Ivan tinha 47 anos e um histórico invejável de evitar aventuras. Sua vida era previsível, organizada e, principalmente, segura. Ele não andava de patinete, não pedalava bicicletas, não corria riscos desnecessários. Sua maior ousadia, talvez, tivesse sido trocar o café por chá de camomila na tentativa de combater a gastrite. Mas, naquela manhã ensolarada, o destino – ou talvez uma casca de banana – decidiu que Ivan precisava de um pouco de emoção.
Era uma terça-feira comum, e Ivan ia pela ladeira em direção à quitanda do bairro. Ele havia decidido que queria maçãs. Caminhava com sua típica postura ereta, carregando uma sacola de pano dobrada sob o braço e resmungando mentalmente sobre a quantidade de patinetes espalhados pelas calçadas. Era o tipo de homem que acreditava firmemente que a cidade estava em decadência.
Foi então que aconteceu.
No meio da ladeira, uma casca de banana – que parecia ter sido estrategicamente colocada ali por um gênio do caos – brilhou sob o sol como um aviso divino. Ivan, distraído, nem teve tempo de reagir. O pé direito encontrou a casca, e o mundo virou de cabeça para baixo. Ele escorregou com tamanha elegância que poderia até ser confundido com um número de balé, se não fosse o grito desesperado que ele soltou enquanto seus braços agitavam-se como hélices descontroladas.
— AAAAAAAHHHH!!
Ele foi projetado para cima, mas a queda, porém, não foi o fim. Foi apenas o começo.
Ivan despencou de costas, mas, em vez de encontrar o chão duro e impiedoso, encontrou algo ainda mais improvável: um carrinho de mercado. O carrinho estava parado ali, aparentemente abandonado, carregando apenas um saco de batatas e alguns tomates já levemente amassados. A sorte, se é que podemos chamar assim, fez com que Ivan caísse diretamente dentro dele, encaixando-se como uma peça de Tetris em uma jogada perfeita.
O impacto fez o carrinho ganhar vida. Ele começou a descer a ladeira com uma velocidade assustadora, impulsionado pelo peso de Ivan e pela força da gravidade que parecia decidida a não lhe dar trégua.
— PAREM ESSE NEGÓCIO!! — berrou Ivan, agarrando-se às laterais do carrinho como se fosse um piloto de Fórmula 1 em uma curva perigosa.
Mas o carrinho não parou. Pelo contrário: ele parecia ganhar velocidade a cada metro. A primeira vítima foi uma bicicleta estacionada no meio-fio. O carrinho colidiu com ela, arremessando-a contra uma árvore e fazendo soar um "tinhóin" metálico que ecoou pela rua.
— FOI SEM QUERER! — gritou Ivan para ninguém em particular.
Em seguida, vieram as latas de lixo. Cinco delas, enfileiradas como se estivessem participando de uma competição de queda sincronizada. O carrinho as atingiu em cheio, espalhando sacos de lixo, cascas de frutas e algo que parecia ser um peixe malcheiroso por toda a calçada.
— Isso não está acontecendo... — Ivan murmurou enquanto o caos se desenrolava ao seu redor.
Mais abaixo, um grupo de crianças brincava com patinetes. Quando viram o carrinho descendo como um meteoro descontrolado, fugiram gritando, abandonando as patinetes no caminho. O carrinho passou por cima de duas delas, que voaram como projéteis, atingindo uma barraca de pastel na esquina. O pasteleiro deu um salto para trás, derrubando uma bandeja cheia de pastéis quentinhos no chão.
— ME DESCULPA, PASTEL! — gritou Ivan, já sem qualquer esperança de controlar a situação.
A ladeira parecia interminável. Cada metro trazia uma nova catástrofe. Ivan passou por um cachorro que, assustado, começou a persegui-lo, latindo como se o carrinho fosse um invasor de outro planeta. Logo atrás vinham duas senhoras segurando sombrinhas, gritando:
— SOCORRO! TEM UM LOUCO DESCENDO A LADEIRA!
E então, como se o destino tivesse preparado um grand finale, Ivan viu o fim da ladeira: uma construção. Uma obra em andamento, cheia de andaimes, sacos de cimento e, claro, uma poça de lama imensa bem no centro. Ele tentou gritar novamente, mas só conseguiu soltar um som abafado, como um suspiro de derrota.
— Não... na lama, não...
O carrinho atingiu um pedaço de madeira, saltou no ar como se fosse um carro de ação em um filme de Hollywood e aterrissou exatamente na poça de lama. O impacto foi glorioso. Lama voou para todos os lados, cobrindo Ivan da cabeça aos pés e criando uma espécie de coroa marrom em sua careca reluzente.
Por alguns segundos, houve silêncio. O cachorro parou de latir. As senhoras com sombrinhas chegaram, arfando, e olharam para Ivan com uma mistura de horror e pena. Uma das crianças apontou e começou a rir.
Ivan, ainda deitado no carrinho, coberto de lama, levantou uma mão trêmula e disse, com a voz mais digna que conseguiu reunir:
— Alguém pode me trazer uma toalha?
E foi assim que Ivan, o homem que evitava aventuras, tornou-se a lenda da ladeira. O carrinho de feira foi recuperado por seu dono (que nunca explicou por que o havia deixado ali), e a história foi contada por semanas no bairro. Ivan, por sua vez, decidiu que talvez fosse melhor começar a fazer compras em outra quitanda.
= = = = = = = = = = = = = = = = = = = = = = = = = = = = = = =
JOSÉ FELDMAN, poeta, trovador, escritor, professor e gestor cultural. Formado em técnico de patologia clínica trabalhou por mais de uma década no Hospital das Clínicas de São Paulo. Não concluiu a Faculdade de Psicologia, na FMU, contudo se fez e ainda se faz presente em mais de 200 cursos presenciais e online no Brasil e no exterior (Estados Unidos, México, Escócia e Japão), sendo em sua maioria de arqueologia, astronomia e literatura. Foi enxadrista, professor, diretor, juiz e organizador de torneios de xadrez a nível nacional durante 24 anos; como diretor cultural organizou apresentações musicais. Morou na capital de São Paulo, onde nasceu, em Taboão da Serra/SP, em Curitiba/PR, em Ubiratã/PR, em Maringá/PR (desde 2011). Consultor educacional junto a alunos e professores do Paraná e São Paulo. Pertence a diversas academias de letras, como Confraria Brasileira de Letras, Academia Rotary de Letras, Academia Internacional da União Cultural/SP, Academia de Letras Brasil/Suiça, Confraria Luso-Brasileira de Trovadores/PR, Academia de Letras de Teófilo Otoni/MG, Academia Formiguense de Letras/MG, etc, possui os blogs Singrando Horizontes desde 2007, e Pérgola de Textos, um blog com textos de sua autoria, Voo da Gralha Azul (com trovas de todos os tempos). Assina seus escritos por Floresta/PR. Dezenas de premiações em crônicas, contos, poesias e trovas no Brasil e exterior.
Publicações de sua autoria “Labirintos da vida” (crônicas e contos); “Peripécias de um Jornalista de Fofocas & outros contos” (humor); “35 trovadores em Preto & Branco” (análises); “Canteiro de trovas”; “Pérgola de textos” (crônicas e contos), “Caleidoscópio da Vida” (textos sobre trovas) e “Asas da poesia”.
Fontes:
José Feldman. Pérgola de Textos. Floresta/PR: Plat. Poe. Biblioteca Voo da Gralha Azul.
Imagem criada por Jfeldman com Microsoft Bing
Nenhum comentário:
Postar um comentário