— Homessa, patrãozinho! Por quê?
— É que não tenho mais estômago, nem intestino, nem fígado, nem nada. Está tudo derretido.
E, descarregando o mau humor na aspereza da voz: — Que péssima andadura tem o diabo deste tordilho!
— Ué! Pois se quiser trocar, “tô pronto”.
— Não. Agora aguento até o fim.
O sertanejo com voz de consolo: — Não é nada, patrãozinho. Mais uns quinhentos metros, e nós encontraremos pouso.
— Pouso e jantar, que meu estômago, apesar de derretido, é um reclamador de marca.
O velho Cesário exibiu parte dos dentes podres, num sorriso sibilino.
Alberto fechou mais a carranca. Estava irritado. Profundamente irritado.
Terceiranista de engenharia, quis mostrar o que lhe valeram os anos de gastos na cidade. E enfaticamente falou ao pai que iria ajudar a delimitação das terras — final de histórica demanda judiciária lá pelas bandas do Laranjinha.
Mas a jornada tinha de ser longa. E feita inteirinha a cavalo. Não se amedrontara, porém. Desacostumado de viagens similares, tinha-se em conta de robusto rapagão. E desde as cinco da manhã estava ali escarranchado sobre os arreios. Só descansara três horas, mais ou menos. Além disso, o pai lhe dera por guia e companheiro o nhô Cesário.
Nhô Cesário era um velho interessante. De cara meio bronzeada de tanto tomar sol, os cabelos começavam a branquejar. Mas a barbicha rala, essa não. Estava-lhe bem mais carregado o matiz negro. De olhos pequenos, viramexendo gaiatamente, sem cessar, tinha enigmático sorriso de profunda ironia.
Consciente de sua ignorância em matéria de letras, a experiência da vida, no entanto, continuamente lhe sugeria inesgotável repertório de máximas. E que máximas!
No começo da viagem, quando Alberto ainda conservava a boa veia, palestraram bastante. O rapaz até rira muito de várias conclusões. Mas, de certa altura em diante, o sertanejo assestara o satirismo contra os “doutores”.
— Você tem muita sabença. Mas um caboclo velho como eu ainda é capaz de dar muita rasteira em gente graúda. Rasteira em briga e rasteira em conversa.
Alberto não gostava dessas coisas. Sentia-se ofendido no amor próprio.
— Patrãozinho. Quer saber de uma coisa? Esse negócio da gente abarrotar muito a cabeça de livros não adianta nada.
E, deslocando assombrosamente o acento do termo “difícil”, acrescentava:
— As “filosofias” lá de vocês podem explicar alguma coisa. Mas no sertão... qu’esperança! Quer ver? Patrãozinho. Me responda ao pé da letra...
E vinha lá o Cesário com um bando de charadísticas histórias.
O rapaz sempre engasgava na resposta, o diabo do caboclo tinha mesmo espírito fino. Sabia armar as redes.
Nhô Cesário, então, gargalhava sibilinicamente:
— Tá vendo? Que adianta tanta sabença?
Os dois viajantes trotaram mais um pouco. Deram, enfim, com o almejado pouso. Palmo a palmo conhecia Cesário tudo aquilo. Por isso, adiantou:
— Nós vamos passar a noite com o povinho do compadre Serafim. Gente boa. Muito sem luxo.
Entraram no terreiro. Várias pessoas. O interior da casa também concorrido.
Cesário estranhou.
— Aí tem coisa...
Apearam. Foram recebidos com grande bondade.
— Tá passeando, Cesário?
— Não. Vou levar este moço lá pro Laranjinha. Mas o que há por aqui?
— Nada. Só a patroa do compadre Serafim que morreu esta madrugada.
— Verdade? Pobre da comadre...
E Cesário desapareceu no interior da casa.
Alberto, meio ressabiado, ficou entre os sertanejos. Mesmo ali de fora pôde divisar, na sala de dentro, a mesa, com quatro velas acesas ao redor de um corpo.
— E esta, agora? — pensou — Será que vou dormir junto à defunta?
Cesário pareceu adivinhar-lhe o pensamento. Voltou.
— Patrãozinho. Já arranjei o pouso pra nós. É ali perto, por detrás daquelas bananeiras. Um compadre meu vai passar a noite inteira, com a família, no guardamento.
Lesto garotinho levou os cavalos. Andaram pouco. A casa não era longe.
Comeram algumas coisas requentadas e o menino aprontou-lhe a cama.
Alberto colocava as mãos espalmadas nos quadris. Parecia-lhe que os ossos se tinham desconjuntado.
Anoitecera. Os animais do brejo enchiam os ares com o coaxar irritante, verdadeira sinfonia para malucos.
Quando se preparavam para dormir, chegou até eles um canto monótono, plangente. Levantou-se o Cesário.
— Você me espere aqui. Vou ajudar a fazer o guardamento pelo menos um pouquinho. Coitada da comadre! Tão boa!...
E já de saída:
— Não feche a porta, hein? Deixe-a encostada, apenas, que volto logo.
Alberto ficou só. A vela tremeluzia pelo vento que passava nas frinchas. E pelas mesmas frinchas do quarto pequeno, cheio de canastras e de arreios, penetrava, como que canalizada, aquela toada contínua, fúnebre, enervante, com ressaibos já de cemitério.
O rapaz não pôde impedir um calafrio na espinha.
— E agora? Será que os caboclos vão passar cantando a noite inteira?
Sentia o organismo esgotado pela viagem. Precisava dormir, mesmo.
— Senão meu esqueleto fica aí pelo caminho... O leito não é lá dos mais agradáveis. Mas pra quem está cansado... E aquele besta do Cesário? Por que inventou de ir ao guardamento? Aquela porta semicerrada, no meio de tanta escuridão... Na verdade. Estou bem arrependido de me ter metido na história. Aturar estas amolações todas!... Só por patriotismo... Ainda bem que a morte de tal mulher atrai a atenção de toda redondeza. Do contrário, algum cangaceiro da zona, por não ter o que fazer, viria visitar cá esta mentalidade, num exame arrochado dos boldos. E isto constituiria aventura nada agradável para mim. Afinal!... Mas que coisa bárbara! Os meus ossos parece que estão no vivo. Vou experimentar dormir com as costas para baixo. Se viro do lado direito, dói-me tudo. Se viro do esquerdo, pior ainda “Quanta amargura para um pobre coração apaixonado!”. Assim. De papo para o ar. Eis a melhor fórmula trigonométrica da ocasião. Na volta, preciso desvendar aos colegas o seno e o cosseno desta malfadada viagem...
E, pouco a pouco, foi adormecendo.
De repente, pareceu-lhe que o vento escancara a porta. Mas, coisa extraordinária, em vez de apagar a vela, caso estivesse acesa, acendeu-a quando apagada.
Estremunhado, transido de pavor, sentou-se rapidamente no catre.
Latejavam-lhe os vasos sanguíneos. Gélido suor corria-lhe as faces. O coração assemelhava a uma catapulta localizada dentro do tórax.
Desenhou-se, então, no umbral, fantasmagórica e horripilante figura de caboclo. Tinha a boca largamente aberta em medonho sorriso, que punha à mostra aguçadas presas. Parte dos cabelos, embebidos não sei em que hediondo fluido, emplastrava-se na testa estreita, quase encobrindo as escleróticas sulcadas de laivos encarnados. A camisa, encardida, desabotoara-se na altura do peito, deixando transparecer negra pelugem.
E o vulto vinha aproximando-se devagarinho, devagarinho, para prolongar a agonia do rapaz.
Os sons que partiam do brejo cessaram em síncope brutal. A melopeia lúgubre do guardamento sofreu também violenta interrupção.
E o vulto, cuja projeção, feita pelo tremular da vela, se tornava cada vez mais alongada na parede de barro, se vinha aproximando, aproximando...
Podia distinguir-se, agora, na altura do ventre, a destra, de palma energicamente encarquilhada no cabo de uma faca, a brilhar, sinistra, no quarto penumbroso.
Alberto, com os olhos esbugalhados, queria gritar. Precisava gritar. Mas estrangulava-lhe a voz na laringe.
E quando o bandido já roçava os bordos do catre com a arma terrível, conseguiu gritar, esganiçadamente:
— Cesário! Cesário!
O sertanejo, entrando nesse momento, sorriu maliciosamente, ao perceber o espalhafatoso acordar do companheiro de viagem.
E enquanto este, treme-tremendo, passava nervosamente a mão pela fronte, para certificar-se de estar acordado... e vivo, o velho Cesário motejou, finalmente:
— Ué! Lá nas suas escolas a gente aprende a ter medo também?...
E preparou-se para dormir.
* * * * * * * * * * * * * * * * * * * * *
Newton Sampaio natural de Tomazina/PR, 1913 e falecido na Lapa, em 1938, foi um médico, ensaísta, escritor e jornalista brasileiro. Newton é considerado um dos mais importantes contistas paranaenses sendo o precursor do conto urbano moderno. Em 1925, saindo da pequena Tomazina foi estudar no Ginásio Paranaense, em Curitiba, e precocemente, passou a lecionar nesta instituição, além de colaborar para alguns jornais da capital paranaense, principalmente o "O Dia". Ao ser admitido na Faculdade Fluminense de Medicina, transferiu-se para a cidade de Niterói. Após formado em Medicina, permanece na capital do país, porém, com a saúde bastante abalada, retornou a Curitiba e em seguida internou-se em um sanatório na cidade da Lapa onde faleceu no dia 12 de julho de 1938. Duas semanas após o seu falecimento, recebeu o Prêmio Contos e Fantasias concedido pela Academia Brasileira de Letras, pelo livro Irmandade. Newton Sampaio pertenceu ao Círculo de Estudos Bandeirantes de Curitiba e como homenagem ao jovem modernista, um dos principais prêmios de contos do Brasil leva o seu nome: Concurso Nacional de Contos Newton Sampaio. Algumas obras: Romance “Trapo”: trechos publicados em jornais e revistas; Novela “Remorso”, 1935; “Cria de alugado”, 1935; Contos: “Irmandade”, 1938, “Contos do Sertão Paranaense”, 1939; “Reportagem de Ideias”: contos incompletos, etc.
Fontes:
Newton Sampaio. Ficções. Secretaria de Estado da Cultura: Biblioteca Pública do Paraná, 2014. Disponível em Domínio Público.
Biografia: https://pt.wikipedia.org/wiki/Newton_Sampaio
Imagem criada por Jfeldman com Microsoft Bing
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