas, que por acaso é o mesmo, até que um dia Saladina completou o décimo segundo ano e teve de escolher uma profissão: queria ser doutora, mas doutora-médica.

Os pais pasmaram com tamanha pretensão.

– Que bruxa és tu, minha filha! - dizia o pai.

– Querer ser médica? - interrogava-se a mãe.

– Mas, afinal, tu és uma bruxa ou uma fada? - questionavam ambos.

Saladina estremeceu. Será que alguém tinha descoberto o seu segredo de há tantos anos? Que seria feito de Gilda? Não, não era possível. Além de tudo isso ela tinha a certeza que era uma bruxa de pele e osso e ninguém conseguiria demovê-la de seus intentos.

E assim foi. Entre o choro da mãe e o olhar reprovador do pai, lá seguiu para a Grande Escola de Medicina que ficava no reino dos humanos, pois no país das bruxas só havia a Escola Superior de Feitiços e de Magia.

Para trás ficou a túnica negra, o chapéu alto e a vassoura semi-a-jato. Ficou também a mágoa não só da família, mas de toda a comunidade, que estas notícias espalham-se depressa e ferem a honra. Sim, que as bruxas também têm honra!

Depressa acabou Saladina o seu curso. Aluna brilhante, nunca reprovou nenhum ano e quando se viu com o diploma na mão, não cabia em si de felicidade. Só havia um problema: que fazer agora? Como iriam seus pais recebê-la?

Quando bateu de mansinho à porta de sua casa, o nº 13 da Rua da Assombração, o seu coração de bruxa, pela primeira vez, fraquejou. E, apesar de a terem deixado entrar, logo sentiu que a sua atitude não fora perdoada.

– És a vergonha das bruxas! - disse-lhe o pai. - Mas és feitiço do meu feitiço. Podes ficar nesta casa, embora sejas pouco digna das teias de aranha que te cobrem a cama.

Foi neste ambiente que Saladina se aventurou a abrir o seu consultório. Tudo a rigor, como aprendera com os humanos. À entrada, um letreiro que dizia:

DRª SALADINA
Médica Para Todos Os Males

Pouca sorte tinha esta nossa amiguinha. Ninguém lhe batia à porta, nem ninguém lhe marcava uma consulta que fosse. Nem uma assistente conseguira arranjar.

Resolveu, então, na esperança de aparecer alguma emergência, mudar-se de vez para o seu consultório. Ali dormia, ali comia e ali ia espreitando pelas cortinas esfarrapadas da janela, na ânsia de que alguém necessitasse da sua prestimosa sabedoria.

Ora, uma bela noite de lua nova, estando Saladina a contemplar as constelações, percebeu grande alvoroço no céu. Luzes para aqui, luzes para acolá e um pó dourado que se espalhava por todo o lado. De repente começa a ouvir gritinhos de todas as bruxas e bruxos que deambulavam pela rua e que tombavam no chão como cerejas maduras.

Saladina não pensou duas vezes: toca a recolher os doentes no seu consultório. Os que ainda se conseguiam manter de pé, entravam a correr, tamanha era a sua aflição. Queriam lá saber se ela era a Drª Saladina! Só queriam cura para doença tão súbita e estranha.

Saladina teve necessidade de se concentrar. Sim, porque havia já algum tempo que não praticava. Curou as feridas que viu, ligou os entorses como muito bem aprendera e esperou que os doentes acordassem. Nada. Não acontecia nada. Então Saladina, sem perceber como, ergueu os braços e começou a praguejar:

Afasta-te pó de fada,
Renego teu perfume já.
Xô, xô, penugem de tule,
Abracadabra, já está!

Como por magia, todos acordaram. Quando perceberam quem os tinha salvo, nem queriam acreditar. Amedrontados, lá foram agradecendo à doutora-médica. E envergonhados, saíam fazendo vênias, sem ousar voltar as costas!

Nos jornais do dia seguinte, a nossa amiga era figura de destaque. Que tinha sido corajosa enfrentando aquela epidemia misteriosa. Que até os bruxos mágicos haviam recorrido aos seus serviços.

E nos televisores a notícia repetia-se constantemente, em emissões de última hora.

Quem não entendia muito bem este fenómeno era a própria Saladina, que ainda hoje está para saber como lhe foram sair tais palavras da boca.

O que ela também não sabe é que, naquele dia, os Serviços Secretos do Reino das Bruxas tinham registado uma invasão do seu espaço aéreo por um pelotão de fadas, comandado por Gilda, mais conhecida no meio da espionagem por Agente Secreto Zero-Zero-Pó-Dourado.

Claro está que este fato não veio nos jornais e permaneceu fechado a setenta chaves no cofre dos segredos da bruxa reinante.

Quando passarem por aquela rua além, aquela logo ali acima, se estiverem atentos, poderão ver a fila de clientes que Saladina tem à porta do consultório.

E talvez, com um pouco de sorte, consigam vislumbrar um vulto cor-de-rosa que esvoaça levemente sobre o edifício para não ser detectado pelos radares do reino.

Quem poderá ser?

Pois se virem tudo isto, não se assustem. É que, bem perto de nós, há o Reino das Bruxas e o Reino das Fadas. E só não os vê quem não quer, ou quem tem coração de pedra.
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MARIA TERESA LOPES nasceu em Arcos de Valdevez/Portugal, em 1957. Professora de Português e Inglês do Ensino Básico. Colabora em ações de divulgação do livro e da leitura. Publicou um livro de poesia, (En)cantos de Ceifa e Mosto, um de contos para a infância, Histórias que acabam aqui, e tem trabalhos incluídos em outras publicações.

Fontes:
LOPES, Maria Teresa. Histórias Que Acabam Aqui. Edições ArcosOnline.com (www.arcosonline.com), abril de 2005. Disponível em Domínio Público.  
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Livia Garcia-Roza (O Cachorro)

Eu estava conversando com minha filha que dizia que tinha ganhado um cachorro e estava muito feliz porque havia E muito tempo ela nos pedia um cachorro, a mim e ao pai, mas nós achávamos melhor ela ter um cachorro quando estivesse com mais idade e pudesse cuidar dele. Ela dizia que ia cuidar do seu cachorro, dar banho, ração, catar as pulgas, e levá-lo pra passear. Nunca mais ia ficar longe dele. Todas as suas amigas, suas primas, e até as professoras do colégio tinham cachorro, menos ela. Na mão dela havia uma espécie de coleira feita com um cinto; o cachorro amarrado ao cinto era o seu velho ursinho de pelúcia. Então ela me perguntou se eu tinha visto seu cachorro. Eu disse que sim.

– Qual é a cor dele?

– Amarelo, eu disse.

– Não, não é amarelo, ele é preto! – E disse que eu não estava vendo direito o cachorro dela.

– Estou sim, eu disse.

Aí ela me perguntou se ele era bonito.

– Claro que é! Uma beleza! – Achei que ela ficaria feliz com a resposta.

– Não, não é, ele é feio, muito feio, mas eu gosto dele assim mesmo, respondeu. – E repetiu que eu não estava vendo o cachorro e que ele estava ficando muito triste, e ela achava que ele ia começar a chorar.

– Estou, estou vendo sim, não se preocupe, disse eu.

– Então como ele é, grande ou pequeno?

– Ah, ele é grande.

– Não é, ele é muito pequeninho, não sabe andar, acho que vou ter que levá-lo no colo.

– Mais uma pergunta, mamãe, disse ela: Ele tem rabo ou cortaram o rabo dele?

– Espera, deixa eu olhar bem. Acho que cortaram o rabo dele, disse.

– Não, nada disso! Ele tem rabo, olha.

– Está bem, filha, acho que você tem razão, a mamãe está precisando de óculos.

Então ela falou: Vamos, Bobo, vamos passear e pegou o cachorro do chão abraçando-o no colo. 

– Ela não é mais sua avó, disse no ouvido dele. Referia-se a mim.

Nesse momento, o pai chegou. Disse para ele que tínhamos novidade. Então contei que nossa filha tinha ganhado um cachorro de presente e estava muito feliz. Antes que ela fizesse todas as perguntas e ele errasse as respostas, perguntei se ele estava vendo o cachorro.

– Que cachorro? Disse ele.

– O cachorro que está no colo de nossa filha, meu bem.

– Que filha? Disse ele me olhando fixo.
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Livia Garcia-Roza (Lívia Brazil de Mello) nasceu no Rio de Janeiro, em 1940. Escritora e psicanalista brasileira pós graduada em psicologia clínica pela Universidade Federal do Rio de Janeiro. Casada em segundas núpcias com o escritor Luiz Alfredo Garcia-Roza. Livia estreou na literatura em 1995, e possui seus livros influentes até hoje. Os livros Cine Odeon, e Solo Feminino foram indicados ao Prêmio Jabuti de Literatura. Seus livros possuem o selo de Altamente Recomendável concedido pela Fundação Nacional para o Livro Infantil e Juvenil (FNLIJ). Alguns livros: “Quarto de Menina” (1995), “Meus queridos estranhos” (1997), “Cartão Postal” (1999), “Cine Odeon” (2001), “Solo feminino: amor e desacerto” (2002), “A palavra que veio do sul” (2004), “O sonho de Matilde” (2010).
Fontes:
Suplemento Literário de Minas Gerais -Setembro-Outubro/2010 numero 1.332.
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Contos e Lendas de Portugal (Algarve) As três nuvens

Era uma vez um lavrador muito rico e tinha três filhos: dois, os mais velhos, eram muito estimados pelos seus pais e andavam ricamente vestidos; o mais novo era desprezado. 
 
Tinha o lavrador uma rica propriedade, onde provocava um medo. 

Caseiro que lá se deixava dormir numa noite era encontrado morto no dia seguinte. Vendo o pai que a propriedade estava muito estragada, porque os vizinhos metiam nela os seus gados, resolveu mandar o filho mais novo guardá-la. Aceitou o mancebo a incumbência, pois era muito bom e obediente, mas pediu ao pai que mandasse no dia seguinte buscar o seu cadáver para não permanecer por muito tempo insepulto. 

Despediu-se do pai e dos irmãos e foi para o seu desterro, levando consigo uma cítara, seu instrumento favorito. 

O prédio onde o caseiro costumava dormir ficava no centro da propriedade. O rapaz chegou ali e tirou do prédio uma cama que colocou sobre um parque, de bonita vista, através do prédio. Logo que escureceu foi deitar-se, entretendo-se muito tempo a tocar o seu instrumento. Alta noite adormeceu. Tinha pegado no sono, sentiu-se afogado sob um grande peso; sentou-se na cama, pegou na cítara e disse em voz alta: 

 – Que peso é o que sinto? Olhem que parto a cabeça seja a quem  for. 

 E pôs-se a fazer um grande sarilho com a cítara, como se fora um alfange. 

 Então ouviu o mancebo uma voz: 

– Não me mates, dizia a voz, porque te faço bem. Eu sou a nuvem negra, e, quando tiveres necessidade de alguma coisa, chama por mim. 

No dia seguinte ergueu-se ele da cama e dirigiu-se para casa, onde era esperado por quatro homens com uma tumba para o levar ao cemitério. 

– Podem retirar-se: ainda não foi desta vez, disse o mancebo. 

 Na noite seguinte repetiu-se a mesma cena com a diferença da resposta: 

– Não me mates: eu sou a nuvem parda e, quando queiras alguma coisa, chama por mim. 

 Na terceira noite, e depois da mesma cena das noites antecedentes, ouviu: 

– Não me mates: sou a nuvem branca. Sempre que te seja preciso, chama por mim. Eu e as minhas irmãs estávamos aqui encantadas, foste tu que nos desencantaste com os maviosos sons do teu instrumento. 

E a nuvem branca desapareceu como tinham desaparecido as outras. 

Conservou-se o mancebo por algum tempo na propriedade, sendo raríssimas vezes visitado pelo pai e isso no mero intuito de examinar como o filho a administrava. 

Um dia teve saudades da família e foi visitá-la. Logo que entrou na casa paterna viu muitos alfaiates ocupados em talhar e fazer riquíssimos fatos de homem; soube então que o rei mandara anunciar que casaria com a princesa o cavalheiro que se saísse vitorioso de três torneios seguidos. 

 Entretida a família nos arranjos dos dois irmãos, que aspiravam à mão da princesa, nenhum caso fizeram do irmão mais novo. Este demorou-se pouco tempo na casa dos seus e retirou-se para a propriedade. 

Nessa noite pensou que ele poderia entrar nos torneios, e quando foram marcados os dias para as lutas já tinha formada a intenção de lá se apresentar. 

Na manhã do dia do primeiro torneio disse o mancebo: – Valha-me a nuvem preta. 

Apareceu logo uma nuvem e dela saiu uma jovem. – O que me queres? perguntou. 

– Entrar no torneio e sair vencedor. 

A jovem ergueu uma pequena vara, proferiu algumas palavras, e apareceu um cavalo negro, trazendo pequena mala, onde vinham riquíssimas vestes e armas de cavaleiro da mesma cor do cavalo. 

O mancebo vestiu-se, empunhou as armas, montou no cavalo e entrou no torneio, saindo vencedor. Logo que saiu da cidade desapareceram o cavalo, as vestes e as armas. 

No dia seguinte disse: 

– Valha-me a nuvem parda. 

Apareceu outra nuvem, de onde saiu uma jovem que perguntou ao mancebo o que queria. 

 – Entrar no torneio e sair vencedor. 

E sucedeu como no dia antecedente. Quando ele entrou na praça percebeu que a princesa o atendia com especial agrado. Ainda outra vez saiu vencedor, retirando-se logo para fora da cidade e desaparecendo o cavalo, as vestes e as armas. 

No terceiro dia invocou a nuvem branca e entrou no torneio montado em cavalo branco e com armas brancas bordadas a ouro. Saiu-se vencedor, e então viu-se cercado das pessoas da corte que o convidaram a ir à presença do rei. O mancebo foi. 

Na presença do rei e da princesa, tirou a viseira. E o rei e a princesa agradaram-se do jovem e logo foi ali resolvido o seu casamento. 

Os dois irmãos do mancebo conservavam-se a certa distância e, quando viram que estava resolvido o casamento com o seu irmão, tiveram grande desespero. Um deles lançou-se da janela à rua, morrendo despedaçado, o outro atravessou-se no próprio alfange. 

Houve grandes festas no palácio e em todo o reino por ocasião daquele casamento. 

Fontes:
Xavier Ataíde de Oliveira. Contos tradicionais do Algarve. edição Vega. 
Disponível no Estudio Raposa.
http://www.truca.pt/raposa_textos/historia_84_tres_nuvens.html
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