— Mormaço, hein? Pergunta a mãe.
— É mesmo. Só que eu não estranho muito. O calor de lá me imunizou.
Dona Adelaide franze a testa.
— Já vem você com as coisas do Rio.
(Põe na voz uma intenção misteriosa).
— Você deve mais é esquecer aquilo. Cidade grande não presta. Cidade grande estraga a mocidade.
— Minha mocidade foi feita pra ser estragada. Não me interessa a velhice.
— Credo, menino! Deixe de blasfêmia! Então você quer morrer cedo?
— Mais ou menos.
Dona Adelaide fica perdida. Só sabe repetir.
— Deixe de blasfêmia. Deus castiga.
Frederico toma consciência da resposta imprudente. Iria amargar, inutilmente, o coração da velha.
— Desculpe, mamãe. Eu falava bobagens, só queria brincar.
— Logo vi. Isso não é coisa que se diga. A morte vem quando Deus quer. Ninguém morre na véspera.
Frederico fez que sim com a cabeça. Dona Adelaide se lembra:
— Vou botar a canjica no fogo.
— A canjica? Boa ideia.
Olha o céu. Tudo limpinho. Sem uma nuvem. O sol apenas. Medonho, incansável. Tostando as folhas. E coriscando no rio sereno. E pondo diademas na testa do paredão grande.
Vem da outra esquina um som. A oficina do alemão em pleno funcionamento.
O martelo sobe e desce. A bigorna resiste. O ferro em brasas solta faíscas. E obedece: “ten-ten-ten-ten”. Depois o som fica mais agudo: “tin-tin-tin-tin”. O mesmo de vinte anos atrás.
“Tin... tin... ten... ten...”
Recorda a cena cotidiana da meninice. O mormaço pesando; o alemão bigornando, bigornando; e ele, de barriga pra cima, derramando na cama, estudando o céu, estudando.
No retângulo da janela, as nuvens se sucediam lentamente. Fixava uma com vontade. E a nuvem realizava morfologias engraçadas. Virava boi. Depois: montanha, navio, mulher, um leão de boca aberta, um santo puxando duas crianças, outra vez o boi, um leão de boca fechada...
Levava horas assim. Era mesmo que fita de cinema aquele pedaço do céu. A nuvem fazia tudo, desenhava tudo. Os urubus ajudavam de vez em quando. Os urubus descreviam curvas penosas, fechavam circunferências grandes e pequenas.
Um carro de boi canta monotonamente no extremo da cidadezinha. A cantiga do carro pesa, cansa, dá sono.
— Preciso fugir ao sono.
Busca um livro. O livro joga ditirambos à trepidação permanente das coisas, no dinamismo perene das espécies. O livro diz que o movimento é vida e acha que o espírito vive em função da inquietude. O livro exibe argumentos, discute. Mas o céu está sem nuvens. E os urubus, lá no alto, executam de repente uma fermata muito escura. E o paredão grande só sabe reluzir. E o rio é quieto, sonolento, mudo.
E a cantiga do carro cresce em monotonia. E a oficina do alemão não muda: “tin-tin-ten-ten...” E o mormaço desce, aborrece, abafa. “Tintin-ten-ten”... O carro... Os urubus... O céu limpinho, limpinho...
O livro joga ditirambos ao dinamismo permanente das coisas.
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(Publicado originalmente em O Dia. Curitiba, 29/12/1936)
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Newton Sampaio natural de Tomazina/PR, 1913 e falecido na Lapa, em 1938, foi um médico, ensaísta, escritor e jornalista brasileiro. Newton é considerado um dos mais importantes contistas paranaenses sendo o precursor do conto urbano moderno. Em 1925, saindo da pequena Tomazina foi estudar no Ginásio Paranaense, em Curitiba, e precocemente, passou a lecionar nesta instituição, além de colaborar para alguns jornais da capital paranaense, principalmente o "O Dia". Ao ser admitido na Faculdade Fluminense de Medicina, transferiu-se para a cidade de Niterói. Após formado em Medicina, permanece na capital do país, porém, com a saúde bastante abalada, retornou a Curitiba e em seguida internou-se em um sanatório na cidade da Lapa onde faleceu no dia 12 de julho de 1938. Duas semanas após o seu falecimento, recebeu o Prêmio Contos e Fantasias concedido pela Academia Brasileira de Letras, pelo livro Irmandade. Newton Sampaio pertenceu ao Círculo de Estudos Bandeirantes de Curitiba e como homenagem ao jovem modernista, um dos principais prêmios de contos do Brasil leva o seu nome: Concurso Nacional de Contos Newton Sampaio. Algumas obras: Romance “Trapo”: trechos publicados em jornais e revistas; Novela “Remorso”, 1935; “Cria de alugado”, 1935; Contos: “Irmandade”, 1938, “Contos do Sertão Paranaense”, 1939; “Reportagem de Ideias”: contos incompletos, etc.
Fontes:
Newton Sampaio. Ficções. Secretaria de Estado da Cultura: Biblioteca Pública do Paraná, 2014. Disponível em Domínio Público.
Biografia: https://pt.wikipedia.org/wiki/Newton_Sampaio
Imagem criada por Jfeldman com Microsoft Bing
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