terça-feira, 21 de outubro de 2025

Asas da Poesia * 115 *


Poema de
ANTERO JERÓNIMO
Lisboa/Portugal

Amar, somos nós 

Amar de verdade
Amar sem anotar numa agenda
Amar num pequeno gesto e plantar sorrisos no olhar
Deixar que as emoções nos abracem numa torrente de afetos
Dar no incerto receber
Construir pontes, fortalecer raízes
Aprendendo a sermos mais justos e mais felizes
Porque há um mundo à nossa volta a desmoronar
E só o amor nos pode resgatar
Amar até à exaustão
Mesmo que destituído de razão
Amar és tu, amar sou eu
Dando as mãos na firmeza do acreditar
Pois temos apenas este tempo para amar.
= = = = = = = = =  

Poema de
CAROLINA RAMOS
Santos/SP

Calçadão de Minha Rua…

Alvinegra passarela
em mosaicos definida…
sempre que passo por ela,
a repassar me convida.

Calçadão de minha rua,
a imitar ondas do mar…
à luz do sol ou da lua,
aonde irás me levar?!

Meu destino, irrelevante,
me fez boa caminheira
e assim vou seguindo adiante,
até quando Deus o queira!

Calçadão de minha rua,
talvez que em dia já breve,
minha vida, que se estua,
não te pise… nem de leve!

E, então, guardarás silente,
nos mosaicos desgastados,
passos meus… passos de ausente
… marcas de passos passados..
= = = = = = 

Poema de
LUIZ POETA
(Luiz Gilberto de Barros)
Rio de Janeiro/RJ

Num simples toque

Tu és pétala de rosa... me maltrata
Maltratar teu coração num simples toque...
Meu amor por teu amor é sem retoque
Como um rosto que o espelho não retrata.

Tens espinhos, mas ferir-me só me mostra
Que no fundo te proteges do que eu sinto;
Meu amor é inevitável, não te minto:
Só de ver-te, aos teus pés ele se prostra...

Se tu partes, teu perfume é que fica
No silêncio, percorrendo os sonhos meus;
É difícil te perder tão sem adeus,
Quando a dor do meu amor te identifica...

Fecho os olhos quando quero te sonhar,
Entretanto, como pétala de flor,
Tu te soltas pela luz do meu olhar
E te perdes numa lágrima... de dor.
= = = = = = 

Glosa de
FABIANO WANDERLEY
Natal/RN

MOTE
Carrego o carro da sorte,
pelos caminhos da vida

GLOSA
Por onde quer que eu aporte,
não temo adversidades,
pra evitar temeridades,
carrego o carro da sorte.

E por ser o meu suporte,
meu destino consolida,
me protege, dá guarida,
me alerta, em todos momentos,
pra que encontre os acalentos,
pelos caminhos da vida.
= = = = = = 

Trova Popular

Amar e não ter ciúmes,
isso não é querer bem;
quem não zela o bem que ama,
muito pouco amor lhe tem.
= = = = = = 

Soneto de
RAUL DE LEONI
Petrópolis/RJ, 1895-1926

Artista

Por um destino acima do teu Ser,
Tens que buscar nas cousas inconscientes
Um sentido harmonioso, o alto prazer
Que se esconde entre as formas aparentes.

Sempre o achas, mas ao tê-lo em teu poder
Nem no pões na tua alma, nem no sentes
Na tua vida, e o levas, sem saber,
Ao sonho de outras almas diferentes...

Vives humilde e inda ao morrer ignoras
O Ideal que achaste... (Ingratidão das musas!)
Mas não faz mal, meu bômbix* inocente:

Fia na primavera, entre as amoras,
A tua seda de ouro, que nem usas
Mas que faz tanto bem a tanta gente...
= = = = = = 
* Bômbix = bicho-da-seda
= = = = = = = = = = = = = = 

Soneto de
HAROLDO LYRA
Fortaleza/CE

Coisificadas

Hoje é comum mulher tirar a roupa
pra revelar nas bancas de jornal,
despudoradamente o colossal
segredo da virtude, já tão pouca.

Desnuda-se, aos apelos do mural;
na crapulosa folha a pose louca
que a revista conduz de boca em boca
e faz dessa mulher coisa venal,

que assim exposta nua à sordidez;
dependurada à espreita do freguês,
nem percebe aonde e como vai chegar.

Mas chega ao pai, os sonhos carcomidos,
por ver da filha os garbos preteridos,
e oferecida a quem puder pagar.
= = = = = = 

Soneto de 
AMILTON MACIEL MONTEIRO
São José dos Campos/SP

Ser poeta

Fazer poesia é fácil, meu amigo,
basta um por cento só de inspiração,
e a conclusão do poema está contigo,
é só tirá-la na transpiração.

Isto é assim já desde o tempo antigo,
na liberdade e até na escravidão,
colocada a semente num abrigo,
o restante é cuidar da plantação...

Vale a pena o suor que tu verteres,
por tudo o que requerem os afazeres,
seja no campo, ou com papel e pena.

Seja a poesia, ou mesmo outra arte,
e quem com enxada faz a sua parte,
perante a Pátria jamais se apequena!
= = = = = = 

Poema de
PAULO LEMINSKI
Curitiba/PR, 1944 – 1989

Bem no fundo

No fundo, no fundo,
bem lá no fundo,
a gente gostaria
de ver nossos problemas
resolvidos por decreto

a partir desta data,
aquela mágoa sem remédio
é considerada nula
e sobre ela — silêncio perpétuo

extinto por lei todo o remorso,
maldito seja quem olhar pra trás,
lá pra trás não há nada,
e nada mais

mas problemas não se resolvem,
problemas têm família grande,
e aos domingos
saem todos a passear
o problema, sua senhora
e outros pequenos probleminhas.
= = = = = = 

Trova Funerária Cigana

Minha mãe, entre seus filhos,
se lembre de mim um dia,
que dos ramos que eles formam
eu sou a flor mais sombria.
= = = = = = 

Soneto de 
THALMA TAVARES
São Simão/SP

A um jovem suicida

Pela porta entreaberta o velho pai assoma.
Olha triste, em silêncio, a família e a casa,
E em soluços explode a dor que ele não doma,
o mal contido pranto, a lágrima que abrasa.

A todos, de um só golpe, o sofrimento arrasa.
Inconsolável mágoa a casa inteira toma.
Parece que a tristeza, enfim, deitou sua asa
sobre um lar onde a paz era único idioma.

Tempos depois passou a dor e o desconforto.
Mas do pai, que abraçou um dia o filho morto,
como eterno castigo a dor não se apartou.

Ficou-lhe na lembrança - e pela vida inteira -
a débil voz do filho e a queixa derradeira:
- Estou morrendo, pai!... A droga me matou!
= = = = = = 

Poema de 
ÓGUI LOURENÇO MAURI
Catanduva/SP

Retrato de Mulher

Pobre mãe-menina, marginalizada!
Sozinha, deu à luz debaixo da ponte
Um ser de paternidade ignorada...
Agora, mãe e filho sem horizonte!

Malvista, miserável e mãe solteira;
Retrato de mulher achado no lixo,
Pelo jeito, vai passar a vida inteira
Enfrentando do destino o seu capricho.

É "Socialite" às avessas no jornal...
Com um filho recém-nascido na vida.
Às vezes sai no noticiário geral:
Retrato de mulher pedindo comida!

Ah, se a cronista da página social
Não se preocupasse só com as madames!...
E mostrasse à sociedade por igual,
Outro retrato de mulher, das infames!...

Somente assim creio que seria possível
À camada rica se dar uma pista
Do tanto que ela se apresenta insensível,
Toda voltada para si, tão egoísta!

Retrato de mulher, foco de beleza!
Impróprio para propagar mendicância.
Não podemos contrariar a Natureza,
Retrato de mulher é só elegância! 
= = = = = = 

Soneto do
Príncipe dos Poetas Piracicabanos
LINO VITTI
Piracicaba/SP, 1920 – 2016

Indelével retrato

Quando menino, sensações de vulto
não tive, sensações próprias da idade.
Sempre vivi desconhecido e oculto,
longe do vão bulício da cidade.

Fiz da vida campestre um quase culto,
da natureza, quase divindade.
E trago ainda (que felicidade!)
um coração silvestre em mim sepulto.

Um dia precisei deixar meu ninho
trocar o seu calor e o seu carinho
por outras contingências do viver.

Mas nem belas visões de outra paragem
puderam apagar a sua imagem
gravada tão profunda no meu ser.
= = = = = = 

Poema de
CECY BARBOSA CAMPOS
Juiz de Fora/MG

Desesperança

A boca vazia
os olhos grandes,
vazios…
O prato vazio,
panelas brilhantes,
vazias…
Menino vazio,
sem graça, sem jeito,
sem nada no mundo,
sem sonho, sem ânsias,
sem nada a esperar,
espera cansado
a vida seguir.
= = = = = = 

Hino de 
Sambaíba/MA

Sambaíba acordaste para a vida.
Do Maranhão a cidade mais querida.
Tua gente alegre, hospitaleira.
Paisagem atraente e brasileira.

És banhada pelo grande Rio Balsas.
Cristalino, deslizando noite e dia.
Suas águas lembram majestosa fita,
Que lhe serve na mais doce harmonia.

Nós te saudamos de coração.
E mais um aperto de mão.

Verdes campos acolhendo os rebanhos.
Teu lindo céu matizado de azul.
O teu povo enobrece os estranhos.
Premiando tanto o Norte como o Sul.

As montanhas dão um grande colorido,
Refletindo um postal, uma pintura.
O que chega sente-se um escolhido.
Dando graças pela feliz aventura.

Nós te saudamos de coração.
E mais um aperto de mão.

Uma prece ao nosso Criador.
Arquiteto desta obra incomparável.
Todos nós lhe queremos com ardor.
Nos deu vida e Pai adorável.

Tua bênção é a nossa esperança.
A bandeira que nos mantém de pé.
Dai-nos paz, com saúde e bonança.
Te pedimos com toda nossa fé.

Nós te saudamos de coração.
E mais um aperto de mão.
= = = = = = 

Poema de 
CECÍLIA MEIRELES
Rio de Janeiro/RJ, 1901 – 1964

Lua Adversa 

Tenho fases, como a lua 
Fases de andar escondida, 
fases de vir para a rua... 
Perdição da minha vida !
 Perdição da vida minha !
 Tenho fases de ser tua, 
tenho outras de ser sozinha.

Fases que vão e que vêm,
 no secreto calendário
 que um astrólogo arbitrário
 inventou para meu uso. 

E roda a melancolia 
seu interminável fuso ! 

Não me encontro com ninguém 
(tenho fases, como a lua ...) 
No dia de alguém ser meu 
não é dia de eu ser sua ... 
E, quando chega esse dia, 
o outro desapareceu ...
= = = = = = 

Fábula em Versos de
JEAN DE LA FONTAINE
Château-Thierry/França, 1621 – 1695, Paris/França

O horóscopo

Dissera um charlatão
Ao pai duma criança que nascia,
Que esta cruenta morte sofreria
Nas garras dum leão.

Cresce, temos rapaz,
E o pai lhe diz: «Não sairás dos lares,
Para uma vez leões não encontrares».
Se bem diz, melhor faz.

Tinha o pai, num painel,
Pintado um leão. Um dia o rapaz brada:
«Por causa desta fera aqui pintada,
Sofro eu sorte cruel!»

Forma um bom murro e — zás!
Investe com o painel, de raiva cego;
Porém a mão lhe rasga oculto prego
Que estava por detrás!
***

Ésquilo ouviu rosnar
Que havia de cair-lhe em cima a casa;
Crê no que ouve, o pateta, vê-se em brasa,
E vai dormir ao ar.

Mas — oh, caso fatal! —
Passa uma águia nas garras empolgando
Enorme tartaruga; e esta largando
Na cabeça do tal,
Um bolo pronto a faz!
***

Um adivinho em méritos realça?
Não, respondo. Sua arte é mais que falsa,
Apesar do que atrás
Acabo de contar.
Crer nessa arte é no juízo haver atraso:
Aqui só vejo acaso — e pode o acaso
Às vezes acertar.
= = = = = = = = = 

Raquel Machado Pivetta (A sina de Sara)

(Uma releitura contemporânea de "Um homem célebre")

- Sara, você escreve pra mim? Não consigo pensar em nada.

Aninha namorava Pedro havia dois anos e estava tentando reatar após uma discussão trivial. Em poucos minutos, a mensagem para o namorado ciumento da amiga estava pronta. Aninha ficou entusiasmada com o texto. Sara, por outro lado, só queria encerrar logo aquilo.

- Espero que dê certo - disse Sara, já correndo para o elevador.

Mal sabia ela que ainda não havia terminado. Todos se lembravam dela com frequência em aniversários, casamentos, despedidas... Não deu nem tempo de atravessar o portão de casa:

- Que sorte te encontrar, Sara! É que... A gente está encomendando a coroa de flores para a tia Dolores, então se puder me passar a mensagem... - pediu sua amiga de infância.

- Sim, claro! Nossa querida Dolores vai deixar saudades - comentou Sara, suspirando ao se lembrar da professora de história do sexto ano. - Te mando daqui a pouco.

Nos momentos livres, Sara gostava de extrair humor do cotidiano escrevendo. Sentava-se para colocar no papel e, em poucas horas, surgia um novo texto. Seus relatos pessoais espalhavam-se pelas redes sociais e entre as rodas de amigos. Por onde andava, ouvia comentários sobre suas crônicas, seguidos de diversas sugestões de temas.

Mas seu desejo ardente a sufocava e a distanciava de todo aquele alvoroço. A criatividade e o talento dos grandes escritores a perturbavam, revelando sua própria mediocridade. Ela ansiava por desgarrar-se das histórias do dia a dia. Era tortuoso o caminho para a ficção e a narrativa longa. Curto e suave era o atalho para as banalidades. As crônicas e as cartas sentimentais fluíam a cada respiro, a cada perrengue.

- Fervilham no meu cérebro como larvas em esterco - disse Sara, certa noite, ao se deitar.

E os textos curtos rendiam aplausos. Faziam tanto sucesso, que Sara pediu demissão no trabalho para poder dedicar-se exclusivamente à escrita.

- Olha, Sara, você não precisa abandonar seu emprego - disse José Carlos, seu chefe. - Você pode conciliar as duas coisas.

- Com mais tempo, vou conseguir me livrar das linhas fáceis - disse Sara, decidida. E não voltou atrás.

O fato é que passaram-se os anos, e os pequenos escritos de Sara ganharam grande visibilidade. Ela trabalhou para colunas de jornais populares e publicou dezenas de livros, cujas vendas sempre se esgotaram.

Mas Sara não conseguia trilhar o trajeto mais nobre. Nunca conquistou sequer um prêmio literário, por exemplo. A mente acordada nos fatos era o maior obstáculo. Sua imaginação ignorava seu grito silencioso. Assim, a razão e o mundo de Sara conduziam sua caneta à verdade nossa de cada dia. Tudo terminava em crônica, e a crônica era o início de tudo. Seu talento era a crônica; e sua condição, crônica.

Teve bastante tempo para insistir nisso. Só se libertou dessa danação aos 93 anos. Não, ela nunca desistiu. E dessa vez não precisou se preocupar com as palavras para a faixa de condolências. Já estava tudo pronto, à sua espera: "Querida Sara, escreva muitas crônicas aí no céu".
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Raquel Machado Pivetta é de Brasília/DF, analista de sistemas e revisora de textos. Apaixonada pela língua portuguesa, fundou o site Viva Gramática, onde compartilha crônicas que exploram, com sensibilidade literária, as nuances do cotidiano.

Fontes:
Imagem criada por JFeldman com Microsoft Bing

Hans Christian Andersen (A flor de sabugueiro)

Era uma vez um menino que apanhou um resfriado, porque saiu de casa e molhou os pés. Ninguém conseguia descobrir, contudo, como chegou a molhar os pés, pois o tempo estava seco. A mãe despiu-o e meteu-o na cama, e mandou trazer os apetrechos para fazer uma boa taça de chá de flor de sabugueiro, que logo aquece a gente. Naquele momento chegou o amável velhote que morava no último andar, e vivia sozinho - porque não tinha mulher nem filhos. Gostava muito de crianças, e sabia uma infinidade de histórias de fadas, e de contos muito bonitos, e contava com tanta graça, que era um encanto ouvi-lo.

- Se tomares teu chá - disse a mãe - quem sabe se o vizinho te contará alguma história bonita, enquanto vais bebendo?

- E quem me dera saber uma nova! - acudiu o bom velho, sacudindo a cabeça e sorrindo. - Mas como foi que esse gurizinho molhou os pés?

- Pois é isso mesmo que eu pergunto - disse a mamãe. - Ninguém o sabe?

- Então o senhor vai contar uma história? - perguntou o menino.

- Sim! Mas primeiro hás de me dizer com certeza que profundidade tem a calha daquela travessa por onde passas para a escola. Sabes?

- Dá-me pela barriga da perna, quando entro no buraco mais fundo.

- Então foi lá que molhaste os pés. Agora é justo que te conte uma história, como prometi, mas o caso é que não sei mais nenhuma.

– Oh! A mamãe diz que o senhor converte em histórias as coisa que vê; e que pode tirar um conto de fadas de tudo quanto toca...Invente uma agora!

- É verdade, mas são histórias que não prestam para nada. As boas, as verdadeiras histórias, sãos as que vem de si mesmas, batem-me na testa e dizem: " Aqui estamos, aqui estamos!"

- E não está batendo uma agora?

A mãe ria, enquanto ia deitando no bule as flores de sabugueiro, e água fervendo.

- Um conto! Quero uma história! - dizia o doentinho. 

– Conto! - respondeu o velho. - Mas as histórias são gente de alto coturno, e só aparecem quando lhes dá na cabeça...Mas espera...Ah! Já temos uma! Olha para o bule de chá: lá dentro está uma história.

O menino olhou para o bule. A tampa ia se erguendo, se erguendo...e de dentro foram brotando ramos cheios de folhas e de flores, alvas e frescas, que se estendiam em todas as direções. Até do bico saía um broto, também florescido. E os raminhos iam crescendo, crescendo, e formaram uma árvore, que chegou até a cama, afastando as cortinas para um lado. E que perfume delicioso espalhavam aquelas flores! E no meio da árvore estava uma velhinha de ar bondoso, com um estranho vestido, de cor verde, como as folhas, e todo estampado de flores de sabugueiro, e assim não se distinguia bem se era feito de um tecido, ou de folhas e flores vivas.

- Como se chama aquela dama? - perguntou o menino.

- Os gregos e romanos diziam que era uma Dríade (A Dríade é um ser da natureza que tem sua alma contida em uma árvore muito antiga).  - respondeu o velho. - Mas nós não entendemos essas palavras, e achamos um nome que lhe assenta mais: no bairro onde moram os marinheiros chamam-na " A Mãe Sabugueira". E agora deves olhar bem para ela, e escutar sem despregar os olhos da linda árvore.

E o velhinho começou:

" Em um canto de um pátio pequenino, no bairro de Niburgo, há uma árvore assim, grande e cheia de flores, como esta. Em uma tarde de verão um casal idoso estava sentado à sombra do grande sabugueiro, num pátio sombrio: era um velho marujo e sua mulher, tão idosa como ele. Tinham muitos netos e bisnetos, e pouco faltava para celebrarem as "Bodas de Ouro":  sim, faltava pouco tempo, mas nenhum deles se lembrava da data exata do casamento. A Mãe Sabugueira, que estava sentada na árvore, e olhava para eles com simpatia, como nos está olhando agora, disse-lhes:

" - Eu sei a data.

"Mas eles não a ouviram, porque estavam falando dos seus tempos passados. O velhinho dizia:

"- Lembras-te de quando éramos pequenos, como brincávamos juntos, neste mesmo pátio? E o dia em que enterramos galhinhos de plantas, formando um jardim?

"- Sim! Lembro-me de tudo, como se fosse hoje - disse a velhinha. - E nós regávamos as varinhas, e uma delas, um galho de sabugueiro, enraizou, e brotou, e cresceu, cresceu tanto que veio a ser esta grande árvore, que agora nos dá sombra na velhice.

"- Isso mesmo! E ali naquele canto está o tonel onde eu gostava de por a flutuar meu barquinho, que eu mesmo talhara na madeira. E como ele navegava!... Mas em breve naveguei de outra maneira...

"- Sim - disse a velhinha. - Mas antes disso estivemos na escola, onde aprendemos muitas coisas. E um dia fomos passear em Frederiscburgo, e vimos e o rei e a rainha que passavam no canal, no seu magnífico bote.

"- É, mas eu teria de navegar depois muito mais longe do que eles, e anos e anos, por mares longínquos!

"- E eu quantas vezes chorei por ti - acudiu a velhinha - julgando-te morto lá longe, no fundo do mar, embalado pelas vagas!! E quantas vezes me levantei de noite, para ver se o cata-vento tinha virado... Sim, dava muitas voltas, mas tu, tu não voltavas! Um dia - lembro-me como se tivesse sido ontem - chovia tanto, tanto, que parecia que o céu vinha abaixo. O lixeiro chegou à casa aonde eu servia, e eu peguei na tina de lixo  e desci a escada, e parei à porta. Mas que tempo! Chovia a cântaros! E enquanto eu esperava ali parada, chega o carteiro e entrega-me  uma carta. Era tua - e Deus sabe quanto tinha viajado! Abri-a imediatamente, e li-a ali mesmo, chorando e rindo de alegria. Nela contavas que estavas naquelas terras quentes, onde nasce o café. Que lindo devia ser esse país! Era uma terra maravilhosa, conforme dizias, e eu ali fiquei, lendo a tua carta, sem me lembrar mais da chuva que caía, com a tina do lixo na mão - quando alguém me passou o braço pela cintura...

"- Ah! Mas tu me assentaste um belo soco na orelha, que até hoje ainda chia...

"- Pois se eu não sabia que eras tu, ora essa! Chegavas ao mesmo tempo que a carta, e vinhas tão guapo - e ainda o és, isso é verdade! Tinhas no bolso um grande lenço de seda amarela, e trazias um chapéu todo lustroso... Que elegante estavas! Mas que tempo espantosos, aquele! E a enxurrada enchia a rua...

"- E casamos, lembras-te? E quando nos nasceu o primeiro menino, e depois a Maria, e o Niels, e o Hans Cristian...Lembras-te?

"- Como não hei de, lembrar? Cresceram, enfim, e são hoje gente prestante, a quem todos apreciam.

"- E  agora seus filhos também tem filhos - continuou o velho marinheiro. - Sim, tens netos em quantidade! E feitos de boa cepa, isso sim! Se não estou enganado, foi nesta época do ano mesmo que casamos...

- Sim, é hoje o dia das bodas de ouro! - disse a Mão Sabugueira, metendo a cabeça entre os dois velhinhos.

"Mas eles pensaram que era o vizinho que os cumprimentava. E nisto entraram no pátio seus filhos, e os filhos de seus filhos, que sabiam bem que era aquele o dia das bodas de ouro, e já tinham dado os parabéns aos velhos naquela manhã, pela data feliz: mas eles, que recordavam tanta coisa tão remota, não se lembravam daquele fato que era mais recente,

"E o sabugueiro desprendia seu perfume suave, e o sol poente iluminou o rosto dos velhos, dando-lhes uma suave colorido às faces, e o menor dos netos cantou e dançou em redor deles, proclamando, cheio de alegria, que naquela noite iam celebrar uma grande festa, e que à ceia comeriam as batatas assadas. E a Mãe Sabugueira inclinava a cabeça, saudando-os, e dizendo como as outras pessoas:

" - Parabéns! Parabéns!"

- Ora, isso não é história! - observou o menino, que escutara com muita atenção.

Tu achas que não? - disse o velho. - Mas vamos perguntar à Mãe Sabugueira.

- Não, não é uma história - confirmou ela. - Mas agora é que a história principia. As histórias mais estranhas tem, muitas vezes um fundo de verdade - senão, como teria a minha linda árvore brotado do bule de chá?

Dizendo isso, tirou o menino da cama e aconchegou-o ao seio. Os ramos de sabugueiro fecharam-se  em redor deles, de sorte que parecia um caramanchão (Dá-se no nome de caramanchão a uma construção utilizada em diversos espaços públicos, nomeadamente em espaços verdes, com o intuito de poderem ser utilizados para efeitos de descanso, abrigo, entre outros. Na sua construção é habitual serem utilizados materiais como ripas, canas ou estacas, e servirem de suporte a espécies vegetais tais como trepadeiras) pequenino e saíram a voar pelos ares, levando-os assim abrigados - e era lindo , aquele voo!  Mãe Sabugueira converteu-se em uma bela menina ainda rajada com o mesmo vestido verde da cor das folhas, recamado de flores alvas, que a velha vestia. Tinha no peito uma flor de sabugueiro, de verdade, e cingia-lhe a cabeça, adornando-lhe os cabelos dourados, uma coroa das mesmas flores. Os olhos eram tão grandes, e tão azuis... oh! ela era na verdade muito, muita linda! Beijaram-se as duas crianças, porque eram da mesma idade agora, e alegravam-se por igual, vendo coisas tão belas.

Saíram do pequenino caramanchão de mãos dadas, e encontraram-se em casa, no seu jardim. Viram a bengala do pai, amarrada a um pilar, perto do gramado, e correram a encarapitar-se nela, pois a bengala criou vida imediatamente, por amor das crianças, o castão brilhante converteu-se em uma cabeça de cavalo de verdade, que até relinchava, coberta de longa crina negra e já brotaram quatro pernas, delgadas, mas vigorosas e lépidas, no corpo do cavalo. E o petiço saiu a galopar com as duas crianças no lombo, ao redor do gramado.

- Viva! Vamos correr agora milhas e milhas! - disse o menino - Vamos àquela granja onde estivemos o ano passado, a linda morada daquele senhor tão opulento!

E galopavam assim ao redor do prado, enquanto a menina -  que não era outra senão a Mãe Sabugueira, como sabemos - gritava de alegria, dizendo:

- Agora estamos no campo. Olha aquele chalezinho, com um forno saliente na parede, que até parece um ovo gigantesco! Um sabugueiro estende os galhos por cima do chalé, e no pátio está o galo muito atarefado! Um sabugueiro estende os galhos por cima do chalé, e no pátio está o galo, muito atarefado em esgaravatar para os pintos. Olha como se pavoneia! Já chegamos perto da igreja, lá em cima do morro, à sombra de um imenso carvalho, já meio seco. Agora lá está a forja, o fogo brame, enquanto homens seminus vibram os martelos, fazendo saltar faíscas, que voam para todos os lados. Vamos, vamos! Lá está a granja do homem rico!

E tudo quanto a menina ia nomeando, ia aparecendo, e o menino via tudo. Depois varreram o caminho, para brincar de jardineiros: ela tirou do cabelo as flores de sabugueiro e plantou-as, e as flores cresceram imediatamente, e ficaram árvores  tão altas e tão copadas como aquela que o casal de velhinhos tinha plantado, quando eram crianças. Caminharam de mãos dadas, justamente como tinham feito também os velhinhos, quando eram crianças; não foram, porém, até o jardim de Fredericsburgo. Não! A menina segurou o menino pela cintura e saíram voando por sobre a terra. passavam alternando-se a primavera, o verão, o outono e o inverno; mil imagens flutuavam diante dos olhos do menino, gravando-se-lhe no coração, e a menina ia cantando para ele:

"Oh! Nunca, nunca, nunca 
Hás de esquecer tudo isto!"

E voavam, voavam, e o sabugueiro nunca se cansava do desprender seu aroma suave. O menino via lá embaixo roseirais, e faias verdejantes, mas o perfume do sabugueiro era mais penetrante, porque se exalava da flor que estava presa ao peito da menina, junto do seu coraçãozinho, sobre o qual o menino reclinava às vezes a cabeça, naquele voo maravilhoso.

- Que linda é aqui a primavera! - disse ela, quando andavam pela alameda de faias.

As árvores estavam cobertas de brotos novinhos; o lírio do vale perfumava o chão que iam pisando, e as anêmonas rosadas brilhavam entre a grama verde. Que maravilha se a primavera nunca acabasse nos bosques de faia da fragrante Dinamarca!

Passavam agora pelos velhos castelos do fidalgo, e a menina dizia:

- Como isto aqui é belo no verão!

As altas muralhas e os telhados pontudos espalhavam-se nas águas dos canais, onde nadavam cisnes, procurando a sombra das frescas alamedas. Nos campos ondulava o trigo, como o fluxo e refluxo das águas de um lago, nos fossos brilhavam flores vermelhas e amarelas, e nas sebes entrelaçavam-se o lúpulo e as clematites silvestres. À boca da noite apareceu a lua cheia, avermelhada, e as mechas de feno espalhadas no prado recendiam perfume. Eram visões que nunca poderiam ser esquecidas!

- Como é belo o outono! - Dizia agora a menina.

E o céu parecia mais alto e mais azul, enquanto a floresta ostentava um manto vermelho, amarelo e verde. Os galgos corriam nos campos, e bandos da aves silvestres passavam, guinchando, por sobre os montículos, onde as amoreiras silvestres se enroscavam nos ásperos penhascos. O mar, de um azul profundo, estava cheio de velas brancas, e, na beira, velhas, moças e crianças recolhiam o lúpulo em enormes tonéis. As moças cantavam. Era na verdade uma cena encantadora!

- Que belo é o inverno aqui! - dizia ainda a menina.

E todas as árvores estavam cobertas de geada, de modo que pareciam de coral brando. A neve estalava debaixo dos pés; parecia que eles nadavam de botinas novas. e estrelas cadentes riscavam o céu, uma após outra. Nas salas aquecidas via-se a árvore de Natal, toda iluminada, e os presentes eram distribuídos, em meio as festas. No campo, sob o teto humilde do camponês, soavam as notas dos violinos; distribuíam-se maças cortadas em quartos, e até as crianças mais pobrezinhas diziam:

- Como é lindo o inverno!

Sim! Lindo era tudo quanto a menina ia mostrado ao seu companheiro, e o sabugueiro continuava a envolvê-los no seu suave perfume, enquanto a bandeira vermelha, com a cruz branca, ondulava à brisa fresca. Era a bandeira sob a qual navegara o velho marinheiro da história. O menino de outrora, agora moço, teve de ir por esse mundo fora, para o país quente, onde nasce o café. Mas, ao  despedir-se a moça tirou do peito uma das flores de sabugueiro e deu-lhe, como lembrança. Guardou-a ele no seu livro de orações, e onde quer que o abrisse, em terra estrangeira, era sempre naquela folha que estava o símbolo florido. E quanto mais olhava para a flor, mais fresca ela ia ficando, de sorte que podia sentir o perfume das florestas dinamarquesas, e até via a menininha ensaiando no meio da folhagem e das flores, com aquele olhar tão azul e tão claro, e murmurando baixinho:

- Como é lindo aqui, na primavera, e no outono, e no inverno!

Correram muitos e muitos anos. Agora é ele um velho, e está sentado, ao lado de sua mulher, à sombra de um sabugueiro em flor, e estão de mãos dadas, bem como tinham feito antes deles o tataravô e a tataravó: e, como  eles, falavam dos tempos passados e das suas bodas de ouro. Então a menina de olhos azuis e coroa de flor de sabugueiro, que estava sentada na árvore, fez-lhes um aceno, dizendo:

- É hoje o dia das bodas de ouro!

E tirou de sua coroa duas flores, que beijou: elas brilharam a ficaram cor de prata, mas imediatamente resplandeceram como ouro, e quando ela as colocou sobre a cabeça dos velhinhos, ambas as flores se transformaram em coroas de ouro puro. E o velho casal, sentado à sombra do sabugueiro cheio de perfume, parecia um casal de reis. E o velho narrou à velha esposa a história da Mãe Sabugueira, tal qual a ouvira contar quando era menino, e acharam ambos que era uma história muito parecida com a sua, por isso gostaram muito dela.

- Sim, é verdade- disse a menina lá em cima da árvore. - Uns chamam-me Mãe Sabugueira, outros dizem que sou uma Dríade, mas meu nome verdadeiro é Saudade. Sou a alma da árvore, que nasce e cresce, e vivo sempre nela. Tenho boa memória, e lembro-me sempre de tudo, por isso posso contar muitas coisas do passado.

Depois disse ainda, dirigindo-se ao velhinho:

- Quero ver se ainda guardas a tua flor!

E ele, abrindo o livro de orações mostrou a flor de sabugueiro que lá estava ainda, e tão fresca como se tivesse sido posta naquele instante entre as páginas.

A Saudade sorriu, contente, e os dois velhos, coroados de ouro, sentados ali, iluminados pela luz chamejante do sol poente, fecharam os olhos, e...e...e...

...e acabou-se a história!

O menino, deitado na sua caminha, não sabia mais se sonhara, ou se tinha ouvido uma história. O bule lá estava sobre a mesa, mas já não brotava dele árvore nenhuma, o velho, que contara a história, ia saindo naquele momento, e fechava a porta do quarto.

- Que lindo! Que lindo era! - disse a criança. - Mamãe, eu estive no país quente, sabe?

- Sim, não o duvido - respondeu a mãe. - Quando a gente toma duas taças de chá de sabugueiro, bem quentinho, pode bem viajar pelos países quentes!

Aconchegou-lhe as cobertas, para que não apanhasse frio, e disse-lhe:

- Dormiste um bom sono, enquanto eu discutia com teu velho amigo - se isto era uma história real ou uma lenda.
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Hans Christian Andersen foi um escritor dinamarquês, autor de famosos contos infantis. Nasceu em Odense/Dinamarca, em 1805. Era filho de um humilde sapateiro gravemente doente morrendo quando tinha 11 anos. Quando sua mãe se casou novamente, Hans se sentiu abandonado. Sabia ler e escrever e começou a criar histórias curtas e pequenas peças teatrais. Com uma carta de recomendação e algumas moedas, seguiu para Copenhague disposto a fazer carreira no teatro. Durante seis anos, Hans Christian Andersen frequentou a Escola de Slagelse com uma bolsa de estudos. Com 22 anos terminou os estudos. Para sair de uma crise financeira escreveu algumas histórias infantis baseadas no folclore dinamarquês. Pela primeira vez os contos fizeram sucesso. Conseguiu publicar dois livros. Em 1833, estando na Itália, escreveu “O Improvisador”, seu primeiro romance de sucesso. Entre os anos de 1835 e 1842, o escritor publicou seis volumes de contos infantis. Suas primeiras quatro histórias foram publicadas em "Contos de Fadas e Histórias (1835). Em suas histórias buscava sempre passar os padrões de comportamento que deveriam ser seguidos pela sociedade. O comportamento autobiográfico apresenta-se em muitas de suas histórias, como em “O Patinho Feio” e “O Soldadinho de Chumbo”, embora todas sejam sobre problemas humanos universais. Até 1872, Andersen havia escrito um total de 168 contos infantis e conquistou imensa fama. Hans Christian Andersen mostrava muitas vezes o confronto entre o forte e o fraco, o bonito e o feio etc. A história da infância triste do "Patinho Feio" foi o seu tema mais famoso - e talvez o mais bonito - dos contos criados pelo escritor. Um dos livros de grande sucesso de Hans Christian Andersen foi a "Pequena Sereia", uma estátua da pequena sereia de Andersen, esculpida em 1913 e colocada junto ao porto de Copenhague/ Dinamarca, é hoje o símbolo da cidade. Quando regressou ao seu país, com 70 anos de idade, Andersen estava carregado de glórias e sua chegada foi festejada por toda a Dinamarca. Após uma vida de luta contra a solidão, Andersen logo se viu cercado de amigos. Faleceu em Copenhague, Dinamarca, em 1865. Devido a importância de Andersen para a literatura infantil, o dia 2 de abril - data de seu nascimento - é comemorado o Dia Internacional do Livro Infanto-juvenil. Muitas das obras de Andersen foram adaptadas para a TV e para o cinema.
Fontes:
Hans Christian Andersen. Contos. Publicados originalmente entre 1835 – 1872. Disponível em Domínio Público
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segunda-feira, 20 de outubro de 2025

Mensagem na Garrafa 146 = Amigos loucos e sérios (de Oscar Wilde)


Oscar Wilde
Dublin/Irlanda, 1854 – 1900, Paris/França

Amigos loucos e sérios

Meus amigos são todos assim: metade loucura, outra metade santidade.

Escolho-os não pela pele, mas pela pupila, que tem que ter brilho questionador e tonalidade inquietante.

Fico com aqueles que fazem de mim louco e santo.

Deles não quero resposta, quero meu avesso.

Que me tragam dúvidas e angústias e aguentem o que há de pior em mim.

Para isso, só sendo louco.

Louco que senta e espera a chegada da lua cheia.

Quero-os santos, para que não duvidem das diferenças e peçam perdão pelas injustiças.

Escolho meus amigos pela cara lavada e pela alma exposta.

Não quero só o ombro ou o colo, quero também sua maior alegria.

Amigo que não ri junto, não sabe sofrer junto.

Meus amigos são todos assim: metade palermice, metade seriedade.

Não quero risos previsíveis, nem choros piedosos.

Pena, não tenho nem de mim mesmo, e risada, só ofereço ao acaso.

Quero amigos sérios, daqueles que fazem da realidade sua fonte de aprendizagem, mas lutam para que a fantasia não desapareça.

Não quero amigos adultos, nem chatos.

Quero-os metade infância e outra metade velhice.

Crianças, para que não esqueçam o valor do vento no rosto, e velhos, para que nunca tenham pressa.

Tenho amigos para saber quem eu sou, pois vendo-os loucos e santos, bobos e sérios, crianças e velhos, nunca me esquecerei de que a normalidade é uma ilusão imbecil e estéril.
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Oscar Fingal O'Flahertie Wills Wilde nasceu em 1854, na cidade irlandesa de Dublin. Na infância, era muito apegado à mãe, uma poetisa casada com um famoso cirurgião. O dr. William Wilde, pai do escritor, esteve envolvido em um escândalo sexual quando foi a público um caso amoroso (ou de suposto abuso) com uma jovem. Oscar estudou em Dublin e em Oxford, onde iniciou sua carreira literária com o premiado poema Ravenna, em 1878. Mudou-se para Londres, em 1879. Com a publicação de seu primeiro livro — Poemas —, em 1881, começou a ficar conhecido. No ano seguinte, viajou aos Estados Unidos como palestrante. Casou-se, em 1884, com a escritora Constance Lloyd (1858-1898). Além de ser dramaturgo e poeta, também trabalhou em uma revista de moda feminina chamada Woman’s World. A essa altura, entre 1887 e 1889, já era bastante famoso na Inglaterra. Em 1889, iniciou a escrita do romance O retrato de Dorian Gray e se tornou amigo de Robert Ross (1869-1918), uma pessoa que seria seu grande apoiador durante os anos de prisão. Esse fim trágico teve início quando Wilde conheceu, em 1891, o jovem Alfred Douglas (1870-1945), sua grande paixão. Era um rapaz mimado e egoísta, como o autor sugere em seu livro De profundis. Com ele, o escritor vivenciou uma fase de homossexualismo intenso, mas também de muitos gastos. O rapaz tinha uma relação conturbada com o pai, o marquês de Queensberry. Ele queria que o filho terminasse seu relacionamento amoroso com o escritor. Revoltado, o marquês chamou Wilde de “sodomita”. Assim, em 1895, influenciado pelo amante, Wilde processou o marquês por difamação. Mas os testemunhos contra o escritor durante o julgamento fizeram com que ele fosse julgado e preso por sua homossexualidade. Wilde foi condenado a dois anos de trabalhos forçados por sua orientação sexual, e foi muito humilhado. Foi solto em 1897, mas, desprezado pela sociedade da época, exilou-se na França com o nome falso de Sebastian Melmoth. Apesar de receber a ajuda de alguns amigos fiéis, morreu na pobreza, em um hotel de Paris, em 30 de novembro de 1900.
O esteticismo, movimento artístico a que pertenceu Oscar Wilde, defendia a beleza como principal objetivo estético. Essa concepção de arte buscava criar uma realidade ideal e prazerosa. Dessa forma, em suas obras trazem reflexões em torno da fugacidade da vida e da beleza. O autor, ao expor questões sociais e morais da época, recorreu à ironia e ao paradoxo. O individualismo é valorizado em detrimento do que é coletivo. Por isso, seus textos tratam de questões existenciais, como a culpa, mas também falam de corrupção, sacrifícios, luxúria, violência e mostram uma sociedade decadente ainda presa ao esnobismo de classe.
Fontes:
Oscar Wilde. A esfinge sem segredo e outras histórias. Publicado originalmente em 1887 . Disponível em Domínio Público.
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Silmar Bohrer (Croniquinha) 145

Esse tempo (obs)(es)curo me faz pensar que temos um dia neutro, nem claro nem escuro, nem alegre nem triste, mas a gente respira, inspira e persiste.

Importa que sejamos aquele dia de sol irradiando na intimidade e na vida dos outros. Um sorriso, bom humor e otimismo são apanágios constantes refletindo vida com sabor, calor, saber e vibração.

Dias nebulosos são cortinas que escondem bel-prazeres. Vidas ensolaradas são faróis que disseminam luzes aos quatro ventos.
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Silmar Bohrer nasceu em Canela/RS em 1950, com sete anos foi para em Porto União-SC, com vinte anos, fixou-se em Caçador/SC. Aposentado da Caixa Econômica Federal há quinze anos, segue a missão do seu escrever, incentivando a leitura e a escrita em escolas, como também palestras em locais com envolvimento cultural. Criou o MAC - Movimento de Ação Cultural no oeste catarinense, movimentando autores de várias cidades como palestrantes e outras atividades culturais. Fundou a ACLA-Academia Caçadorense de Letras e Artes. Membro da Confraria dos Escritores de Joinville e Confraria Brasileira de Letras. Editou os livros: Vitrais Interiores  (1999); Gamela de Versos (2004); Lampejos (2004); Mais Lampejos (2011); Sonetos (2006) e Trovas (2007).
Fontes:
Texto enviado pelo autor. 
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Contos e Lendas de Portugal (Os Doze de Inglaterra)

A história conta que doze damas inglesas tinham sido acusadas por doze cavaleiros ingleses de falta de virtude, honra e nobreza. As damas insultadas pediram aos seus parentes que as defendessem, mas a reputação dos difamantes, de grandes guerreiros, esmoreceu qualquer vontade de defender a honra das senhoras, por parte das respectivas famílias.

As damas apelaram, então, ao Duque de Lencastre, sogro do rei de Portugal (D. João I), para que as ajudasse a encontrar defensores para o pleito. O Duque de Lencastre solicitou a ajuda dos portugueses, pois conhecia as qualidades cavaleirescas deste povo, de quando andara em guerra na Península Ibérica. O pedido foi imediatamente aceito pelos doze cavaleiros, que se propuseram a partir, o mais cedo possível, em defesa das damas inglesas.

O navio que transportou os doze portugueses partiu do Porto, no entanto, um dos cavaleiros, D. Álvaro Gonçalves Coutinho, o Magriço, decidiu ir por terra, para ter oportunidade de alcançar grandes glórias e fama, até se juntar, mais tarde, aos companheiros.

No dia do combate, já em Inglaterra, quando os cavaleiros portugueses se alinharam perante os doze cavaleiros ingleses, reparam na desigualdade entre os dois partidos, pois Magriço ainda não tinha chegado. Estava a justa para iniciar-se, quando a população começou a produzir grande burburinho pela aproximação do Magriço, que se juntava, então, aos companheiros.

Primeiro combateram a cavalo e depois a pé, terminando a contenda com a vitória dos Portugueses que, perante a sociedade inglesa, recuperaram a honra e a nobreza das damas. Os valorosos Portugueses ficaram, a partir daquele momento, conhecidos como os Doze de Inglaterra.

Narrado por Fernão Veloso, o mítico episódio dos Doze de Inglaterra foi imortalizado no canto VI (estrofes 42 a 49) de Os Lusíadas, de Luís de Camões, que terá recolhido, provavelmente, a história do manuscrito quinhentista, Crônica Breve das Cavalarias dos Doze de Inglaterra. Quanto à veracidade da existência do Magriço, ela é indiscutível, bem como a veracidade da sua valentia. Não há certeza de que este episódio tenha acontecido, o que não impede que faça parte do imaginário dos ideais cavaleirescos da Época Medieval.

Fontes:
Porto Editora – Os Doze de Inglaterra. Infopédia https://www.infopedia.pt/recursos/lendas-portuguesas/$os-doze-de-inglaterra
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Estante de Livros ("A Alma do Lázaro", de José de Alencar)

"A Alma do Lázaro" de José de Alencar é uma obra introspectiva e poética sobre a condição humana, focada no diário de um leproso isolado pela sociedade

A obra destaca o sofrimento do protagonista, sua luta contra a exclusão e a busca por identidade e sentido. Além disso, a narrativa aborda a dualidade entre o corpo e a alma, o conflito entre o sofrimento físico e a força interior, e a crítica ao preconceito da época contra portadores da doença.

Enredo
A narrativa é apresentada em formato de diário, o que permite ao leitor uma visão direta dos pensamentos e sentimentos do protagonista, Francisco, um talentoso poeta do século XVIII que vive em Olinda. A história de Francisco é marcada por sua luta contra a lepra, uma doença que, à época, o condena ao banimento e ao isolamento social. Através de suas anotações, o protagonista reflete sobre sua própria existência, suas angústias e a busca por um sentido para sua vida em meio ao sofrimento e à exclusão.

Formato e estilo: 
A obra é apresentada como um diário de um leproso, utilizando uma linguagem rica, poética e cheia de simbolismos para explorar as emoções e questionamentos do personagem.

Temas centrais:

A condição humana e o sofrimento: 
O conto explora a profunda angústia de um indivíduo talentoso e sensível, mas que tem seu potencial "sepultado em vida" pela indiferença e pelo desprezo da sociedade. A doença física (a lepra) funciona como uma metáfora para a exclusão e o sofrimento que atingem o protagonista.

Dualidade entre corpo e alma: 
Alencar aprofunda a dicotomia entre a pureza da alma e a decadência do corpo. Francisco, o Lázaro da história, é fisicamente corrompido, mas sua alma permanece inspirada e poética. A narrativa mostra o conflito entre o "sopro divino" que animava o poeta e a matéria mortal que se desfaz e é esmagada pela vida.

Isolamento e estigma social: 
A obra aborda de forma impactante o estigma em torno da hanseníase, em uma época em que a doença era incurável e resultava no banimento dos doentes. O diário de Francisco é a expressão de sua profunda solidão, mas também serve como um registro de seus dilemas morais e espirituais.

Crítica social: 
O livro também apresenta uma crítica sutil à sociedade burguesa do século XIX, questionando os valores e a hipocrisia que levam ao esquecimento de talentos genuínos, enquanto outros, menos virtuosos, alcançam a fama. A história de Francisco é um exemplo de como a miséria pode sufocar um espírito inspirado.

Ambiente gótico: 
O texto é permeado por uma atmosfera melancólica e sombria, com descrições de um ambiente meio gótico que acentua a solidão e o desespero do personagem.

Originalidade e contexto: 
Escrito na juventude de Alencar, o conto é notável por abordar o tema da hanseníase e o preconceito associado a ela de forma pioneira, mesmo em uma época em que o assunto era pouco discutido. A narrativa se destaca pela sua abordagem sensível e humanitária, que vai além da simples descrição do sofrimento físico para focar na dimensão psicológica do indivíduo. Embora seja uma das obras menos conhecidas de José de Alencar, A Alma do Lázaro demonstra a versatilidade do autor em abordar temas profundos e psicológicos. O conto é considerado um texto "com propósito", que abre um diálogo sobre a história da saúde e da doença no Brasil. A obra é uma leitura introspectiva e sensível, que transcende sua época ao tratar de questões universais sobre a condição humana, a fé e a esperança.

Fonte:
José Feldman (org.). Estante de livros. Floresta/PR: Plat. Poe. Biblioteca Voo da Gralha Azul. Disponível em Domínio Público.