domingo, 3 de agosto de 2025

Lóla Prata (O Negócio é Sério)

Aquele indivíduo, funcionário eficiente, temperamento expansivo, educação fina, sem defesas, sorria para todos. O público a quem atendiam, não o perturbava, trazia-lhe satisfação, pois aproveitava os contatos, conversava com todos, vivia em paz. O funcionário continuava na mesma toada: de bem com a vida, transmitia serenidade e angariava amigos.

Menos, a consideração do chefe, que permanecia inconformado. Não era possível! Não compreendia! Atender gente o dia todo, durante meses seguidos e continuar com o sorriso nos lábios, tratando bem a todos, até mesmo aos reconhecidamente chatos (?); devia ser pouco serviço, ajuizava ele. Então, começou a premiar o rapaz com mais atribuições. Quanto mais sorriso, mais serviço.

Agora, o rapaz só dava conta da papelada, se ficasse fora do horário de expediente. Por um tempo, não reclamou, o salário era bom, então, correspondia da melhor maneira possível.

Mas, um dia, sua jovem esposa queixou-se da ausência dele no lar, da falta de companhia, pois queria-o ao seu lado para conversas sobre a vida, para lazer e lamentava o horário de seu regresso do trabalho, o que acontecia lá pelas 21 ou 22 horas.

Ele percebeu que há muito não se distraía, só preocupado com o acúmulo de responsabilidades no escritório. Sentiu o semblante sério e carregado. O espelho da sala lhe revelou raiva, cansaço físico e mental. Cara amarrada. Insatisfação com o ordenado.

Aí, a triste resolução: pede demissão, não real, mas psicológica, do trabalho. Limitou-se ao essencial. Nunca mais sorriu nos dias da semana.

Passou a ser feliz apenas aos domingos.
* * * * * * * * * * * * * * * * * * * * * 
Maria de Lourdes Prata Garcia (pseudônimo Lóla Prata) nascida em Santos, SP, em 1940. Já morou em Santos, Adamantina, Lucélia e São José dos Campos, no estado de São Paulo. Formou-se professora primária no Colégio São José, Santos, 1957. mora em Bragança Paulista desde 1974. Idealizadora da Associação de Escritores (ASES) em 1991 e fundadora da Seção da União Brasileira de Trovadores (UBT) em 2007. Vinte e cinco livros publicados em plataforma física e/ou virtual, entre os quais o Dicionário de Rimas ARRIMO, aceito na Academia Internacional de Lexicografia em 2004. Acadêmica correspondente da Academia Feminina de Ciências, Letras e Artes de Santos-SP; Academia Feminina de Letras e Artes de Jundiaí-SP; Academia Pontagrossense de Letras, Ponta Grossa-PR; Sociedade de Cultura Latina do Brasil, Mogi das Cruzes-SP; Academia de Ciências, Letras e Artes de Columinjuba – Maranguape-CE; Academia Taubateana de Letras. Taubaté-SP.

Fontes:
Lóla Prata. Vivendo. Publicado em 1978. Disponível em https://www.lolaprata.com.br/vivendo
Imagem criada por JFeldman com Microsoft Bing

sábado, 2 de agosto de 2025

Asas da Poesia * 62 *


Trova de
A. A. DE ASSIS
Maringá/PR

Tem muito mais graça a vida
quando a gente tem com quem
repartir bem repartida
a graça que a vida tem.
= = = = = = = = =

Poema de 
LAIRTON TROVÃO DE ANDRADE
Pinhalão/PR

Pombinha meiga
''Mostra-me o teu rosto,
faze-me ouvir a tua voz." (Ct. 2.14)

Pombinha meiga de cor rosada,
Vem aquecer-me com teu calor!
Apaixonado estou, minha amada,
Por este cheiro que tens da flor.

Pombinha meiga de rósea cor,
Cristais dos olhos - cristais do mar,
Ó suave néctar - sublime amor,
Leva-me às nuvens para eu sonhar.

Pombinha meiga, tão cor-de-rosa,
De lábios dóceis, de viva cor;
Assim contemplo-te, ó carinhosa
Ternura amena cheia de amor!

Pombinha meiga de cor rosada,
Cândida lágrima cristalina,
Sonha comigo, musa esperada,
Sonha somente, rósea menina.
= = = = = = = = =  

Trova de
LUCÍLIA A. T. DECARLI
Bandeirantes/PR

Brotou cheia de confiança,
mas no tempo, que passou,
a minha verde esperança
pouco a pouco... desbotou.
= = = = = = = = =  

Soneto de
ANÍBAL BEÇA
Manaus/ AM, 1946 – 2009

Manhã

A manhã nasce das muitas janelas
deste sereno corpo fatigado,
sede  dos meus caminhos sem cancelas,
na luz de muitos astros albergados.

Casa em que me recolho das mazelas,
dos louros, derroteiros, lado a lado,
para de mim ouvir franca sequela:
Ecce Homo! Eis o triste camuflado.

Essa tristeza antiga em residência,
às vezes se constrói em face alegre,
máscara sem eu mesmo em aparência

num carnaval insólito em seu frege.
O que me salva a cor nessa vivência
é saber que a poesia é quem me rege.
= = = = = = = = =  

Trova de
IZO GOLDMAN
Porto Alegre/RS, 1932 – 2013, São Paulo/SP

Eu, na vida, sou barqueiro
dos meus sonhos sem destino:
sonho bom é o passageiro,
sonho mau é o clandestino.
= = = = = = 

Poema de
LUIZ POETA
(Luiz Gilberto de Barros)
Rio de Janeiro/RJ

Minha majestade

Não deixes meu olhar dormir no teu,
Eu corro o doce risco de sonhar
A história linda e triste de um plebeu
Que foi pela rainha se encantar.

Não deixes meu o olhar se apaixonar.
O calabouço escuro de uma dor
É o final feliz de um sonhador
Que um dia descobriu o que é amar.

A ponte levadiça se fechou
E dentro do Castelo, eu percebi
Que em cada verde bosque onde vivi,
Não vi que a liberdade se escondeu.

Amei o teu olhar no meu olhar...
Narcisos é que amam refletir
Seus rostos, mas se o espelho lhes mentir,
Vaidosos, eles tentam se matar.

Se esse teu rei souber dos meus anseios
De amar sua rainha... hás de convir,
A sua espada em mim, há de brandir
E exterminar meus trôpegos enleios.

Mas mesmo assim, teu servo passional
Há de sonhar... Quem há de me impedir?
Que eu morra, vendo o teu olhar sorrir,
...assim, te tornarei mais imortal.

Se sou um camponês, que volte e voe...
Pois quem nasceu no bosque é passarinho
E quando o céu azul é o caminho,
Que eu busque em cada bosque que me abençoe.
= = = = = =

Trova de
LUIZ MONTEZI EVANGELISTA
Santos Dumont/MG

O porco acordou suando,
pois teve um sonho confuso:
- Sonhou que estava morando
com a porca... de um parafuso!
= = = = = = 

Soneto de 
AMILTON MACIEL MONTEIRO
São José dos Campos/SP

Chuva na praia

Se o céu trocar a chuva pelo sol
vai agradar e muito a todos nós
que estamos do arrebol ao arrebol
curtindo a praia à moda de arigós!

Garoa bem cerrada, igual lençol
encobre tudo, mais do que os torós
e faz com que seu manto de aerosol
nos deixe até com jeito de bocós!

Queremos ter um dia ensolarado
com a paisagem linda e o azul do céu,
curtindo o verde mar encapelado!

São Pedro tenha dó do interiorano;
chuva na praia é duro e bem cruel
para um sonho de sol e pouco pano!
= = = = = = 

Trova de
LUIZ OTÁVIO
Rio de Janeiro/RJ, 1916 – 1977, Santos/SP

Lar vazio... o "nada" em tudo...
a vida sem mais porquê...
- E na sala, o piano mudo,
como fala de você!...
= = = = = = 

Soneto de
FLORBELA ESPANCA 
Vila Viçosa, 1894 – 1930, Matosinhos

Versos de Orgulho

O mundo quer-me mal porque ninguém
Tem asas como eu tenho! Porque Deus
Me fez nascer Princesa entre plebeus
Numa torre de orgulho e de desdém!

Porque o meu Reino fica para Além!
Porque trago no olhar os vastos céus,
E os ouros e os clarões são todos meus!
Porque Eu sou Eu e porque Eu sou Alguém!

O mundo! O que é o mundo, ó meu amor?!
O jardim dos meus versos todo em flor,
A seara dos teus beijos, pão bendito,

Meus êxtases, meus sonhos, meus cansaços...
São os teus braços dentro dos meus braços:
Via Láctea fechando o Infinito!...
= = = = = = 

Trova Funerária Cigana

Se além da sentida morte,
o sentimento vigora,
feliz dos restos mortais
que sobre eles se chora.
= = = = = = 

Poemeto de 
SOLANGE COLOMBARA
São Paulo / SP

A madrugada jaz fria
no concreto da cidade
e teu corpo incendiado
aquece os lençóis vazios.
A flor grita, em euforia
nos canteiros agitados;
muda, sente calafrios,
chamas da maturidade.
= = = = = = 

Trova de 
JOSÉ VALDEZ DE CASTRO MOURA
Pindamonhangaba/SP

É machão! Que fortaleza!
Engrossa a voz e se zanga...
Mas, nos surtos de fraqueza,
fala fino e solta a franga !
= = = = = = 

Poema de 
ÓGUI LOURENÇO MAURI
Catanduva/SP

Oração ao despertar
 
Abrindo os olhos, Senhor,
para um dia a mais viver,
vejo a Luz de Vosso amor
abençoando meu ser.
 
Ponho-me assim na frequência
das Graças que do Alto vêm,
pronto a exercer a clemência,
buscando fazer o bem.
 
Que a fé me tire o desânimo,
o rancor, a impaciência;
deixe o coração magnânimo,
facho de amor por essência.
 
Pai, que durante este dia
eu tenha a oportunidade
de sustentar a harmonia
e de fazer caridade.
 
Nesta jornada, que eu veja
a todos como um irmão,
numa atração benfazeja
a promover compreensão.
= = = = = =

Trova de
DODORA GALINARI
Belo Horizonte/MG

Mais que migalha de um pão,
vai o faminto buscar
alguém que lhe dê a mão
que lhe permita... sonhar!
= = = = = = = = =  

Poema de
SILVIAH CARVALHO
Manaus/AM

Caminhos do coração

Quando tudo acaba no coração da gente,
Ficamos em meio a um deserto,
Sem direção, tudo é vazio,
A alma treme exposta ao incerto.

Na ânsia louca de preencher o espaço,
A alma aflita pede socorro,
O corpo balança cai em qualquer braço,
Assim começa tudo de novo,

A falsa esperança mostrou o caminho,
Em seus braços findou-se o medo,
Enganou-se de novo com falsos carinhos.

Seguiu os passos para linda miragem,
Pisou as flores, morreu nos espinhos,
E o amor começa no mesmo caminho.

De novo o deserto,
De novo o incerto,
De novo os espinhos…
= = = = = = = = =  

Trova de
WANDA DE PAULA MOURTHÉ
Belo Horizonte/MG

Com fé no poder divino,
traço meus rumos assim:
jamais permito ao destino
fazer escolhas por mim!
= = = = = = = = =  

Poema de
DOMINGOS FREIRE CARDOSO
Ilhavo/ Portugal

Vem ter comigo, à noite, à minha cama
(Glória Marreiros in "Colar de Pérolas", p. 21)

Vem ter comigo, à noite, à minha cama
Falar-me das saudades que sentiste
Que eu envolvo o teu corpo que despiste
Em lençóis com o nosso monograma.

No calor do aconchego é que se inflama
O excelso dom da vida que consiste
Em fazer singular tudo o que existe
E ao apagado círio dar a chama.

Vem afogar em mim os teus cansaços
Molda-te ao travesseiro dos meus braços
Que a cama é doce, quente e hospitaleira.

Dorme que o maior bem que pode haver
É o de numa só noite alguém viver
Os sonhos todos de uma vida inteira.
= = = = = = = = = 

Trova de
LUIZ CARLOS ABRITTA 
Cataguases/MG, 1935 – 2021, Belo Horizonte/MG

Eu te amo tanto, mas tanto,
que já pus num pedestal
toda glória desse encanto,
que se tornou imortal!
= = = = = = = = =  

Soneto de
AFONSO FREDERICO SCHMIDT
Cubatão/ SP, 1890-1964, São Paulo/SP

Loucura verde

Nas longas noites em que eu me enveneno,
cigarro a espiralar sobre cigarro,
traz-me a saudade o teu perfil bizarro,
que eu não sei mais se é louro ou se é moreno.

Não é bem um perfil, mas um pequeno
alvoroço de névoas, um desgarro
de linhas onde, surpreendido, esbarro
com o teu olhar a me sorrir, sereno...

Depois teu vulto se dilui aos poucos,
mas teus olhos heris, como os dos loucos,
ficam parados, mortos, ante os meus.

— Verdes, curvos cristais, por onde eu vejo
monstros verdes passando num cortejo,
sob um sol verde como os olhos teus.
= = = = = = 

Trova de
JOÃO BATISTA XAVIER OLIVEIRA
Presidente Alves/SP, 1947 – 2025, Bauru/SP

Não há sorriso que emplaque
na comédia desta vida,
se na ironia da claque,
toda verdade é escondida!...
= = = = = = = = =  

Poema de
FILEMON MARTINS
São Paulo/ SP

Caminhada

A caminhada é longa, nós sabemos
que é difícil vencer este caminho,
mas a fé nos ajuda, assim nós cremos,
melhor lutar do que ceder ao espinho.

Não temer o perigo é o que queremos,
porque o mundo se torna tão mesquinho
que às vezes é preciso que busquemos
um punhado de amor e de carinho.

E enquanto a vida nos disser prossiga,
buscaremos obter na fé amiga
os pomos que a vitória nos conduz.

Almas gêmeas seremos pela vida,
unidas pelo amor – missão cumprida
para o destino que nos leva à luz!
= = = = = = = = =  

Trova de
CONCEIÇÃO PARREIRAS ABRITTA 
Crucilândia/MG, 1934 - 2015, Belo Horizonte/MG

Ouço ainda a ressonância
das cantigas que cantei
nas tardes da minha infância
no jardim que eu tanto amei.
= = = = = = = = =  

Poema de
APARECIDO RAIMUNDO DE SOUZA
Vila Velha/ES

Desejos

Queria ser 
o seu “tudo” na vida...
o caminho a percorrer,
os perigos a enfrentar,
o amanhã por nascer,
o sorriso 
do seu olhar.

Queria 
ser o seu 
agora;
o seu melhor 
momento 
de felicidade
e encantamento...

Queria, 
ser também,
a sua, 
esperança.
A sua alegria,
a sua ilusão, 
e fantasia.

Queria, 
finalmente,
estar em seu coração...
ser seu momento
de reflexão
na calma tarde 
refletida lá fora.
= = = = = = 

Trova de
ERCY MARIA MARQUES DE FARIA
Bauru/SP

Renúncia é uma ponte estreita,
onde das extremidades,
pode-se ouvir sempre à espreita,
chorando duas saudades...
= = = = = = = = =

Soneto de
CAROLINA RAMOS
Santos/SP

Desencanto
(Primeiro sonho de amor, 1944)

Personagens esparsos… pela vida
caminhamos, atrás de uma quimera.
Alguns se acham… o amor lhes dá guarida,
juntos mudam o inverno em primavera!

E sonhei que assim fosse… embevecida,
ao dar contigo, como se soubera
que à tua sombra, cálida e querida,
acharia a ventura à minha espera!

– Errei! Tinha as mãos de amores cheias…
E o jovem coração, já saturado,
no fogo das paixões, ainda incendeias,

pensando ser feliz, quem sabe, assim!
Nosso romance, apenas esboçado,
“ sem nunca ter começo, teve fim”. (*)
= = 
(*) Chave de Ouro de Guilherme de Almeida
= = = = = = = = =  = = = = 

Trova de
HELENA DE BARROS BARBOSA MOREIRA
Bauru/SP

Outono, linda estação,
onde todos, neste mundo,
sentem a enorme emoção
de um renovar mais profundo!
= = = = = = = = =  

Cantiga Infantil de Roda
SAMBA LELÊ 

   Samba Lelê tá doente
Tá com a cabeça quebrada
Samba Lelê precisava
É de uma boa lambada

Samba, samba, samba, ô Lelê
Samba, samba, samba, ô Lalá
Samba, samba, samba, ô Lelê
Pisa na barra da saia, ô Lalá
= = = = = = = = =  

Quadra Popular de
AUTOR ANÔNIMO

Abrigo de todo o mundo,
tens, quarto, testemunhado
exaltação do feliz
e queixas do desgraçado.
= = = = = = = = =  

Poema de 
ANTÓNIO BOTTO
Concavada/Abrantes/Portugal (1897 – 1959) Rio de Janeiro/RJ

Tenho a certeza 
De que entre nós tudo acabou. 
- Não há bem que sempre dure, 
E o meu, bem pouco durou. 
Não levantes os teus braços 
Para de novo cingir 
A minha carne de seda; 
- Vou deixar-te, vou partir! 
E se um dia te lembrares 
Dos meus olhos cor de bronze 
E do meu corpo franzino, 
Acalma 
A tua sensualidade 
Bebendo vinho e cantando 
Os versos que te mandei 
naquela tarde cinzenta! 
Adeus! 
Quem fica sofre, bem sei; 
Mas sofre mais quem se ausenta!
= = = = = = 

Trova de
RITA MOURÃO 
Ribeirão Preto/SP

Ousar não é ser valente
ao buscar gloria e poder.
Ousadia é quando a gente
humaniza o nosso ser!
= = = = = =

Carina Bratt (Por tantos caminhos percorridos, um me levou à vida que não vivi)

‘É sempre assim: quando você não está aqui, simplesmente eu me perco de mim...’
Aparecido Raimundo de Souza
EXISTE UM CANTO de terra que o mundo lá fora não conhece, um pedacinho de paraíso que mora inteiro dentro de mim. Fica ali, depois da porteira de madeira torta, onde o vento dança com os galhos da jabuticabeira e os passarinhos fazem reunião todas as manhãs. Esse pedacinho de chão se chama Shangri-Lá (nome dado por Apa*, tirado do livro ‘Horizonte Perdido,’ de James Hilton). Esse pequeno Éden não tem nome nos mapas, mas em compensação tem cheiro forte de café coado na hora e o som mavioso das risadas do caseiro (senhor Valdemar, da esposa dele, dona Diná e da filha adolescente, de 13 anos, a Liliane) e logicamente do Apa. Por falar no Apa, eu o flagro sentado na varanda espaçosa escrevendo as suas crônicas que misturam galinhas, porcos e vacas, cobras, cachorros e uma boa pitada de assombrações.

Esse chão tem calo, tem vida plena. Nele, meus pés sem meias e sapatos distanciados das ruas e avenidas da cidade grande aprenderam o peso da enxada e a leveza de correr descalça atrás das borboletas. Aqui, cada pedrinha que piso me conhece pelo nome. É onde meus sonhos germinaram sob o sol escaldante e floresceram com as chuvas teimosas. Mesmo quando vou embora, e me pego na Borges de Medeiros, de frente para a Lagoa Rodrigo de Freitas, tendo como pano de fundo o Cristo Redentor, por testemunha, levo terra entre os dedos e nas solas dos pés. E nos dias em que o mundo parece grande demais, lembro do silêncio harmonioso do terreiro ao entardecer, quando tudo se acalma, e o céu vira um mar a se perder no meu horizonte de sonhos imorredouros. Shangri-Lá é como se fosse o meu pedacinho de chão. Está esquecido na sua pequenez, em meio do nada, mas em compensação é vasto em lembranças. 

É raiz, é abraço, é casa simples de salas e quartos espaçosos, de mesa farta, de boa comida, de esperança de dias melhores e recordações que não envelhecem. É onde meu nome ecoa com carinho e onde o Apa, com olhos de quem viu a vida inteira, ainda me chama melodicamente de ‘Doce Carina’ como se fosse bênção. Por aqui há um tempo em que o chão não é só terra: é memória. O meu, ‘eu’ se perde escondido, entre morros e silêncios, ao tempo em que se ergue como lembrança viva — feito álbum sem fotografia, onde cada cheiro, cada som, cada cor carrega uma história que pulsa e faz tremer o âmago da alma. E é aqui no terreiro enorme de chão batido, de terra virgem, que o seu Valdemar me ensina sem dar aula. Suas mãos calejadas dizem tudo. 

Não falam de mundo, falam de raízes. ‘A gente nasce pra pertencer’, ele diz, olhando longe, como quem conversa com o tempo. Hoje entendo: mais que um lugar, esse meu pedacinho de chão é ideia — é onde aprendi que existir é ocupar espaço com amor e simplicidade. Aqui, tudo tem alma. Até o fogão à lenha onde a senhora dona Diná mais a filha Liliane preparam o almoço parece respirar junto com a casa. E eu, me sinto menina, me ponho a correr atrás das galinhas e dos pintinhos, como se fosse uma peleja contra o tempo, sem saber que o tempo é o único que nunca perde. Estar aqui com o Apa foi descobrir que algumas distâncias não se medem em quilômetros, mas em saudade. Quando estou fora, seja na Lagoa, de frente para o Cristo, ou em Vila Velha, de frente para o mar, euzinha volto sempre em pensamento. 

Nesse regresso sinto o barulho das águas que descem e cortam a mata fechada. Sinto o cheiro do feijão e do arroz feito na hora, das batatinhas fritas ou da carne assada aquecida no fogo brando, e as gargalhadas que são feitas de som —, nessas horas em que me pilho distanciada, se tornam resplandecidas de eternidade. A gente por aqui aprende que há coisas que nunca se esquece… não porque quer lembrar, mas porque elas decidem morar para sempre dentro da gente, num lugarzinho secreto dentro do coração. Shangri-Lá ou melhor, meu pedacinho de chão é o lugar onde aprendi que a vida não cabe em manual. Descobri que há mais sabedoria num olhar demorado para o horizonte do que nos mais de três mil livros que tenho em minha biblioteca. Concluí que o chão não é só onde se pisa — é onde igualmente a gente volta, mesmo quando se está alguns quilômetros de distância.  

O longe se torna perto e o perto nesses momentos mágicos, renova, revigora, vivifica, engrandece a alma e põem o corpo inteiro em estado de pura levitação. Quando o Apa me leva junto, o meu todo se transforma. O meu âmago tem som de viola e cheiro de pão de forno. Essa localidade fica nas divisas do Espírito Santo, na bucólica e pequena Pequiá, com Minas Gerais, onde o sol madruga com a gente e o tempo corre devagarzinho, como quem não quer atrapalhar a conversa do terreiro. É pedaço de mundo onde o ‘bom dia’ vem com abraço e onde a gente ainda se senta no chão para prosear, com café preto ou com leite e pedaços de bolo de chocolate ou de fubá. O Apa — esse homem de fala mansa e olhos sabidos — costuma dizer que ‘terra boa é aquela que a gente não precisa explicar, só sentir.’ Nessas horas retorno à minha infância em Curitiba. 

Eu menina, mas na mesma sintonia, e o que por aquelas paragens vivi, por certo ficou plantado em mim igual muda de laranja —, a coisa cresceu sem que eu percebesse. Nesse cantinho de chão, imaginem vocês, as galinhas sabem o nome da gente, e o firmamento parece mais perto. É lá que o vento faz confidência com as árvores e a chuva cai com aquele barulhinho que embala lembranças adormecidas. Quando não estou lá, ou melhor dito, quando vou, mesmo que só em pensamento, parece que meu coração muda o passo — anda mais lento, bate mais firme. Tudo por lá tem um quê de eternidade: o cheiro de mato depois da chuva, o eco das risadas do casal de caseiros e da filha, as histórias inventadas da Dona Diná. E o seu Valdemar, sentado debaixo do abacateiro, diz para mim, ‘Cê sabe, Carina, que esse chão não é só terra... é onde as nossas alma descansa.’ E olhem... esse velho senhor de tantos janeiros sabe muito das coisas.

Shangri-Lá, todo ele, é feito de um silêncio que consola, de saudade que canta, de raiz que nunca arreda. Pode o mundo girar ligeiro como for — é lá, distanciado a poucos passos da BR 262 que eu deixo de ser eu, para ser gente. Por lá, não tem elevadores, senhas para abrir portas de apartamento, telefone celular para perturbar. Do mesmo modo, não existem cercas altas, nem relógio de pulso apressado. É caminho de barro vermelho, marcado por patas de cavalos e pegadas de quem vive com o tempo no modo certo: o do sol e do céu. Por aqui, tudo respira junto: as galinhas e os pintinhos que ciscam com agilidade, o velho senhor Valdemar e dona Diná que andam por toda a propriedade, um ao lado do outro, (cada um em seu cavalo) trotando devagar, acenando para os vizinhos com um chapéu surrado, e os ‘causos’ que se contam debaixo do pé de manga, sempre com alguém rindo antes de terminar.

O Apa diz que ‘ninguém precisa ser grande para ser feliz... só tem que caber bem dentro do próprio silêncio.’ E ele cabe. Se amolda na rede, se harmoniza na prosa, se infiltra no cheiro de terra molhada que vem depois da chuva — aguaceiro que lava o mundo e deixa tudo com gosto de recomeço. Nesse ‘pedacinho de tudo dentro do nada em lugar nenhum,’ a simplicidade é luxo. A gente sai de sainha curta, as pernas de fora, ora plantando feijão, ora colhendo verduras, enquanto espera o milho cozinhar e colhe uma fatia de amizade no varal da vizinha (a meio quilômetro da casa principal do Apa). O rádio antigo toca alto na varanda, um sertanejo ‘porreta’, enquanto Dona Diná mais a filha Liliane ajeitam os lençóis recém lavados no varal e conta que o galo Pafúncio fugiu ‘de novo’, em direção a rodovia 262, como se isso fosse notícia importante de jornal. Por aqui tem geladeira, fogão a gás, máquina de lavar, aparelhos de ar condicionado, vários televisores, rede de internet, wi-fi e também se encontram galhos do mais puro afeto espalhados por toda a extensão do terreiro. 

E mesmo quem chega em visita (vindo de Vitória, no Espírito Santo ou retornando de Minas Gerais) e depois vai embora, carrega lembranças do lugar nos olhos: se encanta com os cavalos soltos na pastagem, se apaixona pelo cheiro de esterco fresco, ou morre de rir das conversas quando atravessando a cerca de arame, por vezes, por puro descuido, acabam rasgando a camisa e a calça e o tempo... ah, o tempo sempre quieto, tranquilo e sereno, como deve ser. Por aqui não é só paisagem — é modo de viver. É gente que não quer ser estrela, nem faz questão de aparecer, tampouco ser o tal, somente acender a luz da cozinha para quem chega. É por essas bandas que todos me chamam de ‘a secretária perfeita, a metade faltosa do senhor seu Aparecido’ e fazem isso com um orgulho que vale mais do que meu diploma pendurado sobre o piano da minha sala. Estar aqui, em resumo, é ser chão que não pisa, mas sustenta. Por aqui, com o Apa (e às vezes com a neta dele, a Ellen), é me amoldar no próprio silêncio que diz tanto como explica tão pouco. Por essas bandas, no meio do nada, é reconhecer e eu acolho e percebo que há uma paz harmoniosa em ser inteira, em ser eu mesma, sem precisar me explicar a quem quer que seja. 
= = = = = = = = =  = = = = = = = = =  = = = = 
(*) Apa – Forma como trato o Aparecido, desde quando passei a ser a sua secretária particular.
= = = = = = = = =  = = = = = = = = =  = = = = 
CARINA BRATT nasceu em Curitiba/PR. Trabalha como secretária particular e assessora de imprensa do jornalista Aparecido Raimundo de Souza, em Vila Velha/ES. Escreve crônicas em uma coluna denominada "Danações de Carina" para um site de Portugal.

Fontes:
Texto enviado pela autora.
Imagem criada por Jfeldman com Microsoft Bing  

José Feldman (Um Parque de Diversões não muito divertido)

Era uma tarde ensolarada quando Jorge decidiu levar seus dois filhos, Lucas e Ana, ao parque de diversões. Ele havia prometido isso há semanas, mas, para ser sincero, não estava tão animado quanto eles.

Lucas: — Papai, vamos no trem fantasma primeiro?

Ana: — Não! Eu quero ir na roda-gigante!

Jorge: — (pensando) Roda-gigante… tudo bem. Vamos começar por lá.

Ao chegarem, as crianças ficaram deslumbradas com as luzes e os sons do parque.

Ana: — Olha, papai! A roda-gigante é enorme!

Lucas: — E as montanhas-russas! Vamos nelas depois?

Jorge: — (sorrindo nervosamente) Primeiro a roda-gigante, então. Isso é… tranquilo.

Depois de uma longa fila, eles finalmente subiram na roda-gigante. Enquanto subiam, Lucas estava radiante, mas Jorge começou a suar frio.

Lucas: — Olha, papai! Estamos lá em cima!

Jorge: — (engolindo em seco) Sim, muito alto… Lindo, não é?

Quando chegaram ao topo, Lucas estava extasiado, mas Jorge olhava para baixo, imaginando o que aconteceria se ele caísse.

Lucas: — Papai, olha a vista!

Ana: — (pulando de alegria) É incrível!

Jorge: — (murmurando) Incrível… sim… muito bom…

Assim que desceram, Lucas estava pulando de alegria, enquanto Jorge respirava aliviado, pensando “Nunca mais quero ir na roda-gigante!”

Ana: — Vamos no algodão-doce!

Jorge: — (suspirando) Algodão-doce é bom. Vamos lá!

Na barraca de doces, Jorge pediu um algodão-doce gigante e dois sorvetes.

Vendedor: — Isso vai te custar caro!

Jorge: — Caro?  Porque? É só açúcar!

Vendedor: — Exatamente! E açúcar custa caro!

Enquanto pagava, Lucas e Ana estavam distraídos com um palhaço que fazia malabarismos.

Lucas: — Papai, eu quero aprender a fazer isso!

Jorge: — Primeiro, você precisa de um pouco de prática… e coragem!

Com as guloseimas em mãos, foram para a área de jogos. Jorge decidiu tentar a sorte em um jogo de arremesso de argolas.

Jorge: — Vou ganhar um prêmio para vocês!

Ele arremessou as argolas, mas errou todas.

Ana: — Papai, você não sabe jogar!

Lucas: — Deixa eu tentar!

Lucas pegou as argolas e, com toda a sua força, lançou uma. Acertou em cheio, mas não foi na garrafa, foi na cara do homem da barraca.

Lucas: — O que foi isso? Eu só queria ganhar um urso!

Homem da barraca: — E eu tenho cara de urso?

Jorge: — Desculpe, senhor. Vamos tentar mais uma vez, mas tenta não acertar este senhor… quem sabe?

Após várias tentativas, conseguiram ganhar um pequeno peixinho de pelúcia.

Ana: — Que lindo! Vamos dar um nome a ele!

Lucas: — Que tal “Nemo”?

Ana: — Não, “Peixinho Alegre”!

Lucas: — “Peixinho Alegre” é ótimo! Agora, que tal uma volta na montanha-russa?

Os olhos de Jorge se arregalaram.

Jorge: (pensando) Montanha-russa… será que eu consigo?

Lucas: — Papai, vem com a gente!

Relutante, ele decidiu acompanhar os filhos. Ao subir na montanha-russa, seu coração estava batendo mais rápido do que o trem.

Ana: — Isso vai ser incrível!

Lucas: — Vamos gritar juntos!

Quando o trem começou a descer, Jorge gritou mais alto do que todos, enquanto Lucas e Ana riam.

Jorge: (gritando) Isso é uma loucura!

Ao final do passeio, Lucas e Ana estavam gritando de alegria, mas seu pai estava mais pálido que um avental de médico.

Lucas: — Papai, você gostou?

Jorge: — (ofegante) Gostei… um pouco… talvez… nunca mais!

Ana: — Vamos de novo!

Jorge: — (com um sorriso forçado) Sério????

Lucas: — Que tal outra roda-gigante?

Após mais algumas voltas na roda-gigante, finalmente era hora de ir para casa. As crianças estavam exaustas, mas cheias de alegria.

Jorge: — E então, o que vocês acharam do dia?

Lucas: — Foi o melhor dia de todos!

Ana: — Podemos voltar no próximo fim de semana?

Jorge: — (sorrindo) Claro! Desde que a gente evite a montanha-russa…

Os três riram juntos enquanto caminhavam para o carro, já planejando novas aventuras, e Jorge pensava que, apesar do medo, o sorriso dos filhos valia cada grito e cada centavo gasto.
* * * * * * * * * * * * * * * * * * * * * 
JOSÉ FELDMAN, poeta, trovador, escritor e gestor cultural. Formado em patologia clínica trabalhou por mais de uma década no Hospital das Clínicas. Foi enxadrista, professor, diretor, juiz e organizador de torneios de xadrez a nível nacional durante 24 anos; como diretor cultural organizou apresentações musicais. Morou na capital de São Paulo, em Taboão da Serra/SP, em Curitiba/PR, Ubiratã/PR, Maringá/PR. Consultor educacional junto a alunos e professores do Paraná e São Paulo. Pertence a diversas academias de letras, como Academia Rotary de Letras, Academia Internacional da União Cultural, Confraria Luso-Brasileira de Trovadores, Academia de Letras de Teófilo Otoni, etc, possui os blogs Singrando Horizontes desde 2007, e Pérgola de Textos, um blog com textos de sua autoria, Voo da Gralha Azul (com trovas do mundo). Assina seus escritos por Floresta/PR. Dezenas de premiações em poesias e trovas no Brasil e exterior.
Publicações de sua autoria “Labirintos da vida” (crônicas e contos); “Peripécias de um Jornalista de Fofocas & outros contos” (humor); “35 trovadores em Preto & Branco” (análises); e “Canteiro de trovas”.. No prelo: “Pérgola de textos” (crônicas e contos) e “Asas da poesia”

Fontes: 
José Feldman. Peripécias de um jornalista de fofocas & outros contos. Maringá/PR: Plat.Poe. Biblioteca Voo da Gralha Azul.
Imagem criada por Jfeldman com Microsoft Bing