domingo, 19 de outubro de 2025

Asas da Poesia * 114 *


 Poema de
ANTERO JERÓNIMO
Lisboa/Portugal

Permitamos
que neste voo breve
os nossos sonhos e anseios
possam colorir a paisagem pura
com que abraçamos cada novo dia!
= = = = = = = = =  

Poema de
DANIEL MAURÍCIO
Curitiba/PR

A lata
não late
nem o chocolate
mas o vira-lata,
como late!
= = = = = = 

Poema de
LUIZ POETA
(Luiz Gilberto de Barros)
Rio de Janeiro/RJ

Bailarininha

Ela ajeita as sapatilhas pequeninas...
Tão menina, já se enfeita de poesia
Diferente das adultas bailarinas,
Seu bailado é só pura fantasia.

Ela ajeita o tchutchu... tão bonitinha,
Que gracinha é o coque que ela tem
Pinta o rosto, a maquiagem é levinha
Como voo de cada sonho que lhe vem.

Quando, um dia, os padedês forem sem par,
A mulher que há nos seus olhos de menina,
Vai sorrir e o seu amor há de dançar
Nos tablados de uma outra bailarina.

Quem um dia registrou cada momento
Que enfeita a emoção de um camarim,
Há de olhar com alegria e sentimento
Os momentos dessa bela atriz mirim.

O balé há de ficar num tempo ausente,
Mas os sonhos do anjinho que o dançou,
Vão bailar num novo palco do presente
E embalar-se num passado que ficou

Ela, então, há de sonhar com outras danças
E a criança que ela é, há de ficar
No silêncio mais sublime das crianças
Que divertem-se brincando de sonhar.
= = = = = = 

Poema de
VANICE ZIMERMAN
Curitiba/PR

Brisa em tons de lavanda
 
O aroma de lavanda
Balança na varanda
Os sinos de vento -
Ah... Fugaz tempo...
Entre as reticências
= = = = = = 

Trova Popular

Aqui tens a minha mão
ajunta palma com palma  
domina o meu coração,    
toma posse de minha alma.
= = = = = = 

Soneto de
RAUL DE LEONI
Petrópolis/RJ, 1895-1926

Felicidade

Sombra do nosso Sonho ousado e vão!
De infinitas imagens irradias
E, na dança da tua projeção,
Quanto mais cresces, mais te distancias...

A Alma te vê à luz da posição
Em que fica entre as coisas e entre os dias:
És sombra e, refletindo-te, varias,
Como todas as sombras, pelo chão...

O Homem não te atingiu na vida instável
Porque te embaraçou na filigrana
De um ideal metafísico e divino;

E te busca na selva impraticável,
Ó Bela Adormecida da alma humana!
Trevo de quatro folhas do Destino!…
= = = = = = 

Soneto de
AUTA DE SOUZA
Macaíba/RN, 1876 – 1901, Natal/RN
 
Num Leque

Na gaze loura deste leque adeja
Não sei que aroma místico e encantado...
Doce morena! Abençoado seja
O doce aroma de teu leque amado

Quando o entreabres, a sorrir, na Igreja,
O templo inteiro fica embalsamado...
Até minh'alma carinhosa o beija,
Como a toalha de um altar sagrado.

E enquanto o aroma inebriante voa,
Unido aos hinos que, no coro, entoa
A voz de um órgão soluçando dores,

Só me parece que o choroso canto
Sobe da gaze de teu leque santo,
Cheio de luz e de perfume e flores!
= = = = = = 

Soneto de 
AMILTON MACIEL MONTEIRO
São José dos Campos/SP

Se...

Se eu posso ser a chuva que umedece
O ressequido ânimo de um irmão,
Que, sem saber chorar, então padece
Com a sede de seu próprio coração...

Se eu posso ser a ponte que oferece
Uma oportunidade de, antemão,
Fazer que alguém perdido, logo acesse
O lado firme e bom da salvação...

Se de algum modo, enfim, posso ser útil,
Mas fico empedernido em vida fútil,
Tal qual um fruto torpe do hedonismo...

E se jamais eu rumo para o norte
Da virtude e não largo o meu cinismo...
O que minh´alma aguarda após a morte?
= = = = = = 

Poema de
PAULO LEMINSKI
Curitiba/PR, 1944 – 1989

a uma carta pluma
só se responde
com alguma resposta nenhuma
algo assim como se a onda
não acabasse em espuma
assim algo como se amar
fosse mais do que a bruma

uma coisa assim complexa
como se um dia de chuva
fosse uma sombrinha aberta
como se, aí, como se,
de quantos se
se faz essa história
que se chama eu e você
= = = = = = 

Trova Funerária Cigana

Meu filho, nada te fiz...
Por me faltar a ventura,
foste pedir agasalho
na terra da sepultura.
= = = = = = 

Poemeto de 
SOLANGE COLOMBARA
São Paulo / SP

Nas folhas do tempo
ouço o som do vento.
Às vezes lamento,
outras, só fragmento.

As folhas farfalham,
no vento gargalham.
Pedaços se espalham
no tempo, embaralham.

As folhas se agitam
no tempo, levitam
os restos, hesitam.
Os ventos, excitam.
= = = = = = 

Poema de 
VITOR OLIVEIRA JORGE
Porto/Portugal

Superfície 

Às vezes o mar enruga-se como uma cortina horizontal.
Até ao infinito.
Como um cântico dos defuntos
Que sob ele jazem, e que voltam com as suas rugas
À superfície, clamando redenção.

 Mas como os defuntos estão reduzidos a fragmentos,
Só se veem à superfície pequenos pedaços do que foi
O passado de cada pessoa, a história de cada biografia.
São ecos longínquos, que vêm de outro universo,
E entre os quais vamos avançando numa praia baixa,
Afastando cortinas, descortinando sussurros,
Vendo por vezes rostos mortos mais belos
Do que quando eram em vida.

 Passeamos por este mar em pregas.
Como se atravessássemos a saia do mundo
Em busca do que sempre a saia esconde, e mostra,
O seu umbigo cheio de algas, o seu odor.

 E nestas experiências empíricas nos perdemos,
Caminhando, caminhando, enquanto os defuntos cantam,
E o mar ondula como uma cortina, como uma toalha
Nunca lisa, enrugada sobre o passado, num sentimento
De que nada está jamais pronto, reencontrado, completo,
E apenas nos ficam imagens e sons, o coração trespassado
Por cruzes, as mãos incapazes de alisar tudo.
= = = = = = 

Soneto do
Príncipe dos Poetas Piracicabanos
LINO VITTI
Piracicaba/SP, 1920 – 2016

Flor sem nome

É uma flor, nada mais que uma flor que se abre
da carícia solar à glória luminosa.
Rubra, sangrando em luz, balançando radiosa
- coraçãozinho triste espetado num sabre.

À noite, na penumbra, em susto se entreabre
para do orvalho ter lágrima silenciosa.
E quando o dia vem, vestido de zinabre,
entrega-lhe, a sorrir, a essência vaporosa.

Flor humilde do campo, orfãzinha ajoelhada,
de mãos postas em prece , à beira dos caminhos,
vestidinho vermelho a esmolar, a esmolar...

Ela pede somente, escondida e enjeitada,
o afago de quem passa, um pouco de carinho,
o beijo imaculado e longo do luar.
= = = = = = 

Poetrix de
ROQUE ALOISIO WESCHENFELDER
Santa Rosa/RS

Tremômetro

Treme de medo a alma,
De saudade, o coração.
O tremômetro mede a calma.
= = = = = = 

Poema de
DINAIR LEITE
Paranavaí/PR

Espectro

Uivo tristonho do vento
mexe a Saia de névoas em ondas
virgínio claror e sombras
sonho chorado em lamento.

Farfalho suave na noite
enfeite a vigília e temor
aos destemidos amantes, candor.
Vento em carícia e açoite.

Namorado ardente, à amada
desvela desejos, amores
madrugada em primeiros alvores
vidra sítio, amantes, estrada.

O vento sibila ternura
unido ao amor de paixão.
Balouço de Rendas, ventura.

Enlevo aos três seres, fusão
eflúvios dos beijos roubados.
Névoa nutrida. Cumprida a missão.

Manhã surge, em brilhos prateados
que cobrem o lago e, no seio, acomoda
o perfume dos enamorados.

A superfície de prata se borda
abre fenda à Saia de renda
desvela o noivo que acorda
na espera de amor e lenda
visão das névoas que roda
as rendas dançantes - faz-se moda 
alimento que desce à senda.

No fundo, o noivo no aguardo
da paixão em murmúrio soprado
no sonho invivido, sustado.
Amor proibido...petardo
outrora bordado na vida...

Estilhaços nas águas do lago
lavando as mágoas e o mago
sonhado. A vida explodida.

Tormento refreado, aziago
banhado nas águas sutis
arredondado em conta, bago.

Margaridas perfumadas de anis
acolhidas, do lago, a partir
o licor, ficar gris.

Flores jovens em voo radical
mergulham na água o porvir
abraçadas escolheram dormir
repousar o fardo em tumbal.

No lago caíram a espargir
o amor proibido em ritual
jamais encontradas a emergir.

Nem procuradas afinal
puderam o fardo abrir
escorjar, no amor sepulcral.
Morada recebe o delírio 
e transcende o amor sonial*.
= = = = = = 
* sonial = onírico.
= = = = = = 

Poema de
ESTRELA RUIZ LEMINSKI
Curitiba/PR

“Fazer o quê”

Fazer o quê se sou assim
Se em cada coisa que eu toco
fica o jasmim

Fazer o quê se estou aqui
metade em você
metade em mim

Você está em tudo o que eu gosto
O que quer quando me olho?
Se em tudo que eu pulso
você vibra
Se em tudo que é certo
está teu projeto

com 3 letras teu nome
Meu sobrenome incompleto
Agora não quero
menos que tudo
E um pouco mais
não acerto
= = = = = = 

Hino de 
Juazeiro do Norte/CE

Ressurgida da fé e da bonança
Cidade varonil querida e forte!
Grande povo, tradição e esperança
Salve! Excelsa Juazeiro do Norte
Tempos idos dominava o "tabuleiro"
Onde um grande "Joaseiro" se ensombrava
Ao lado da Capelinha onde o Romeiro
De joelhos, bem contrito ali orava.

Salve! Hoje ó Cidade do Progresso
Aquela que mais cresce no Ceará
Juazeiro! Tu és parte do Universo
Teu sucesso na História ficará.

Um apóstolo do bem e da verdade
Veio dar sua vida em oblação!
No Nordeste construiu uma cidade
O imortal Padre Cícero Romão!
Pela paz, pelo Cristo e pela fé,
Juazeiro cresceu e se fez forte
De bravura e independência pois de pé,
De trabalho e tradição encheu o Norte.
= = = = = = 

Poema de 
CRIS ANVAGO
Lisboa/ Portugal

Tudo é importante?
Não!

Só é importante o que eu quero que seja!
Os teus lábios cor de cereja
O teu sorriso que abraça o meu
O teu corpo mel
E, o meu corpo, extensão do teu…

O teu olhar que me encanta
No rio ou no mar sempre me espanta
A maneira do sorriso do teu olhar

Quando me canso do dia
volto para ti,
tudo é harmonia.
Foram minutos que perdi
que são preciosos todos os dias

Nas madrugadas despertas
Nas horas tão incertas
O sol sempre nasce
mesmo que não apareça

Tu sentes o calor do abraço
Não existe espaço entre nós
O coração bate no mesmo compasso
No mundo que é só nosso!
= = = = = = 

Fábula em Versos de
JEAN DE LA FONTAINE
Château-Thierry/França, 1621 – 1695, Paris/França

O burro e o cavalo

Indo um burro e um cavalo de jornada,
Levava o burro carga tão pesada,
Que disse ao companheiro: «Meu amigo,
Tão grande peso levo, que te digo
Que se não tomas parte e me alivias,
Chegado está o termo dos meus dias.»

O cavalo zombou, e o burro larga,
Estendido no chão, já morto, a carga.
Tratou o dono logo de esfolá-lo;
E não só pôs em cima do cavalo
A carga, mas a pele do esfolado.

«Ah, mísero! dizia o carregado,
Eu tomei o levar parte em desprezo,
E agora levo tudo e contrapeso!»
= = = = = = = = =  

Manuel de Oliveira Paiva (De preto e de vermelho)

Um jaquetão encarnado, com enormes botões de papelão, estava a cair das costas da cadeira. Enroscava-se pelo tijolo uma calça de chita. Um colete azul, com um correntão fofo, escanchava-se, como por acaso, no punho da rede, e no relógio levíssimo escapado da algibeira lia-se uma hora e uns minutos mais adormecidos que o próprio dono. A camisa, toda manchada, como se fora de um assassino, esparramava-se no pó, e adivinhava-se por baixo dela a forma de um chapéu de feltro. Um sapato pisava na mesa, revirado, entre os livros e os frascos.

Da porta entrecerrada estendia-se uma nesga mais clara, e pelas telhas penetrava em pequenas linguetas simétricas o dia exterior.

0 tinteiro, entornado, com o fundo azul para cima, com a larga boca embeiçava a tinta derramada como um lago de água preta. Erguida sobre a mesa a estante, com os livros silenciosos de rótulos disparados com a ocasião, uns em pilha, uns escorando-se nos outros como bois de carro.

Enfileiravam-se no cabide roupas de linho servidas, uma robe de chambre de chita alegre, e andainas (uniformes) diárias. Algumas peças caídas redobradas pelo próprio peso. Num gancho um paletó branco retesava as mangas bilateralmente. Sentia-se um odor de raízes, de poeira, e de suor.

As varandas da rede não denunciavam o menor movimento, e dentro dela se estendia um corpo quase na direção das águas tranquilas.

Entretanto, positivamente, o rapaz não dormia, embora estivesse insensível à cócega que fizessem as patas de uma mosca passeando-lhe pelo nariz.

Ele estava num baile de máscaras, melhor do que verdadeiro, aumentado, completado, com delícias e com horrores...

Ele sentia atroar pelos salões a pancadaria da quadrilha pavorosa, danada e louca, vermelha como o sangue vivo, e negra como uns olhos que conheço.

Donzelas trajadas fantasticamente... mancebos de máscara levantada...

Através da vidraçaria colorida ele, do seu galope onde o assoalho fugia, avistava duelos sob as espirradeiras do jardim à luz do gás notívago,

Aconteceu encontrar num par cuja dama vestia de rainha do oriente... Havia grupos de homens de ponto em branco nas portas. Além sobressaía um resplendor em uns cabelos castanhos... Tremeluziam as cores das fantasias... Viam-se braços nus, colos nus... E um adorável cheiro de virtude envolvia tudo como a luz dos grossos candelabros.

De mãos dadas, apertava e afrouxava o cordão dos pares en avant tous (avante todos)... O círculo entrava a ondular-se na grande corrente como as escamas de uma cobra que caminha. De vez em quando uma mãozinha enluvada demorava-se mais na dele e, temendo o choque dos olhares, punha-se a vista era no peito alheio com uma polidez disfarçada... E sentia-se ali uma irresistível atração virtuosa de sexo a sexo. Que enorme diferença entre aquele sarau cearense no pleno gozo das regalias da instituição da família e as danças orgiáticas onde ele oxidara o rijo ferro da sua juventude!...

Positivamente, o rapaz não estava dormindo... Agora ia de braços, com outros muitos, e no jardim, na grande luz das lanternas, debaixo da grande noite das estrelas, libavam, trocavam ideias, gargalhadas, sentimento...

Ali sob aquele galho de jasmins rutilava um barrete frígio num rosto moreno... por trás de uma cadeira encostada à abundante copa de uma palmeirinha branqueava uma grinalda de penas, donde desciam cetinosos cabelos castanhos para um traje canadense... ia, pujante e simples como a lei de Moisés, uma Raquel por aquela avenida e duas outras donzelas metamorfoseadas em duas grandes flores.

Luze acolá o alfanje de uma Judite e o gume de um ferro de ceifar. Pela vidraçaria gótica, como se fossem pinturas semoventes (movidas por si mesmas) no vidro, passam mascarados valsando.., um anjo vestido de diabo, e uma nobre menina com o avental e a touca de servente.., aquela conduz a rede e o gorro de pescador... uma, de olhar brandamente sublime, tem a tiracolo um cantil de vivandeira onde naturalmente está o néctar do batalhão das musas...

Treme no tumulto das cabeças a pluma de um chapéu de caçador...

A orquestra agora é branda e sinistra, depois garganteia, ora empurra os pares, ora os deixa correr como a baleia fisgada... Sente-se peito contra peito o arfar de respirações... eterniza-se o minuto bronzeamente gravado na memória.., a pobre nudez humana está completamente transubstanciada pelo milagre das vestimentas e da nevrose... e é-se obrigado a admitir a ideia necessária de um paraíso...

Há meninas tênues como a garça e singelas como as grandes magnólias e de vozinha tépida como um afago de rolas, que parecem satisfazer-se apenas e bastante com o calor irradiante do grande sol do prazer que a todos inunda..., são como os serafins, cujas almas subiram pela sua própria leveza ao morrer o corpinho nos braços das mães de infinito olhar sentido.

Há outras que se tivessem asas iam estas de uma porta a outra... e são como os arcanjos valentes dos combates miltonianos... E nuvens surgiam, e clareamentos dourados. Debaixo dos pés ele sentia o longínquo trovão das coisas terrenas. Estava como em um balão que passou o limite dos vapores adensados...

A sonharada foi-se esbatendo até empastar-se no nada... O rapaz dormia... positivamente.

Como ele estava de seu!

Mas súbito um relâmpago fulge pela rótula da janelinha e segue-se a pancada estridente de uma vidraça que bateu no sobrado fronteiro. Foi como a voz do patrão.

Pouco depois arrastava ele o lençol, como uma capa de rei, pelo quarto em roda, à procura da roupa.

E enchia o mesmo quarto com o irresistível — ah — de um prolongado bocejo, que tinha para ele o valor inestimável de uma descarga nervosa.
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MANUEL DE OLIVEIRA PAIVA (Fortaleza/CE, 1861 – 1892) foi um escritor cearense. Colaborou no periódico A Quinzena, publicação da agremiação cearense Clube Literário, do qual participavam João Lopes, Virgílio Brígido, Justiniano de Serpa, entre outros. Também publicou no jornal carioca A Cruzada e O Libertador, órgão da Sociedade Libertadora Cearense, período em que pública dois poemetos (Zabelinha ou a Tacha Maldita e 25 de Março) e um romance (A Afilhada). Sua obra de maior renome, Dona Guidinha do Poço, foi publicada postumamente, em 1952, por inciativa da pesquisadora e crítica literária Lucia Miguel Pereira. Cursou o seminário do Crato, mas trocou a vida eclesiástica pela militar, indo estudar na Escola Militar do Rio de Janeiro, retornando à terra natal em 1883, devido a problemas pulmonares. Teve participação ativa na campanha abolicionista, colaborando no jornal Libertador. Destacou-se, também, como membro do Clube Literário. Sua única obra publicada em vida foi A Afilhada, novela que saiu em folhetins no Libertador em 1889. Neste jornal e em A Quinzena saíram alguns de seus poemas abolicionistas e seus contos realistas. Em livro, porém, seus escritos só seriam publicados postumamente, algumas dezenas de anos depois da sua morte. Sua obra-prima, Dona Guidinha do Poço, escrita em 1892, é um dos maiores romances do Naturalismo brasileiro e possui uma história interessante: seus originais foram entregues pelo próprio autor ao amigo Antônio Sales, que entregou uma cópia a Lopes Filho, que a perde, e outra a José Veríssimo, que iniciou a publicação, interrompida com a falência da sua Revista Brasileira; no fim dos anos 40, porém, Lúcia Miguel-Pereira encontra uma cópia com Américo Facó, depois de intensa pesquisa. Ela publicou, finalmente, Dona Guidinha do Poço em 1952. A Afilhada ganhou edição em livro em 1961, e seus contos foram publicados pela Academia Cearense de Letras em 1976.

Fontes:
Manuel de Oliveira Paiva. Contos. Publicado originalmente em 1888. Disponível em Domínio Público.
Biografia = https://pt.wikipedia.org/wiki/Manuel_de_Oliveira_Paiva 
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José Feldman (Tudo que sobe, desce)

Ivan tinha 47 anos e um histórico invejável de evitar aventuras. Sua vida era previsível, organizada e, principalmente, segura. Ele não andava de patinete, não pedalava bicicletas, não corria riscos desnecessários. Sua maior ousadia, talvez, tivesse sido trocar o café por chá de camomila na tentativa de combater a gastrite. Mas, naquela manhã ensolarada, o destino – ou talvez uma casca de banana – decidiu que Ivan precisava de um pouco de emoção.

Era uma terça-feira comum, e Ivan ia pela ladeira em direção à quitanda do bairro. Ele havia decidido que queria maçãs. Caminhava com sua típica postura ereta, carregando uma sacola de pano dobrada sob o braço e resmungando mentalmente sobre a quantidade de patinetes espalhados pelas calçadas. Era o tipo de homem que acreditava firmemente que a cidade estava em decadência.

Foi então que aconteceu.

No meio da ladeira, uma casca de banana – que parecia ter sido estrategicamente colocada ali por um gênio do caos – brilhou sob o sol como um aviso divino. Ivan, distraído, nem teve tempo de reagir. O pé direito encontrou a casca, e o mundo virou de cabeça para baixo. Ele escorregou com tamanha elegância que poderia até ser confundido com um número de balé, se não fosse o grito desesperado que ele soltou enquanto seus braços agitavam-se como hélices descontroladas.

— AAAAAAAHHHH!!

Ele foi projetado para cima, mas a queda, porém, não foi o fim. Foi apenas o começo.

Ivan despencou de costas, mas, em vez de encontrar o chão duro e impiedoso, encontrou algo ainda mais improvável: um carrinho de mercado. O carrinho estava parado ali, aparentemente abandonado, carregando apenas um saco de batatas e alguns tomates já levemente amassados. A sorte, se é que podemos chamar assim, fez com que Ivan caísse diretamente dentro dele, encaixando-se como uma peça de Tetris em uma jogada perfeita.

O impacto fez o carrinho ganhar vida. Ele começou a descer a ladeira com uma velocidade assustadora, impulsionado pelo peso de Ivan e pela força da gravidade que parecia decidida a não lhe dar trégua.

— PAREM ESSE NEGÓCIO!! — berrou Ivan, agarrando-se às laterais do carrinho como se fosse um piloto de Fórmula 1 em uma curva perigosa.

Mas o carrinho não parou. Pelo contrário: ele parecia ganhar velocidade a cada metro. A primeira vítima foi uma bicicleta estacionada no meio-fio. O carrinho colidiu com ela, arremessando-a contra uma árvore e fazendo soar um "tinhóin" metálico que ecoou pela rua.

— FOI SEM QUERER! — gritou Ivan para ninguém em particular.

Em seguida, vieram as latas de lixo. Cinco delas, enfileiradas como se estivessem participando de uma competição de queda sincronizada. O carrinho as atingiu em cheio, espalhando sacos de lixo, cascas de frutas e algo que parecia ser um peixe malcheiroso por toda a calçada.

— Isso não está acontecendo... — Ivan murmurou enquanto o caos se desenrolava ao seu redor.

Mais abaixo, um grupo de crianças brincava com patinetes. Quando viram o carrinho descendo como um meteoro descontrolado, fugiram gritando, abandonando as patinetes no caminho. O carrinho passou por cima de duas delas, que voaram como projéteis, atingindo uma barraca de pastel na esquina. O pasteleiro deu um salto para trás, derrubando uma bandeja cheia de pastéis quentinhos no chão.

— ME DESCULPA, PASTEL! — gritou Ivan, já sem qualquer esperança de controlar a situação.

A ladeira parecia interminável. Cada metro trazia uma nova catástrofe. Ivan passou por um cachorro que, assustado, começou a persegui-lo, latindo como se o carrinho fosse um invasor de outro planeta. Logo atrás vinham duas senhoras segurando sombrinhas, gritando:

— SOCORRO! TEM UM LOUCO DESCENDO A LADEIRA!

E então, como se o destino tivesse preparado um grand finale, Ivan viu o fim da ladeira: uma construção. Uma obra em andamento, cheia de andaimes, sacos de cimento e, claro, uma poça de lama imensa bem no centro. Ele tentou gritar novamente, mas só conseguiu soltar um som abafado, como um suspiro de derrota.

— Não... na lama, não...

O carrinho atingiu um pedaço de madeira, saltou no ar como se fosse um carro de ação em um filme de Hollywood e aterrissou exatamente na poça de lama. O impacto foi glorioso. Lama voou para todos os lados, cobrindo Ivan da cabeça aos pés e criando uma espécie de coroa marrom em sua careca reluzente.

Por alguns segundos, houve silêncio. O cachorro parou de latir. As senhoras com sombrinhas chegaram, arfando, e olharam para Ivan com uma mistura de horror e pena. Uma das crianças apontou e começou a rir.

Ivan, ainda deitado no carrinho, coberto de lama, levantou uma mão trêmula e disse, com a voz mais digna que conseguiu reunir:

— Alguém pode me trazer uma toalha?

E foi assim que Ivan, o homem que evitava aventuras, tornou-se a lenda da ladeira. O carrinho de feira foi recuperado por seu dono (que nunca explicou por que o havia deixado ali), e a história foi contada por semanas no bairro. Ivan, por sua vez, decidiu que talvez fosse melhor começar a fazer compras em outra quitanda.
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JOSÉ FELDMAN, poeta, trovador, escritor, professor e gestor cultural. Formado em técnico de patologia clínica trabalhou por mais de uma década no Hospital das Clínicas de São Paulo. Não concluiu a Faculdade de Psicologia, na FMU, contudo se fez e ainda se faz presente em mais de 200 cursos presenciais e online no Brasil e no exterior (Estados Unidos, México, Escócia e Japão), sendo em sua maioria de arqueologia, astronomia e literatura. Foi enxadrista, professor, diretor, juiz e organizador de torneios de xadrez a nível nacional durante 24 anos; como diretor cultural organizou apresentações musicais. Morou na capital de São Paulo, onde nasceu, em Taboão da Serra/SP, em Curitiba/PR, em Ubiratã/PR, em Maringá/PR (desde 2011). Consultor educacional junto a alunos e professores do Paraná e São Paulo. Pertence a diversas academias de letras, como Confraria Brasileira de Letras, Academia Rotary de Letras, Academia Internacional da União Cultural/SP, Academia de Letras Brasil/Suiça, Confraria Luso-Brasileira de Trovadores/PR, Academia de Letras de Teófilo Otoni/MG, Academia Formiguense de Letras/MG, etc, possui os blogs Singrando Horizontes desde 2007, e Pérgola de Textos, um blog com textos de sua autoria, Voo da Gralha Azul (com trovas de todos os tempos). Assina seus escritos por Floresta/PR. Dezenas de premiações em crônicas, contos, poesias e trovas no Brasil e exterior.
Publicações de sua autoria “Labirintos da vida” (crônicas e contos); “Peripécias de um Jornalista de Fofocas & outros contos” (humor); “35 trovadores em Preto & Branco” (análises); “Canteiro de trovas”; “Pérgola de textos” (crônicas e contos), “Caleidoscópio da Vida” (textos sobre trovas) e “Asas da poesia”.
Fontes:
José Feldman. Pérgola de Textos. Floresta/PR: Plat. Poe. Biblioteca Voo da Gralha Azul.
Imagem criada por Jfeldman com Microsoft Bing  

sábado, 18 de outubro de 2025

A. A. de Assis (Por um mundo azul)

Um mundo do bem, sem ninguém mostrando o muque. Uma ilha zen. Um mundo azul, cheio de paz, ternura e amor. Algo assim como um lugar-não-lugar, um céu na terra, um espaço onde entre aves e flores possam viver pessoas de alma livre e coração levinho. Dá para entender?

Você pode dizer que isso é coisa de poeta. E acertou: é sim. Pode dizer também que a realidade é muito diferente. Acertou de novo: é sim. Mas a realidade só é assim porque ela não aprendeu ainda a ser como deveria ser.

Hoje a realidade não é uma coisa que se possa realmente chamar de vida – é uma barbaridade, uma brutalidade. É gente brigando com gente, competindo, invejando, desconfiando, mentindo, fofocando, xingando, caluniando, matando, roubando, como se todos fossem inimigos ou rivais de todos. 

Mas você acha que precisa mesmo ser assim? 

Se a gente pensasse um pouco, baixasse as armas e brigasse menos, o mundo seria azul sim. Não haveria necessidade de muro, bodoque, fuzil, canhão, míssil, polícia, exército. Já pensou que beleza? A gente poderia dormir com as janelas abertas, poderia sair à rua sem medo de ser assaltado, poderia viajar pelo mundo todo sem o risco de, de repente, algum poderoso apertar um botão, detonar uma megabomba e mandar para os ares o planeta inteiro.

Será preciso mesmo a gente continuar vivendo em meio a tanta maluquice? 

Se a gente fosse mais azul, mais zen, mais paz, mais ternura, mais amor, já pensou que bom seria? E quanto dinheiro seria poupado se não houvesse necessidade de gastar tanto com segurança? Sobraria o suficiente para não deixar mais ninguém morrer de fome, de frio ou de qualquer doença curável. 

Cada um teria uma atividade profissional, cumpriria sua tarefa diária; depois, na maior tranquilidade, escolheria a melhor maneira de fruir o tempo: iria caminhar no parque, reunir-se com o grupo de oração, convidar amigos para um sorvete ou cafezinho, tocar violão, cantar no coral, pintar, plantar roseiras, escrever poesia, jogar futebol, nadar, jogar truco ou dominó... 

Fantasia? Talvez sim, talvez não. Basta a gente pensar um pouco, baixar as armas, parar de brigar, aprender finalmente a ser gente azul. 
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(Crônica publicada no Jornal do Povo – Maringá-PR – 16-10-2025)

Fontes:
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Aparecido Raimundo de Souza (O milagre do fogão)

O SILVA GANHOU um fogão praticamente novo da Comunidade religiosa onde frequentava. De posse dele, os irmãos da confraria o ajudaram a colocar o presente em suas costas. Colado nele, com muito custo, o rapaz saiu com a carga seguindo seu destino. Os primeiros passos num andar meio devagar, quase parando. Apesar do desconforto, seguiu capengando, tentando se equilibrar daqui e dali se ajeitando meio que aos trancos e barrancos. Vez em quando, dava umas paradinhas básicas para descansar. E foi ganhando terreno. Nesse para aqui e para acolá, andou mais ou menos um quilômetro e meio. 

Para despistar as pessoas que certamente o veriam como um suposto ladrão, o infeliz entrou numa rua, se embrenhou por um beco, saiu numa travessa sem muito movimento. Tudo assim, contando com a sorte, na cara dura, como se carregar no lombo um fogão pelas ruas do bairro às sete horas da noite fosse a coisa mais natural do mundo. Logo à frente, ao galgar uma avenida intermediária mais movimentada que as demais, uma viatura da militar o interceptou. Quatro policias saíram às carreiras, empunhando suas armas e gritando de modo exasperado:

— Deita no chão, mãos na cabeça...

O coitado do Silva, assustado e sem saída, combaliu das pernas afrouxando o suor e o medo escorregou até a base dos sapatos:

— Como?

— Deita, deita, deita... não discute, deita...

Apavorado e tremelicando pior que caniço em ventania, ao tentar colocar o eletrodoméstico na calçada, se desequilibrou. O aparelho, foi com tudo fazendo um estardalhaço dos diabos, se espatifando no meio fio rente à rua.  A tampa de vidro se partiu, os queimadores saíram rolando, o mesmo acontecendo com outras peças internas.  

— Meu Deus, — gritou — e agora?

O policial se aproximou, arma em punho:

— Ta indo pra onde?

— Pra casa, senhor...

— Mora em que lugar?

— Na rua do Caco...

— Que caco?

— Ali no morro Cara do Cavalo Bombadão.

— E essa Brastemp?

— Qué isso, senhor?

— A marca do fogão, sua besta.

— Ah, eu ganhei...

— Cadê a prova?

— Que prova?

— A prova de que realmente não roubou de alguma loja... ou da invasão de alguma residência aqui pelas redondezas... 

— Nessa altura, que fogão?  Não tô vendo nenhum...

O policial inopinadamente lhe aplicou uma série de tapas no rosto: 

— Imbecil, tá me tirando?  Faço referência a esse fogão que você está levando e jogou no chão.  Cadê a nota?

— Não tem nota, seu guarda. Tem um papel que prova que eu ganhei... e quando eu disse que “não tô vendo nenhum fogão é porque... olha o que sobrou dele...”. 

— Mostra. Devagar, sem movimentos bruscos e suspeitos. Está armado?

— Sim. 

— Cadê a peça?

— Não tem nenhuma peça, senhor...

— Idiota, você disse que está armado. Cadê o berro, o trabuco, a arma, o cano?  

— Senhor, eu estou armado de boa vontade... 

Outros tapas zuniram em pleno ar.  O Silva foi ao chão: 

— Engraçadinho. Não tem arma?

— Não senhor... 

— Vamos, estou perdendo a paciência. Cadê a nota?

— Que nota, seu policial?

— A desse fogão, ladrãozinho barato. De onde você o roubou?

— Eu ganhei, seu policial. E fui buscar lá na comunidade...

— Que comunidade?

— Da igreja “Pé no Saco da Fome” que eu frequento...

— OK. Vamos supor que esteja falando a verdade. Tem alguma prova?

— Sim.

— Onde está?

— No meu bolso...

— Mostra... devagar...

A muito custo, o Silva se colocou em pé. Tirou um papel amassado do bolso. Exibiu aos representantes da ordem:

— Aqui... 

O policial passou a mão na tal nota e leu:

— Você está vindo desse endereço?

— Sim, senhor...

Colocaram o desgraçado na viatura, algemado. Solicitaram pelo rádio uma camionete. Coisa de vinte minutos pintou uma segunda viatura também da polícia, ou mais precisamente uma Montana 2010, 1.4 com carroceria e dois agentes. Nela colocaram os restos mortais do fogão. Seguiram para o endereço. Ao chegarem, os policiais viram um ajuntamento de pessoas que entravam e saiam. Mandaram chamar o responsável pelas doações. Uma leva de criaturas simples, saia com sacolas de roupas, sapatos, outras com aparelhos eletrodomésticos, cestas básicas e uma série de itens os mais variados.

— Quem é o responsável?

Uma senhora que estava no portão, respondeu:

— O Pastor Tobias Baygon...

Nem foi preciso anunciar. Com a chegada dos dois carros e a retirada do Silva de um deles algemado e do outro o fogão, o pastor se apresentou correndo:

— Pois não, cavalheiros?

— O senhor conhece esse rapaz?

— Sim, é o nosso irmão Silva. Ele é membro da nossa comunidade. Qual o problema?

Começou a juntar gente:

— O senhor deu a ele aquele fogão que acabamos de descer daquela viatura?

— Sim, seu tenente. Fizemos uma doação. Ele congrega aqui na comunidade, é pobre e resolvemos lhe agraciar com esse fogão. Como ele tinha urgência de chegar em casa e a esposa o esperava para preparar a comida dos filhos menores, o irmão Silva resolveu levar o aparelho nas costas. Só poderíamos fazer a entrega na segunda. E como hoje é sábado... mas o que houve, afinal?

— Ele nos pareceu suspeito, senhor. Ninguém sai com um fogão novo às costas em pleno sábado e ainda mais nesse horário...

O pastor Tobias Baygon não levava desaforos sem dar o troco. E pior, não se calava diante de certas barbaridades. Ao verificar o estado lastimoso do fogão, explicou:

— Senhores, eu dei a ele esse fogão. Ou melhor, a nossa “Comunidade” fez isso de bom grado. E pelo visto, creia no que vou lhe dizer, tenente, esse fogão não é o mesmo novinho que saiu daqui... 

— Ele tropeçou e o fogão foi ao chão, pastor...

— Tenente, com todo respeito. Se ele tropeçou vocês devem tê-lo assustado... ou, quem sabe...

— Senhor, o fogão...

O pastor Tobias Baygon interrompeu o que o policial pretendia dizer:

— Por gentileza, tenente, me aguarde um instante. Tenho aqui um pessoal da imprensa que veio filmar o nosso evento. Vou chamá-los para que registrem o ocorrido. E mais um detalhe, meu caro. Com todo respeito, me perdoa, temos por sorte, hoje, aqui na nossa comunidade, dois advogados. Me dê uns minutos. Vou pedir a eles que venham até aqui e o senhor, por gentileza, se entenda com esses profissionais e explica com mais detalhes a história do fogão...

O que aconteceu, a seguir foi um milagre. Os seis policias se entreolharam. Em seguida sem que fosse dito uma palavra, todos os fardados coçaram os bolsos. Na volta do pastor com a imprensa e os advogados, o tenente se antecipou e fez a entrega ao pastor de uma quantidade significativa em dinheiro que daria para ser comprado três ou quatro fogões:

— Pastor, – disse o tenente, se desculpando em nome dos colegas. – aqui está a nossa oferta. Providencie, por gentileza, um fogão novo para o nosso amigo. Como pode ver, estou, em nome dos seis colegas do destacamento militar deixando um valor a mais para a compra de um outro igual ou melhor. E se o senhor nos permitir, marque o dia e a hora que voltaremos aqui e faremos questão de disponibilizar aquela viatura ali com carroceria para que o presente seja, enfim, entregue na residência do seu Silva. Desculpe o transtorno. Boa noite. 

Os seis policias, saíram cabisbaixos, calados. E o melhor de tudo: com os rabinhos entre as pernas.
Fontes:
Texto enviado pelo autor. 
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Renato Benvindo Frata (Entre a canção e a pedra)

Pela postura da pedra na correnteza, diria que não era mera espectadora como a garça assentada nela, e sim a maestrina a comandar o som na passagem da água tal a desenvoltura das tranças que, ao ganharem velocidade, seguiam em algazarra até saltarem em gritos borbulhantes na cachoeira.

O acalanto que o murmúrio produziu pôs-me enlevo a conduzir ao vago pensar em questões irrespondíveis: por quem cantaria tão indulgente o rio? Teria um propósito a pedra ali a dificultar a passagem da água? Por que a garça olhava curiosa o leito? Como ficaria aquela sinfonia em época de chuva quando o rio engorda, ganha força e ruge embravecido? Nesse caso, a pedra colocaria junto a si sopranos-água a darem novo som ao seu passar?

Talvez. Seria a solução para que rugidos vibrantes se musicassem em composições diferentes... e foram tantas as indagações sugeridas pela paz do recanto que sorri perdido em mim, afinal, um encantamento retira qualquer reação de desistência.

Todavia, como nem o todo belo é perene, a linda garça, menosprezando a canção, ameaçou voar. Agachou-se e ao saltar, cuspiu com o traseiro sujando a pedra; e aí a incoerência: gozou dos acordes e depois cacarou... em mau exemplo.

Indignado, compreendi que muitas vezes o encantamento vale pouco quando posto a olhos despreparados que não conseguem captar a enlevação oferecida, como a garça que fez depositário de dejetos a quem lhe oferecia pouso, sem se ater ao suprassumo da música nascida do atrito.

Entretanto, a pedra sisuda, altiva e conscienciosa ao se ver intrusa a criar dificuldade àquela, provou que em havendo persistência até na extrema confrontação, a felicidade se torna viável, como um cantar aos anjos, por exemplo.

Sim, o marulhar é melodia celestial na sensação de nuvem espraiada na campina ao sabor do vento, onde os anjos fazendo coro transformam o canto da água em fascínio que invade e colore em acordes nossas almas.

(Menção Honrosa no IV Concurso Literário Foed Castro Chamma, Irati/PR - 2023)
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Fontes:
Renato Benvindo Frata. Crepúsculos outonais: contos e crônicas.  Editora EGPACK Embalagens, 2024. Enviado pelo autor.
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