quinta-feira, 7 de agosto de 2025

Asas da Poesia * 66 *


Trova de
ARTHUR THOMAZ
Campinas/SP

Deve-se valorizar
toda forma de inclusão.
Haverá sempre um lugar
para amparar um irmão …
= = = = = =

Poema de
LAIRTON TROVÃO DE ANDRADE
Pinhalão/PR

Cinderela
"Como o lírio entre os espinhos 
é minha amada entre as donzelas."
(Ct. 2.2)

Há tanto desengano que me intriga,
Que, não poucas vezes, me castiga
Sem nenhuma piedade.
Meu refrigério de consolação
E saber onde está meu coração,
Por quem vale a saudade.

Como posso viver sem esse amor?
Só nele encontro todo meu vigor
E paz na solidão.
És a minha princesa desejada,
Encantos raros de afetuosa fada,
Grande amor e paixão.

Busco-te muito! - Almejo teu olhar,
Que, apaixonado, amor quer encontrar
Pra saciar seus desejos...
Do meu caminho clara luz, vem logo!
Não mais demores! Escuta meu rogo!..
- Terás milhões de beijos.

Beijos de cavalheiro apaixonado,
Beijos ternos de um príncipe encantado
Por sua princesa bela.
A vida é breve! Veloz é o tempo!
Em pensamento, eu sempre te contemplo,
Ó minha Cinderela!
= = = = = = = = =  

Trova de
ANA WELTER
Toledo/PR

Que seja o brilho da aurora
Tão intenso em minha vida;
Que haja reflexos agora
E após a minha partida.
= = = = = = = = =  

Soneto de 
ALDO ARRAIS
(Antônio Aldo Arrais Batista Torres de Castro)
Alenquer/PA +

Rio agonizante

Arrastões, malhas finas com pingentes
Depredação total nos rios pequenos
Não mais pescador imprevidente
tantos peixes, com bombas e venenos.

Malhando peixes magros e carnudos
Confinados nos lagos e nos rios
Apanham peixes grandes e miúdos
com tarrafas e redes, nos baixios.

Pingando da folhagem verdejante
O sereno das noites de verão
molha os lábios do Rio Agonizante.

Riozinho condenado, que tristeza
Tuas águas fazem estranha procissão
no triste funeral da natureza.
= = = = = = 

Trova de
PAULO ROBERTO DA SILVA
Caicó/RN

Traçadas pela quimera...
as rugas que hoje pranteio,
são marcas da minha espera
de um amor que nunca veio!
= = = = = = 

Poema de
BENIGNA SAMSELSKI
Belém/PA

Valsa

Pronta para a dança...
Desejando repetir-te;
Na valsa, no tango,
Nos quatro cantos da sala
Do quarto
Da cama,
Do chão
Do tapete
Dos sonhos
E dos voos mais bonitos.
Através do vento
Por entre estrelas,
Rasgando nuvens
No firmamento
Nem sempre firme
Para que possamos passar
Por entre o espaço,
O tempo,
Os sonhos...
E nos agasalharmos
No infinito.
= = = = = = 

Trova de
APARÍCIO FERNANDES
Acari/RN, 1934 – 1996, Rio de Janeiro/RJ

De falhas ninguém se esquiva,
por isso, afirmo sem susto:
há censura construtiva
e muito elogio injusto!
= = = = = = 

Soneto de
EDITH LOBATO
Itaituba/PA

Ânsia do coração

Desponta o dia e meu olhar perdido,
Esmola tua presença à distância.
E pulsa o coração com total ânsia,
Deseja o teu carinho apetecido.

E ao meio dia o tempo enraivecido,
Meu pensamento em doida eflorescência.
Vagando nos escombros da existência,
Num mundo que parece sem sentido.

E dentre sois e luas, vendavais,
A vida corre afoita e sempre traz,
A força que nos faz seguir sonhando.

Colhendo experiência dos meus ais,
Eu não desisto frente aos temporais,
E vou por insistência labutando.
= = = = = = = = = 

Trova de
PROFESSOR GARCIA
Caicó/RN

Cadeira velha!...Esquecida,
sem dono e sem mais ninguém...
Só a saudade atrevida
reclama a ausência de alguém!
= = = = = = 

Poema de 
FILEMON ASSUNÇÃO
Belém/PA

Remorso

Embora, minha mãe, o teu cabelo
Tome a cor da neblina e do luar,
E os teus olhos, nevoentos e sem brilho,
Sejam fontes de pranto a gotejar,
Continuas a ser para teu filho
Essa mesma boníssima criatura,
Pródiga de cuidados e de zelo.
Tua cabeça vai aos poucos branquejando.
Que pena ver tão branco o teu cabelo!
Minha Nossa Senhora da Amargura,
Rainha incomparável do desvelo,
Mais uma vez teu dúlcido perdão:
Para aumentar a minha desventura,
Não sei porque me diz o coração
Que eu sou unicamente o causador
De ficar teu cabelo dessa cor ...
= = = = = = 

Trova de 
WANDA DE PAULA MOURTHÉ
Belo Horizonte/MG

Forçada a escolhas na vida
- teatro que não domino
fui marionete movida
pelos cordéis do destino!
= = = = = = 

Soneto de 
AMILTON MACIEL MONTEIRO
São José dos Campos/SP

Tiziu

Ouvindo um psiu, psiu...
esta manhã bem cedinho,
me acordei com um passarinho
que nem sei de onde surgiu.

Só sei que, dando pulinho,
a cada psiu, o tiziu
em meu peito descobriu
um lugar para o seu ninho...

E ao ver que eu me levanto
só para vê-lo com apreço
em seu negror reluzente,

Ele mais canta e eu me encanto!
E orando a Deus, agradeço
tão mavioso presente!
= = = = = = 

Trova de
ZAÉ JÚNIOR
Botucatu/SP, 1929 – 2020, São Paulo/SP

Se a morte não me intimida
e as tristezas não endosso,
eu só quero, havendo vida,
ser eterno enquanto posso!
= = = = = = 

Hino de
CONTENDA/PR

Descendente de audaz imigrante
Que aportou neste lindo rincão,
Nasce a gente altaneira e gigante
Bandeirantes do agreste sertão.
Hoje os filhos da raça pioneira
Trabalhando com força e ardor,
Honram as cores da nossa bandeira
No trabalho, na fé e no amor.

Estribilho:
Foste vila em setembro
E  cidade em novembro
E teu povo sempre ordeiro
Fez de ti grande celeiro,
Trabalhando sem parar,
Nunca deixa de cantar
Contenda amada, Contenda amada,
Terra por Deus abençoada.

Nestes campos e nestas serras,
Onde a vida feliz se refaz
Veio o filho de outras terras
Encontrar o abrigo e a paz.
E a benção de São João teu padroeiro,
Fez brotar as riquezas do chão.
És orgulho do povo brasileiro
Ó Contenda, querido torrão.
= = = = = = 

Trova de
RITA MOURÃO 
Ribeirão Preto/SP

Resisto, mas me afrouxando,
revogo a minha sentença.
Quem ama mesmo sangrando
perdoa e renova a crença.
= = = = = = 

Recordando Velhas Canções
RECADO 
(samba, 1959) 
Luís Antônio e Djalma Ferreira

Você, errou quando olhou, pra mim
Uma esperança, fez nascer, em mim
Depois levou, pra tão longe de nós
Seu olhar no meu, a sua voz

Você deixou, sem querer deixar
Uma saudade, enorme em seu lugar
Depois nós dois
Cada qual a mercê do seu destino
Você sem mim, eu sem você!

Saudade, meu moleque de recado
Não diga que eu me encontro nesse estado

Você deixou, sem querer deixar
Uma saudade, enorme em seu lugar
Depois nós dois
Cada qual a mercê do seu destino
Você sem mim, eu sem você!
= = = = = = = = = 

Trova de
CAMPOS SALES
Lucélia/SP, 1940 – 2017, São Paulo/SP

Nosso amor foi tão verdade,
que mesmo tendo acabado,
há uma ponte de saudade,
ligando o nosso passado!
= = = = = = = = =

Soneto de 
ANTÔNIO OLIVEIRA PENA
Volta Redonda/RJ

O caminho

Dize a palavra que te encerre o sonho,
aquela que resuma o teu desejo;
evita aquela de pesar medonho,
aquela de lamento malfazejo.

Dize a palavra que te encerre o sonho
com a mesma intensidade do teu beijo!
Evita o murmurar insano, e põe o
teu pensamento a trabalhar, que vejo

que aquilo que dizemos é que é ouvido,
ainda que o façamos em segredo...
— Não há palavra sem repercussão!...

Na estrada em que o homem vai, tão comovido,
seja de sua pátria, ou do degredo,
antes, por ela, andou seu coração!
= = = = = = 

Trova de
A. A. DE ASSIS
Maringá/PR

Como foi, como não foi, 
conte dois que eu conto um... 
Num belo inglês, diz o boi, 
olhando a Lua: moon... moooon...
= = = = = =

Spina de 
SOLANGE COLOMBARA
São Paulo / SP

O Tempo 

Aprendi que sou
dilúvio ou talvez 
brisa, a calmaria

quente, em uma noite fria.
Entendi que a vida usufrui
tudo que o instinto irradia.
Sou um ângulo forte, uma
luz que grita, na fotografia.
= = = = = =

Trova de
MILTON SEBASTIÃO SOUZA
Porto Alegre/RS, 1945 – 2018, Cachoeirinha/RS

Se um pai se entrega à bebida,
ao filho desencaminha.
O mau exemplo é na vida
pior do que erva daninha.
= = = = = = 

Soneto de 
HEGEL PONTES
Juiz de Fora/MG, 1932 – 2012

Devaneio

É noite de natal, estou sozinho
E escuto ela chegando passo a passo;
Entra no quarto e agora, de mansinho,
Afaga minha fonte e meu cansaço.

Ela fala das flores do caminho,
E ainda sem notar meu embaraço,
Fala de velhos sonhos, de carinho,
De um beijo antigo, de um antigo abraço.

E por falar comigo desse jeito,
Vai removendo amargas cicatrizes
E arrancando lembranças do meu peito.

Eu ouço e peço: “Cala-te saudade,
Não se deve dizer aos infelizes
Que algum dia existiu felicidade”.
= = = = = =

Quadra de
IDEL BECKER
Porto Casares/ Argentina, 1910 – 1994, São Paulo/SP

Tenho tosse no cabelo,
dor de dentes no cachaço,
sinto canseira nas unhas,
não vejo nada de um braço.
= = = = = = 

Soneto de
VICENTE DE CARVALHO
Santos/SP, 1866 – 1924

Corrida de amor

Quando partiste, em pranto, descorada
A face, o lábio trêmulo... confesso:
Arrebatou-me um verdadeiro acesso
De raivosa paixão desatinada.

Ia-se nos teus olhos, minha amada,
A luz dos meus; e então, como um possesso,
Quis arrojar-me atrás do trem expresso
E seguir-te correndo pela estrada...

"Nem há dificuldade que não vença
Tão forte amor!" pensei. Ah! como pensa
Errado o vão querer das almas ternas!

Com denodo, atirei-me sobre a linha...
Mas, ao fim de uns três passos, vi que tinha
Para tão grande amor, bem curtas pernas...
= = = = = =

Newton Sampaio (Pesadelo)

— Eu não estou nada contente, ouviu, nhô Cesário? 

— Homessa, patrãozinho! Por quê?

— É que não tenho mais estômago, nem intestino, nem fígado, nem nada. Está tudo derretido.

E, descarregando o mau humor na aspereza da voz: — Que péssima andadura tem o diabo deste tordilho!

— Ué! Pois se quiser trocar, “tô pronto”. 

— Não. Agora aguento até o fim. 

O sertanejo com voz de consolo: — Não é nada, patrãozinho. Mais uns quinhentos metros, e nós encontraremos pouso.

— Pouso e jantar, que meu estômago, apesar de derretido, é um reclamador de marca.

O velho Cesário exibiu parte dos dentes podres, num sorriso sibilino.

Alberto fechou mais a carranca. Estava irritado. Profundamente irritado.

Terceiranista de engenharia, quis mostrar o que lhe valeram os anos de gastos na cidade. E enfaticamente falou ao pai que iria ajudar a delimitação das terras — final de histórica demanda judiciária lá pelas bandas do Laranjinha.

Mas a jornada tinha de ser longa. E feita inteirinha a cavalo. Não se amedrontara, porém. Desacostumado de viagens similares, tinha-se em conta de robusto rapagão. E desde as cinco da manhã estava ali escarranchado sobre os arreios. Só descansara três horas, mais ou menos. Além disso, o pai lhe dera por guia e companheiro o nhô Cesário.

Nhô Cesário era um velho interessante. De cara meio bronzeada de tanto tomar sol, os cabelos começavam a branquejar. Mas a barbicha rala, essa não. Estava-lhe bem mais carregado o matiz negro. De olhos pequenos, viramexendo gaiatamente, sem cessar, tinha enigmático sorriso de profunda ironia.

Consciente de sua ignorância em matéria de letras, a experiência da vida, no entanto, continuamente lhe sugeria inesgotável repertório de máximas. E que máximas!

No começo da viagem, quando Alberto ainda conservava a boa veia, palestraram bastante. O rapaz até rira muito de várias conclusões. Mas, de certa altura em diante, o sertanejo assestara o satirismo contra os “doutores”.

— Você tem muita sabença. Mas um caboclo velho como eu ainda é capaz de dar muita rasteira em gente graúda. Rasteira em briga e rasteira em conversa.

Alberto não gostava dessas coisas. Sentia-se ofendido no amor próprio.

— Patrãozinho. Quer saber de uma coisa? Esse negócio da gente abarrotar muito a cabeça de livros não adianta nada.

E, deslocando assombrosamente o acento do termo “difícil”, acrescentava:

— As “filosofias” lá de vocês podem explicar alguma coisa. Mas no sertão... qu’esperança! Quer ver? Patrãozinho. Me responda ao pé da letra...

E vinha lá o Cesário com um bando de charadísticas histórias.

O rapaz sempre engasgava na resposta, o diabo do caboclo tinha mesmo espírito fino. Sabia armar as redes.

Nhô Cesário, então, gargalhava sibilinicamente:

— Tá vendo? Que adianta tanta sabença?

Os dois viajantes trotaram mais um pouco. Deram, enfim, com o almejado pouso. Palmo a palmo conhecia Cesário tudo aquilo. Por isso, adiantou:

— Nós vamos passar a noite com o povinho do compadre Serafim. Gente boa. Muito sem luxo.

Entraram no terreiro. Várias pessoas. O interior da casa também concorrido.

Cesário estranhou.

— Aí tem coisa...

Apearam. Foram recebidos com grande bondade.

— Tá passeando, Cesário?

— Não. Vou levar este moço lá pro Laranjinha. Mas o que há por aqui?

— Nada. Só a patroa do compadre Serafim que morreu esta madrugada.

— Verdade? Pobre da comadre...

E Cesário desapareceu no interior da casa.

Alberto, meio ressabiado, ficou entre os sertanejos. Mesmo ali de fora pôde divisar, na sala de dentro, a mesa, com quatro velas acesas ao redor de um corpo.

— E esta, agora? — pensou — Será que vou dormir junto à defunta?

Cesário pareceu adivinhar-lhe o pensamento. Voltou.

— Patrãozinho. Já arranjei o pouso pra nós. É ali perto, por detrás daquelas bananeiras. Um compadre meu vai passar a noite inteira, com a família, no guardamento.

Lesto garotinho levou os cavalos. Andaram pouco. A casa não era longe.

Comeram algumas coisas requentadas e o menino aprontou-lhe a cama.

Alberto colocava as mãos espalmadas nos quadris. Parecia-lhe que os ossos se tinham desconjuntado.

Anoitecera. Os animais do brejo enchiam os ares com o coaxar irritante, verdadeira sinfonia para malucos.

Quando se preparavam para dormir, chegou até eles um canto monótono, plangente. Levantou-se o Cesário.

— Você me espere aqui. Vou ajudar a fazer o guardamento pelo menos um pouquinho. Coitada da comadre! Tão boa!...

E já de saída:

— Não feche a porta, hein? Deixe-a encostada, apenas, que volto logo.

Alberto ficou só. A vela tremeluzia pelo vento que passava nas frinchas. E pelas mesmas frinchas do quarto pequeno, cheio de canastras e de arreios, penetrava, como que canalizada, aquela toada contínua, fúnebre, enervante, com ressaibos já de cemitério.

O rapaz não pôde impedir um calafrio na espinha.

— E agora? Será que os caboclos vão passar cantando a noite inteira?

Sentia o organismo esgotado pela viagem. Precisava dormir, mesmo.

— Senão meu esqueleto fica aí pelo caminho... O leito não é lá dos mais agradáveis. Mas pra quem está cansado... E aquele besta do Cesário? Por que inventou de ir ao guardamento? Aquela porta semicerrada, no meio de tanta escuridão... Na verdade. Estou bem arrependido de me ter metido na história. Aturar estas amolações todas!... Só por patriotismo... Ainda bem que a morte de tal mulher atrai a atenção de toda redondeza. Do contrário, algum cangaceiro da zona, por não ter o que fazer, viria visitar cá esta mentalidade, num exame arrochado dos boldos. E isto constituiria aventura nada agradável para mim. Afinal!... Mas que coisa bárbara! Os meus ossos parece que estão no vivo. Vou experimentar dormir com as costas para baixo. Se viro do lado direito, dói-me tudo. Se viro do esquerdo, pior ainda “Quanta amargura para um pobre coração apaixonado!”. Assim. De papo para o ar. Eis a melhor fórmula trigonométrica da ocasião. Na volta, preciso desvendar aos colegas o seno e o cosseno desta malfadada viagem...

E, pouco a pouco, foi adormecendo.

De repente, pareceu-lhe que o vento escancara a porta. Mas, coisa extraordinária, em vez de apagar a vela, caso estivesse acesa, acendeu-a quando apagada.

Estremunhado, transido de pavor, sentou-se rapidamente no catre.

Latejavam-lhe os vasos sanguíneos. Gélido suor corria-lhe as faces. O coração assemelhava a uma catapulta localizada dentro do tórax.

Desenhou-se, então, no umbral, fantasmagórica e horripilante figura de caboclo. Tinha a boca largamente aberta em medonho sorriso, que punha à mostra aguçadas presas. Parte dos cabelos, embebidos não sei em que hediondo fluido, emplastrava-se na testa estreita, quase encobrindo as escleróticas sulcadas de laivos encarnados. A camisa, encardida, desabotoara-se na altura do peito, deixando transparecer negra pelugem.

E o vulto vinha aproximando-se devagarinho, devagarinho, para prolongar a agonia do rapaz.

Os sons que partiam do brejo cessaram em síncope brutal. A melopeia lúgubre do guardamento sofreu também violenta interrupção.

E o vulto, cuja projeção, feita pelo tremular da vela, se tornava cada vez mais alongada na parede de barro, se vinha aproximando, aproximando...

Podia distinguir-se, agora, na altura do ventre, a destra, de palma energicamente encarquilhada no cabo de uma faca, a brilhar, sinistra, no quarto penumbroso.

Alberto, com os olhos esbugalhados, queria gritar. Precisava gritar. Mas estrangulava-lhe a voz na laringe.

E quando o bandido já roçava os bordos do catre com a arma terrível, conseguiu gritar, esganiçadamente:

— Cesário! Cesário!

O sertanejo, entrando nesse momento, sorriu maliciosamente, ao perceber o espalhafatoso acordar do companheiro de viagem.

E enquanto este, treme-tremendo, passava nervosamente a mão pela fronte, para certificar-se de estar acordado... e vivo, o velho Cesário motejou, finalmente:

— Ué! Lá nas suas escolas a gente aprende a ter medo também?... 

E preparou-se para dormir.
* * * * * * * * * * * * * * * * * * * * * 
Newton Sampaio natural de Tomazina/PR, 1913 e falecido na Lapa, em 1938,  foi um médico, ensaísta, escritor e jornalista brasileiro. Newton é considerado um dos mais importantes contistas paranaenses sendo o precursor do conto urbano moderno. Em 1925, saindo da pequena Tomazina foi estudar no Ginásio Paranaense, em Curitiba, e precocemente, passou a lecionar nesta instituição, além de colaborar para alguns jornais da capital paranaense, principalmente o "O Dia". Ao ser admitido na Faculdade Fluminense de Medicina, transferiu-se para a cidade de Niterói. Após formado em Medicina, permanece na capital do país, porém, com a saúde bastante abalada, retornou a Curitiba e em seguida internou-se em um sanatório na cidade da Lapa onde faleceu no dia 12 de julho de 1938. Duas semanas após o seu falecimento, recebeu o Prêmio Contos e Fantasias concedido pela Academia Brasileira de Letras, pelo livro Irmandade. Newton Sampaio pertenceu ao Círculo de Estudos Bandeirantes de Curitiba e como homenagem ao jovem modernista, um dos principais prêmios de contos do Brasil leva o seu nome: Concurso Nacional de Contos Newton Sampaio. Algumas obras:  Romance “Trapo”: trechos publicados em jornais e revistas; Novela “Remorso”, 1935; “Cria de alugado”, 1935; Contos: “Irmandade”, 1938, “Contos do Sertão Paranaense”, 1939; “Reportagem de Ideias”: contos incompletos, etc.

Fontes:
Newton Sampaio. Ficções. Secretaria de Estado da Cultura: Biblioteca Pública do Paraná, 2014. Disponível em Domínio Público.
Biografia: https://pt.wikipedia.org/wiki/Newton_Sampaio
Imagem criada por Jfeldman com Microsoft Bing 

José Luís Boromelo (O fogo de uma paixão)

Ela passava quase todo dia naquela rua. Altiva, séria, jamais olhava para os lados. Logo sumia na esquina, fazendo delirar de frenesi os mais exaltados. Jurema era a perfeição em forma de mulher. Morena de vinte e poucos anos, esguia, olhos translúcidos como esmeralda, cabelos até a cintura, pele bronzeada e lábios carnudos, sempre bem delineados por batom vermelho. Diziam que era casada, mas nunca fora vista acompanhada. Mas de uma coisa, todos tinham certeza: o felizardo que a tivesse em seus braços, seria contemplado com a companhia tal qual uma deusa na terra.

Assim pensava também o Temístocles. Profissional da construção civil há muitos anos, mãos calejadas, semblante marcado pelo sol quente; Seu único defeito era apreciar sobejamente os atributos naturais do sexo oposto. Pior ainda, tinha por hábito dirigir insinuações pejorativas às que porventura, tivessem a infelicidade de ser o alvo de seu comportamento inconveniente. Dizia ser um amante irresistível, ao estilo do galã Clark Gable, que em sua época estraçalhava os corações femininos. Por diversas vezes fora aconselhado pelos colegas de profissão a deixar de lado esse mau costume, porém o galanteador insistia em constranger aquelas que julgava “disponíveis”.

Eis que um belo dia Jurema acabou abordada pelo cortejador. Foi direto ao assunto, certificando-se que suas intenções ficaram bem claras. Arrematou dizendo que das mulheres que provaram de sua “caloria” nenhuma havia se queixado, pois nunca “negara fogo”. “Hoje à noite lhe darei uma resposta”, foi o que o ouviu. Comentou com todos os colegas da obra, antecipava os detalhes do fato, fazendo rir os mais tímidos. “Hoje vai ter festa”, pensava ele, enquanto se barbeava para o tão esperado encontro. Vestiu-se com a melhor roupa, experimentou os sapatos novos, exagerou na colônia importada, antevendo o grande encontro.

Chegou mais cedo ao local combinado, solicitando uma mesa em ambiente reservado. “Tenho que impressioná-la”, pensava ele. Foi quando sentiu uma fisgada na nuca, que queimava como ferro em brasa. Um golpe certeiro de um pequeno objeto metálico o jogou ao chão. Sem entender o que se passava, levou o terceiro golpe, que dilacerou a orelha. Seu algoz não lhe deu trégua, deixando-o prostrado, sem esboçar reação. Conseguiu reconhecer a bela Jurema ao lado do marido, que empunhava um açoite com elos metálicos, daí o motivo de tamanho estrago no galã de “meia-tigela”. Voltou para casa rasgado e humilhado, não sem antes fazer uma parada obrigatória no pronto atendimento, para providenciais remendos na epiderme e cartilagens diversas. Recebeu uma dosagem generosa de analgésicos, a fim de acalmar definitivamente o “ardor calorífico” da refrega merecida.

Desse dia em diante, nosso herói não se encanta mais com as formas curvilíneas e esvoaçantes das moçoilas, sejam elas loiras, ruivas ou morenas. Prefere concentrar sua atenção no serviço, mesmo porque ainda sente, vez ou outra, um calor inexplicável a lhe percorrer o corpo, quando ouve um certo ruído metálico. Realmente, existem paixões inesquecíveis.
* * * * * * * * * * * * * * * * * * * * * 
José Luiz Boromelo, é de Marialva/PR, policial rodoviário aposentado, escritor, cronista e agricultor, colaborador da Orquestra Municipal Raiz Sertaneja.

Fontes:
Recanto das Letras do autor. 17.05.2015
https://www.recantodasletras.com.br/cronicas/5245359
Imagem criada por Jfeldman com Microsoft Bing  

Carlos Leite Ribeiro (Dois Amigos)

Depois de aposentado, o Ricardo vagueava pelas ruas da Baixa de Lisboa, para passar o tempo e recordar antigos episódios da sua vida. Nesse dia, por casualidade, passou pelo café onde seu amigo Alberto passava as tardes a ler o jornal. Entrou no café e dirigiu-se logo para a mesa onde seu amigo estava.

– Olá, Alberto, como vai essa saúde? Passas o tempo aqui sentado e daqui a pouco nem andar consegues!

– Tinha o pressentimento que algo desagradável me ia acontecer hoje. Não sabia o que era, mas com certeza que eras tu que me ias aparecer! Já me vai correr a tarde mal. Tu que andas sempre a vaguear pela Baixa, hoje deu-te para entrares aqui neste café posso perguntar porquê?

– Porque? Porque tinha saudades tuas e queria cumprimentar o meu querido amigo, Alberto.

– Querido amigo? Por favor não me ofendas com esse termo tão nobre, quando é verdadeiro!

– É o que eu sou: nobre e verdadeiro. E vim cá dizer-te que ontem vi a tua querida Lena ainda te recordas dela?

– És um verdadeiro finório (cara de pau). E o que eu tenho com isso?

– Como foi a tua amada pensei que ficasses feliz por eu a ter encontrado.

– És mesmo impossível. És sempre o mesmo amigo da onça!

– Não sei porquê, pois até na altura tive a gentileza de te apresentar a ela, o que ficaste (na altura) muito contente. Pois um avião (moça linda e apetecível não aparecia todos os dias)!

– Já conheço essa conversa tua há muito, grande (nem te quero classificar). Mas em que falaram. De mim?

– De ti não! Falamos das nossas anteriores passagens pela vida. Mas vou contar-te tudo tim-tim por tim-tim!

Ontem fui dar um passeio até ao Terreiro do Paço e junto à muralha que separa o rio Tejo, vi ao longe um vulto de mulher que não me era desconhecida. Aproximei-me dela e qual o meu espanto que reconheci a Madalena. A nossa conhecida Lena!

– Olha quem encontro aqui, a minha querida e inesquecível amiga Lena!

– O que é que fazes aqui? Já pensava que tivesses morrido (o que não seria nenhuma pena?).

– Passei casualmente por aqui e mesmo de costas reconheci-te. Ainda hoje és um avião, embora diferente do que conheci há anos, é certo respondeu-lhe ele.

– Para ti é tudo casualmente, grande finório (cara de pau). Deves estar a recordar as malandrices que fizeste na outra Banda (margem esquerda do Tejo), principalmente em Cacilhas e em Almada?

– Recordo-me daquela vez em que me convidaste a jantar no Ginjal (Cacilhas); não me recordo bem em que restaurante. Seria no Floresta?

– Nesse não foi de certeza, pois era muito caro para a minha bolsa. Foi no restaurante Elias.

– Recordo-me. Até notei que tu eras freguês habitual daquele restaurante, pois o garçom piscou-te os olhos e levou-nos para a tua mesa preferida, junto de uma janela que se via o Tejo e grande parte de Lisboa.

– Lena, tu tens boa memória! Claro que tinha ido algumas vezes a esse restaurante ? com os meus pais.

– Deixa-me rir ahahah. Que ingênua eu era nessa altura. Depois do jantar, quiseste que eu fosse a uma pequena praia que ficava mais adiante do Gihjal, onde tu dizias que tinhas pescado muito, com uma armação de dois varões de ferro; fazias um triângulo com a linha e colocavas um sininho; depois lançavas a linha ao mar e quando o peixe picava, o sininho tocava? Cara de Pau.

– Lena, a minha intenção era ensinar-te a arte de pescar, nada mais?

– Ricardo, quase que estou a acreditar (só quase) é que depois desse ensinamento, passaste à pesca em alto mar, e longe do razoável:

– Parece que me estou a recordar, sim. Sabes que esta memória já não é a que foi!

– Cara de Pau! Perdemos com a conversa o último barco para Lisboa, pois quando chegámos ao cais de embarque, já o ferry Boat tinha partida há mais de uma hora. E ficámos no teu decrépito e furado Volkswagen, a quem tu chamavas carochinha (no Brasil fusca).

– Querida amiga, e ficámos muito bem, até às 6.30 horas quando do primeiro ferry para Lisboa.

– Tinha ido ao cabeleireiro fazer uns caracoizinhos e quando abri a janela do meu quarto para minha mãe não saber a que horas tinha regressado, assustei-me a ver-me ao espelho, com o cabelo todo desgrenhado (em desalinho), além das nódoas de óleo que manchavam o meu vestido novo, apanhadas na tua praia, onde prometeste dar-me uma lição de pesca.

– Felizmente, tinhas deixado a janela de teu quarto só encostada. Eras previdente?

– Só deixava a janela encostada quando saía contigo.

– E com os outros?

– Não comento. Mais tarde, houve outro dia que me convidaste a ir a um baile, não em Cacilhas mas em Almada. Não me recordo o nome da localidade que dizias haver um grande baile.

– Parece-me que estou a recordar-me. Jantámos no restaurante Gonçalves.

– Onde também eras conhecido?

– Nesse dia não fomos para a praia que tinha óleo na areia. Subimos até ao castelo de Almada e depois descemos uma descida muito íngreme até quase ao Olho de Boi, onde descarregavam os barcos de pesca e onde me tinha dito haver um grande baile (mentiram-me).

– Ricardo, não sei por que não acredito, nem na altura acreditei. Mas continua?

– Deve estar recordada que a estrada estava em reparação do lado do mar (direito) e tivemos que fazer inversão de marcha, e subir o que tínhamos descido. Quando chegámos junto das muralhas do castelo?

– Num recanto que devias conhecer muito bem? Continua.

– O carochinha avariou e tivemos que passar lá a noite. Dessa vez não te ensinei a pescar lembraste?

– Se me lembro, dessa tão estranha avaria, pois às 6 horas da manhã, o carro estava bom para apanharmos o ferry às 6.30 horas. Há avarias assim e tu eras mestre em inventá-las!

– Pelo menos, nessa manhã não chegaste à casa com o vestido com nódoas de óleo.

– De óleo vegetal, não, mas com nódoas negras (hematoma) nas pernas, principalmente nos joelhos.

– Nesse dia também tive problemas com minha mãe por causa das calças?

– Ricardo, por falar em tua mãe, ela era uma formidável cúmplice tua. Atendia muito bem os meus telefonemas, mas tu nunca estavas em casa; ou tinhas saído em serviço da empresa, ou tinhas saída não sabia para onde e por fim disse-me que tinhas ido fim-de-semana com a tua noiva. Perguntei-lhe quem era tua noiva o que ela me respondeu com grande descontração: não sei, são tantas!. Cara de Pau, da pior espécie!

– Mas tu gostavas do cara de pau!!! rssss

– Na nossa última saída te fintei e muito bem recordaste?

– Não. São fatos passados há tanto tempo?

– Vou-te recordar: Combinámos ir a um baile no Estoril. Desta vez não fomos para a outra margem, que ainda não havia a ponte 25 de abril (estava em começo de construção). Jantámos em Oeiras e depois seguimos para o Estoril. No regresso e como habitualmente, o teu carochinha avariou perto da Parede. Enquanto tu fingias que estavas a consertar o carro, eu sorrateiramente, procurei a casa de uma amiga, enfermeira no Sanatório da Parede. Faço ideia da rua cara depois de teres esperado horas e eu não ter aparecido! kakakaka

– Estou a recordar, estou. Esperei uma hora ou hora e meia antes de regressar a casa de meus pais. Imagina quão furioso eu estava, sua cara de pau, cafajeste, pilantra, etc… Confesso que não achei graça nenhuma com a tua atitude.

– Estás muito abrasileirado, deves ter visto já muitas telenovelas!

– Pois é, minha amiga, hoje a juventude tem mais liberdade, mas no nosso tempo fazíamos tudo que eles fazem, mas tínhamos que ser mais engenhocas.

– E nesse aspecto, Ricardo, tu eras um grande engenheiro: Até talvez merecesses o Prémio Nobel.

– Estamos aqui parados e podíamos ir a qualquer lado?

– Eu vou ao Barreiro.

– Então podemos ir ao Barreiro?

– Tu é que sabes, mas na gare meu filho e meu neto estão à minha espera?

– Certo. Podíamos marcar um encontro para outro dia?

– Talvez para o próximo século! Passa bem e se possível, com mais juízo nessa cabeça oca!

– Então, inté?

– E foi assim amigo Alberto a minha conversa com a nossa Lena! Na próxima vez que nos encontrarmos, pago eu os cafés.

– Não disse que te pagava o café!

– Até à próxima, amigo!

FIM
(este texto é pura ficção, qualquer situação, lugar ou pessoas é pura coincidência)
* * * * * * * * * * * * * * * * * * * * * 
CARLOS LEITE RIBEIRO, jornalista e escritor, nasceu em Lisboa, em 1937. Radicou-se em 1967, na Marinha Grande (concelho de Leiria). Trabalhou no Jornal do Comércio, em Lisboa, escrevendo “Nomes e Figuras que deram seu nome às ruas de Lisboa”. Editou "Uma Semana no Rio de Janeiro" e "As Horas do Destino" e muitos ebooks. Cursou Educação Física (1962), História (Politécnico 1964) com Mestrado em 1976, Geografia (Politécnico 1967) com Mestrado em 1984. Idealizador do Portal CEN - "Cá Estamos Nós", fundado em 1998. Membro Honorário e de Honra da ALMECE - Academia de Letras Municipais do Estado do Ceará (Brasil). Faleceu em 2018.

Fonte:
Texto enviado pelo autor. 17.03.2013.
Imagem criada por Jfeldman com Microsoft Bing  

Folclore Grego (Gykia, a heroína de Chersonesos)

 Lamachos era um rico morador da cidade de Chersonesos. Era tão rico que seu gado tinha uma porta exclusiva para entrar na cidade. Ele tinha uma filha única, de nome Gykia, ela era a mais linda e inteligente da cidade, tendo o seu pai se esmerado em educá-la com os mais sábios professores. Gykia era uma boa moça e queria de alguma forma ser útil pra a sua cidade. Entretanto, na província de Bósporo reinava Asandros, que louco de ganância queria a cidade de Chersonesos para si. Ele tinha tentando tomar à força uma vez, só que falhou. Então armou o plano de casar seu filho com Gykia, assim quando Lamacho morresse o filho dele governaria e depois seu neto.

Tudo aconteceu de acordo com o plano, Gykia casou com o filho de Asandros. Mas havia uma cláusula que dizia que se o marido saísse da cidade para encontrar o pai, seria executado. Gykia amava o marido sinceramente. Ele parecia ser uma boa pessoa, um fiel cidadão e era cheio de boas ações. Só que Lamachos morreu dois anos mais tarde e o Conselho da cidade decidiu entregar o governo não para o seu marido, mas para Zethos, um cidadão de destaque da cidade. O marido não desistiu, e ficou esperando uma oportunidade para tomar o poder.

No aniversário da morte de seu pai, Gykia organizou uma comemoração, regada a muita comida e bebida. O marido dela resolveu usar um dos aniversários de morte do sogro para tomar a cidade. Ele enviou um escravo dedicado a Panticapaion (a capital do reino do Bósforo) com uma mensagem que ele tinha encontrado uma maneira de tomar o controle sobre Chersonesos.

O pai enviou navios a seu filho com guerreiros dentro, como se eles estivessem trazendo presentes para a festa. Os barcos bósforos chegaram na Baía de Símbolos, e o filho de Asandros enviou cavalos para eles. Eles foram à cidade, entregaram os presentes, e alguns ficaram escondidos na casa de Gykia, enquanto os remadores partiam dando a impressão de que eles tinham partido.

Os escravos que o filho de Asandros trouxe de Bósporos o ajudaram, dizendo para todos que ele tinha deixado a cidade e dando comida e água para eles. Tudo foi feito secretamente. Gykia não suspeitava o que estava acontecendo em sua própria casa.

O prazo para o cumprimento do plano era o terceiro aniversário da morte de Lamachos. Por dois anos ele reuniu em segredo cerca de duzentos guerreiros de Bósporos. O filho de Asandros supôs que no dia da comemoração todos iriam divertir-se até tarde da noite e ficar totalmente bêbados, e quando dormissem, ele levaria seus guerreiros para realizar seu ato traiçoeiro. Nessa altura, a frota de seu pai estaria pronta para o ataque contra Chersonesos.

A trama foi descoberta por acidente, isso porque uma das servas de Gykia estava de castigo em um aposento, e sem querer deixou cair um grampo, quando foi pegá-lo no chão, ela viu os soldados escondidos no andar de baixo. Imediatamente ele pediu para alguém trazer sua patroa e falou a ela o que estava acontecendo. Gykia não teve dúvidas, o amor pela cidade era maior que qualquer coisa, e decidiu matar a todos, inclusive seu próprio marido, que acabou por ser um traidor.

Ela pediu a seus parentes para reunir os mais valentes cidadãos. Ela fez eles jurarem que se tudo fosse verdade, depois da morte dela, ela deveria ser enterrada dentro do perímetro da cidade. Eles juraram cumprir seu desejo, Gykia satisfeita revelou a traição do marido. Quando eles ouviram a estória, congelaram de medo.

Ela combinou que as comemorações deveriam ocorrer de maneira normal. Todos beberiam, dançariam, cantariam, mas de maneira comedida e sem esquecer o perigo. Deveriam também juntar mato em suas casas. Assim, quando a festa terminasse, os portões seriam fechados e todos iram para suas casas, pegariam os galhos e folhas e iriam a casa dela, colocariam tudo lá e ateariam fogo, assim que ela saísse, é claro. Cuidando para que ninguém mais saísse vivo de lá.

Como havia sido combinado, no dia do memorial de Lamachos, os habitantes da cidade se divertiram durante todo o dia nas ruas. Gykia generosamente distribuiu vinho na festa em sua casa, entreteve seu marido, mas ela mesma não bebeu e ordenou o mesmo a sua servas. Gykia bebia água de uma tigela púrpura que parecia vinho.

Quando a noite chegou, e os cidadãos retornaram à suas casas, Gykia convidou seu marido para dormir. Ele concordou prontamente. Ela ordenou que os portões e entradas fossem fechadas, como de costume, e imediatamente enviou servas de confiança para levar roupas, ouro e decorações diversas para fora da casa.

Tudo ficou silencioso na casa e o marido bêbado adormeceu, então Gykia saiu do quarto, fechou a porta atrás de si, e chamando de servas, deixou a casa. Na rua, ela disse que ateassem fogo em cada lado da sua casa. Logo a casa estava envolta em chamas. Os guerreiros bósforos tentaram fugir, mas foram imediatamente mortos. Em um instante todos os conspiradores foram executados.

Desta forma Gykia manteve Chersonesos fora do perigo, os cidadãos ergueram duas estátuas em sua homenagem.

Quando, mais tarde, Gykia lembrou o conselho da cidade sobre a sua promessa de enterrá-la dentro do perímetro da cidade, alguns ficaram contra dizendo que a necrópole de Chersonesos estava longe das muralhas da cidade, e eles nunca enterravam os mortos em bairros residenciais. Em vez disso, eles propuseram reconstruir a casa dela, em troca.

Ela não desistiu. Alguns anos mais tarde a sábio Gykia decidiu testar se seus concidadãos iriam manter sua palavra na prática. Ela disse a seus escravos para espalhar a notícia de que ela tinha morrido. Todos ficaram tristes. As pessoas lotaram a praça da casa de Gykia. Seus escravos e parentes prepararam o corpo para o rito fúnebre.

Após uma longa reunião da anciãos eles decidiram não infringir o rito antigo dos gregos, e sim quebrar o juramento, e ordenaram levar o corpo dela para fora da cidade e para enterrá-la na necrópole.

Quando o cortejo parou diante do túmulo aberto, Gykia levantou-se do sarcófago, e começou a acusar os cidadãos amargamente. Os anciãos ficaram envergonhados e juraram pela terceira vez realizar o seu desejo. Ela foi autorizada a encontrar um local de sepultamento dentro da cidade, que foi marcado com um busto em cobre dourado da heroína.

E aqueles que quisessem admirar a beleza dela, poderiam escovar o pó do busto de cobre e ler na placa a estória de seu feito corajoso.

Fontes:
http://www.chersonesos.org/?p=history_tls1&l=eng . Tradução do grego por N. Khrapunov
Imagem criada com Microsoft Bing 

Raquel Amélia dos Santos (Ler com a Alma)

 Ler é muito mais do que simplesmente decifrar o código escrito. A leitura plena e eficaz de qualquer tipo de texto, só acontece quando o que se dispõe a fazê-lo, assume-se participante do objeto da leitura no sentido de utilizar mais do que seus conhecimentos sobre o código.

É uma atividade complexa e carregada de possibilidades de criação, interação e interpretação entre indivíduos e contextos.

O leitor aplica ao ato de ler, conhecimentos linguísticos e gramaticais, que são internalizados durante sua trajetória e vivência com a linguagem escrita.

Além desses conhecimentos, ainda pode e deve contar com a imaginação, o raciocínio, a vontade, e uma flexibilidade suficiente para deslocar-se para o ponto de vista do escritor.

Esse deslocamento acontece mesmo que seja inconsciente e provisório.

Vale lembrar também, que nem escritor, nem leitor estão neutros diante de uma produção textual, seja ela literária ou não.

Escritor e leitor são portadores de uma história e de uma bagagem cultural que acabam por determinar e porque não dizer, personalizar os modos de leitura, interpretação e aplicação do objeto lido.

Saber-se participante de uma produção textual, pode ser um bom caminho na construção da necessária flexibilidade que deve permear o ato de ler.

Por meio da leitura é possível conhecer novas e antigas idéias, rever, elaborar e reelaborar pensamentos, informações e conhecimentos.

O que é escrito em papel, numa tela de computador ou em qualquer outro portador, não traz consigo uma verdade absoluta e irrevogável. Um texto escrito, comporta apenas parte de modos de pensar, parte de uma filosofia, parte de crenças e até parte da imaginação e fantasia de alguém.

O texto escrito, tem suas limitações. A linguagem escrita não pode contar com todos os elementos contextuais, com gestos, expressões faciais, movimentos ou expressões corporais. Apesar de seus limites, mobiliza tanto o que escreve como o que lê o que foi escrito.

Leitor e escritor fazem uma espécie de trabalho em equipe. E neste trabalho, há constante movimento.

O leitor lê, pode ler, reler, fazer anotações, pensar, comparar, parar a leitura, continuar e utilizar-se dela de várias maneiras. O escritor também conta a mobilidade de reelaborar, rever, repensar e reeditar suas produções. E em muitos casos, o faz em decorrência do retorno e interação gerados pelo público alvo de seu trabalho.

A mobilidade da qual escritor e leitor utilizam-se, promove aprendizagem mútua e aciona mais que a habilidade de reconhecer o código escrito e decifrá-lo, pois a relação que se estabelece entre esses agentes, é permeada de elementos pessoais, emocionais, sociais, intelectuais, culturais e até afetivos.

Vendo por este ângulo, pode-se afirmar que é possivel escrever e ler com a alma. Ler com a alma é ler com a plenitude do ser. O ser é o que se é de fato, a essência. O que há de permanente na personalidade ou no caráter de cada pessoa.

É certo que há um estar sendo, uma parte de atitudes e pensamentos de cada pessoa, que é transitória. É o ser é quem decide sobre a parte transitória que há em cada um.

Pode ser que a leitura seja em alguns momentos motivada pelo ser, em outros momentos pelo estar sendo e as vezes pelos dois.

Um tema sobre o qual algum escritor decide escrever pode servir como alimento do ser ou do estar sendo.

Na perspectiva de alimentar a alma ou o intelecto por exemplo, a leitura é sempre motivada pelo desejo ou necessidade de cada pessoa, que são regidos pelo Ser.

No entanto, a necessidade por si só, nem sempre tem força para acionar o desejo. Já o desejo, atua com mais eficácia sobre o ser que o porta. Este atua mesmo não havendo necessidade.

O desejo é mais poderoso que a necessidade em muitos casos. Uma pessoa tem a necessidade de alimentar-se, mas pode não sentir fome ou vontade de comer. Neste caso, a necessidade pura e simples, não é suficiente para provocar a ação. Já o desejo, busca seus interesses, mesmo não havendo uma real necessidade.

A leitura é uma atividade que muitas vezes é tratada como mera necessidade. Como em muitos casos nos processos de ensino/aprendizagem na educação formal, em que a ação de ler é tratada unicamente objetivando a apreensão de conteúdos propostos em uma disciplina que compõe o currículo.

O desejo de ler, nem sempre apoia-se em razões bem claras e definidas. Mas também pode surgir por várias razões. Até por “razões mágicas”, afirma Rubem Alves: “Ler é um ritual antropofágico. (…) A antropofagia não se fazia por razões alimentares.

Fazia-se por razões mágicas. Quem come a carne do sacrificado se apropria das virtudes que moravam no seu corpo. (…) Cada leitura é um ritual mágico.”

Desejo e necessidade, nem sempre andam juntos. Mas são elementos impulsionadores da alma humana.

Quando criança deleitava-me com uma professora que lia histórias em voz alta para a turma. A leitura feita por ela, continha aspectos singulares como, entonação de voz, ritmo e uma musicalidade que lhe eram próprias, fez toda diferença para minha formação como leitora.

Uma de minhas irmãs, Rute, lia para mim e para meus irmãos. Lia trechos da bíblia, histórias do livro “As mil e uma noites” e outros. Ela também me ensinou a ler. Quando entrei para a escola, já sabia ler.

Sua voz, postura e visão sobre os textos lidos nunca saíram da minha memória. Ela despertou em mim disposição e desejos por “rituais mágicos”, que são realizados através da poder proporcionado pela leitura.

Hoje assumo a ação de ler como necessidade movida pelo desejo.

Aprender a ler com a alma, é mais que uma necessidade, é ler com a plenitude do ser, tomando emprestado o desejo da alma de alguém, aliando-o ao próprio desejo. Pode ser forma mais flexível de viver e estar no mundo.

Fontes:
Texto enviado pela autora em 30.09.2011.
Imagem criada por Jfeldman com Microsoft Bing  

Luís Fernando Veríssimo (O Flagelo do Vestibular)

Não tenho curso superior. O que eu sei foi a vida que em ensinou, e como eu não prestava muita atenção e faltava muito, aprendi pouco. Sei o essencial, que é amarrar os sapatos, algumas tabuadas e como distinguir um bom beaujolais pelo rótulo. E tenho um certo jeito – como comprova este exemplo – para usar frases entre travessões, o que me garante o sustento. No caso de alguma dúvida maior, recorro ao bom senso. Que sempre me responde da mesma maneira: “Olha na enciclopédia pô!”

Este naco da autobiografia é apenas para dizer que nunca tive que passar pelo martírio de um vestibular. É uma experiência que jamais vou ter, como a dor do parto. Mas isso não impede que todos os anos, por essa época, eu sofra com o padecimento de amigos que se submetem à terrível prova, ou até de estranhos que vejo pelos jornais chegando um minuto atrasados, tendo insolações e tonturas, roendo metade do lápis durante o exame e no fim olhando para o infinito com aquele ar de sobrevivente da Marcha da Morte de Batan. Enfim, os flagelados do unificado. Só lhes posso oferecer a minha simpatia. Como ofereci a uma conhecida nossa que este ano esteve no inferno.

– Calma, calma. Você pode parar de roer as unhas. O pior já passou.

– Não consigo. Vou levar duas semanas para me acalmar.

– Bom, então roa as suas próprias unhas. Essas são as minhas.

– Ah, desculpe. Foi terrível. A incerteza, as noites sem sono. Eu estava de um jeito que até calmante me excitava, e quando conseguia dormir sonhava com escolhas múltiplas:

A) fracasso,
B) vexame,
C) desilusão

E acordava gritando: Nenhuma destas, nenhuma destas. Foi horrível.

– Só não compreendo porque você inventou de fazer vestibular a esta altura da vida…

– Mas quem é que fez vestibular? Foi meu filho! E o cretino está na praia, enquanto eu fico aqui, à beira do colapso.

Mãe de vestibulando. Os casos mais dolorosos. O inconsciente do filho às vezes nem tá: diz pra coroa que cravou coluna do meio em tudo e está matematicamente garantido. E ela ali, desdobrando fila por fila o gabarito. Não haveria um jeito mais humano de fazer a seleção para as universidades? Por exemplo, largar todos os candidatos no ponto mais remoto da floresta amazônica e os que voltassem à civilização estariam automaticamente classificados? Afinal, o Brasil precisa de desbravadores. E as mães dos reprovados, quando indagadas sobre a sorte do filho, poderiam enxugar uma lágrima e dizer com altivez:

– Ele foi um dos que não voltaram…

Em vez de:

– É um burro!

Os candidatos à Engenharia no Rio de Janeiro poderiam ser postos a trabalhar no Metrô dia e noite, quem pedisse água seria desclassificado. O Estado acabaria com poucos engenheiros novos - aliás, uma segurança para a população – mas as obras do Metrô progrediriam como nunca. Na direção errada, mas que diabo!

O certo é que do jeito que está não pode continuar. E ainda por cima, há os cursinhos pré-vestibulares. Em São Paulo os cursinhos estão usando helicópteros na guerra pela preferência dos vestibulandos que terão que repetir tudo no ano que vem. Daí para napalm, o bombardeio estratégico, o desembarque anfíbio e, pior, uma visita do Kissinger para negociar a paz, é um pulo. Em São Paulo há cursinhos tão grandes que o professor, para se comunicar com as filas de trás, tem que usar o correio. Se todos os alunos de cursinhos no centro de São Paulo saíssem para rua ao mesmo tempo, ia ter gente caindo no mar em Santos. O vestibular virou indústria. E os robôs que saem das usinas pré-vestibulares só tem dois movimentos: marcar cruzinha e rezar.

O filho da nossa nervosa amiga chegou em casa meio pessimista com uma das suas provas:

– Sei não. Acho que tubulei. O Inglês não estava mole.

– Mas meu filho, hoje não era inglês! Era Física e Matemática!

– Oba! Então acho que fui bem!

* * * * * * * * * * * * * * * * * * * * * 
LUÍS FERNANDO VERÍSSIMO é um escritor, humorista, cartunista, tradutor, roteirista, dramaturgo e romancista brasileiro. Conhecido por suas crônicas de humor e sátiras de costumes, publicadas em diversos jornais e revistas, também se destacou como autor de romances, contos e quadrinhos. Sua obra é caracterizada pelo uso da ironia e do humor para abordar temas sociais e cotidianos. Nascido em Porto Alegre/RS em 1936, foi criado em uma família com forte influência literária, sendo filho de Érico Veríssimo, um dos maiores escritores brasileiros. Alfabetizado e com o ensino médio cursado nos Estados Unidos, onde sua família residiu por algum tempo devido ao trabalho de seu pai. Trabalhou como jornalista, tradutor, redator publicitário, músico e, principalmente, como escritor, cronista e cartunista. É um dos autores mais populares do Brasil, com mais de 80 títulos publicados e traduzido para diversos países. Suas obras mais famosas incluem "O Analista de Bagé", "Comédias da Vida Privada" e "O Clube dos Anjos". Criou personagens emblemáticos como a Velhinha de Taubaté, Ed Mort e As Cobras, que se tornaram ícones da cultura popular brasileira. Recebeu diversos prêmios literários, incluindo o Prêmio Juca Pato e a distinção de Intelectual do Ano pela União Brasileira de Escritores (UBE). 
Sua obra é marcada pela utilização do humor, da ironia e da crítica social para abordar temas do cotidiano e da sociedade brasileira. Utiliza uma linguagem acessível e inteligente, que consegue transmitir mensagens complexas de forma leve e divertida. Suas crônicas e charges são amplamente reconhecidas pela sua capacidade de retratar a vida urbana, os costumes e as nuances do comportamento humano. Também se destacou como romancista e contista, explorando diferentes temas e abordagens em suas obras. É considerado um dos maiores cronistas e humoristas da literatura brasileira contemporânea, deixando um legado de personagens e histórias que continuam a encantar leitores de todas as idades.

Fontes:
Luís Fernando Veríssimo. Ed Mort e outras histórias. Publicado em 1979.
Imagem criada por Jfeldman com Microsoft Bing