sábado, 9 de agosto de 2025

Lourenço do Rosário ( Conto Moçambicano: O Coelho e o Macaco)

O coelho e o macaco eram muito amigos.

Um dia, o coelho disse: “Amigo, vamos abrir uma machamba de amendoim”. 

“Está bem”, respondeu o macaco.

Havia muita fome na povoação.

Quando começaram a abrir o campo, o macaco ria, saltava, brincava e trabalhava pouco. O coelho tirou o capim, cavou, semeou quase toda a machamba praticamente sozinho.

Chegou a altura da colheita. O coelho tirava o amendoim e punha no saco. O macaco tirava-o e comia imediatamente.

O coelho ficou furioso e resolveu castigar o companheiro porque se continuassem daquela forma, estava a ver que não tiraria qualquer proveito do seu trabalho. Aproveitou então uma altura em que o macaco estava a saborear uma grande quantidade de amendoim e enterrou-lhe a cauda de forma a que não pudesse tirá-la.

Na altura de largar o trabalho, disse o coelho: “Ó amigo macaco, hoje tenho para o jantar amendoim com carne. Aparece”.

O coelho fingiu que tinha muita pressa e foi-se embora logo daí. O macaco tentou também ir embora e viu que estava preso pela cauda.

O macaco gritou chamando por ajuda. Passado algum tempo, apareceu o coelho todo ofegante. 

“O que foi, amigo macaco?” 

“Tira-me daqui”, pediu o macaco. 

O coelho fingiu que o ajudava, fez algum esforço. 

De repente, desistiu: “Paciência, amigo macaco, não há nada a fazer, eu tenho pressa, o jantar está à espera. A cauda está muito enterrada, só cortando-a, senão ficas aí toda a noite e nunca se sabe quando é que passa por aqui o leopardo…” 

Quando o macaco ouviu o nome do leopardo, pôs-se aos gritos e suplicou ao coelho que lhe cortasse a cauda. 

“Prefiro viver sem a cauda do que ser comido…” 

Era o que o coelho queria. Cortou-lhe a cauda e levou-a consigo.

Quando chegou em sua casa, coseu-a juntamente com o amendoim que ia oferecer ao macaco. Este, apesar das dores, como era comilão, apresentou-se em casa do coelho para o jantar.

Começou a comer com sofreguidão até verificar que aquela carne não passava da sua própria cauda. Ficou furioso, quis agredir o coelho; este fugiu. 

A lamentar-se com as dores, foi-se embora.

Desde esse dia que o macaco e o coelho não cultivam juntos.

* * * * * * * * * * * * * * * * * * * * * 
LOURENÇO JOAQUIM DA COSTA ROSÁRIO nasceu em Marromeu, província de Sofala, em 1949, quando Moçambique ainda era uma colônia portuguesa. Quando tinha oito anos de idade, emigrou para Malawi, onde prosseguiu os estudos. Continuou seus estudos em Luabo, na Zambézia. Entre 1970 e 1973, cumpriu o serviço militar sob o regime português. E depois foi para Maputo, onde começou a lecionar na Escola Preparatória do Noroeste. Com a Revolução de 25 de Abril de 1974, foi para Portugal, lecionar em uma Escola Secundária, onde depois da proclamação da Independência foi nomeado presidente do Conselho Diretivo da escola, de 1975 a 1977, sendo transferido para Universidade Eduardo Mondlane (UEM). Era ainda um simples bacharel até 1979. Depois, foi para o Centro 8 de Março, onde foi diretor até 1982. Concluiu a licenciatura (em Línguas e Literaturas Modernas, variante Português/Francês) em Portugal, Lecionou na Universidade Nova de Lisboa. Em 1987, fez doutoramento em Literaturas Africanas, pela Universidade de Coimbra, em Portugal. No ano seguinte, regressa ao país. A convite do Presidente da República, Joaquim Chissano, foi presidente do Fundo Bibliotecário da Língua Portuguesa (FBLP) e criou o Instituto Superior Politécnico e Universitário (ISPU), que hoje chama-se Universidade A Politécnica, uma das maiores instituições privadas de ensino em Moçambique. Lecionou em várias instituições de ensino superior de renome internacional como, Universidade de Hamburgo, na Alemanha; Universidade de Milão, em Itália; Universidade Federal de Minas Gerais, no Brasil; e Universidade Nova de Lisboa. É Reitor da Universidade Politécnica e atualmente preside o Fórum Nacional do Mecanismo Africano de Revisão de Pares (MARP).

Fontes:
Lourenço Joaquim da Costa Rosário. Contos moçambicanos do vale do Zambeze. Moçambique: Editora Texto/Leya, 2001.
Biografia = https://biografia.co.mz/?p=1694
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Folclore Indígena (Por quê é Triste o Jaburu)

 (Mito indígena de animais encantados do Mato Grosso) 

Nessa hora dúbia que ainda é dia e ainda não é noite, uma imensa tristeza se apodera dessa ave esquisita. E o jaburu, num dormitar profundo, nem sequer agita o longo pescoço, parecendo então um empalhado espécime de museu.

Nas grandes noites de cheia, move as asas poderosas e caminha de um lado para outro, lento e meditativo, como a montar guarda, naquela lagoa que é, desde há muito tempo, o seu pouso, a sua morada.

Vive sempre só e quando acontece aparecer um intruso, abre-lhe guerra e luta ferozmente.

Na hora crepuscular o seu voo nos faz lembrar velhas imagens de contos de fadas.

Quem viajar pelos sertões de Mato Grosso, mormente pela zona sul, há de encontrar à margem dos rios ou à beira das lagoas, uma ave cinzento-escura, pernas grossas, triste e esquisita, que tem, constantemente, a cabeça voltada para a terra…

É o jaburu.. .

Todas as tardes, ali escorado ele está numa perna só, tristonho, cabisbaixo.

Sobre a tristeza mística dessa ave há a seguinte versão: 

Mandi, indiozinho guerreiro, quebrando os preceitos sagrados da sua religião, deixou-se um dia apaixonar perdidamente por Ituna a mais formosa mulher da tribo de Morembi.

O pai queria fazê-lo Cacique, mas para isso era preciso, conforme dizia o pajé, que o filho não se casasse enquanto não passassem cinco luas, depois de ter recebido do pai o tacape de guerreiro e o diadema de morubixaba. Mas Mandi, que já havia consultado as águas da Lagoa Sagrada, sabia perfeitamente que a primeira lua muito longe estava ainda.

Por isso não podia esperar. Antes perder a soberania de Cacique do que ficar sem o amor daquela que Tupã mandara do céu, para alegria de seu coração na terra.

E Mandi não esperou, nem tão pouco ouviu as súplicas angustiosas do pai velhinho e doente…

Carin revoltou-se e, num momento de ódio, rogou uma praga terrível contra o filho.

Todas as tardes inevitavelmente, Mandi ia encontrar-se com Ituna à beira da Lagoa Sagrada e ali ficava, horas a fio, a contemplar a majestade de Febo, que se ocultava, aos poucos, na curva ensanguentada do horizonte.

Mas nunca estavam sós.

Uma ave de plumagem cinzento-escura, pescoço encolhido, descansando sobre uma das pernas, vinha fazer-lhes companhia.

E os dois se divertiam a jogar migalhas de fruta adocicada ou miolo saboroso de quipiá para aquela ave mansa e esquisita apanhar com o seu bico grosso e forte. E em pouco tempo eram três que todas as tardes vinham admirar à beira da lagoa, a sublimidade da luta do dia contra as trevas.. .

Ficara tão manso o jaburu que vinha tirar-lhes da palma da mão a fruta adocicada ou o miolo saboroso.

Uma tarde, porém, umas nuvens densas e pesadas conglobaram-se para os lados do poente, com prenúncio de borrasca iminente.

Na tribo dos Araés ia uma balbúrdia medonha. Carin, o valente e destemido guerreiro cacique, estava agonizante. As sombras daquela noite sem alvorada começavam a cair, lentamente sobre sua cabeça.

De quando em quando, pavoroso e medonho, um relâmpago rasgava o céu. O pajé, mãos cruzadas, cabeça caída sobre o peito rezava baixinho. Mulheres e crianças imitavam-no.

Quando percebeu que era chegada a hora, Carin chamou Mandi e entregou-lhe o tacape de guerreiro e o diadema de morubixaba.

Lá fora coroando o novo tuxana, um grupo de aráes dançava ao som de música fúnebre…

Mandi beijou a fronte bronzeada do pai e retirou-se. Na frente da palafita, mãos em conchas, sem dar atenção aos que saudavam, olhou embaixo e viu, por entre o clarão de um relâmpago, o vulto de Ituna que o esperava.

Não pode conter-se. Atirou para um lado os troféus sagrados que há pouco o pai lhe dera e desceu a encosta em desabalada carreira. Lá estava Ituna a formosa virgem que Tupã mandara do céu para a alegria do seu coração na terra.

Mandi contornou-lhe o corpinho delgado com seus braços longos e vigorosos e ia forçá-la para satisfação do seu incontido e lúbrico desejo, quando um raio, rasgando as trevas, veio cair-lhe em plena cabeça, fulminando-o juntamente com a índia virgem. 

No outro dia, já muito tarde, o pajé encontrou-os caídos sobre a relva úmida, os corpos estreitamente unidos, num abraço impressionante — o abraço da morte.

Lá estava também, meio idiotizado, o cismarento jaburu. Nessa mesma tarde um grupo de aráes abria duas covas nas terras de Pendejã, o heroico tuxana, pai de Carin, que ali tombara um dia em defesa da tribo varado pelas balas dos guerreiros brancos. Uma delas para receber o corpo do bravo cacique: a outra, aberta ao lado da Lagoa Sagrada para sepultar os dois jovens que tombaram fulminados, ante os olhos irados de Tupã, na hora da consumação do pecado…

O jaburu, tristonho e imóvel, tudo presenciara sem nada compreender.

E quando a última pá de terra caiu sobre a cova dos dois pecadores, ele voou e partiu.

Mas todas as tardes voltava.

Vinha esperar como de costume que alguém lhe atirasse a fruta adocicada ou o miolo saboroso.
Mas em vão. Nunca mais os viu voltar, alegres como dantes!

Daí por diante, o jaburu tornou-se mais triste ainda; as penas foram caindo aos pouco e a cabeça vergou sob o peso tremendo da dor… Mas ele não desanimava. Todas as tardes, ali estava descansando sobre uma das pernas em cima daquele amontoado de terra, os olhos cravados no chão, na esperança de ver surgir, debaixo dos seus pés, aquelas duas almas amigas.

Fontes:
Regina Lacerda (seleção). Estórias e Lendas de Goiás e Mato Grosso.
Imagem = http://www.flickr.com. 14.12.2013

Antonio Carlos de Faria (Cardápio Existencial)

– E se a vida for como um cardápio?

A pergunta pegou Rosinha de surpresa. Ela levantou os olhos do menu e se deparou com o marido em estado reflexivo.

– Ora, Alfredo, deixe de filosofar e escolha logo o seu prato. 

Os dois haviam saído para jantar e estavam na varanda do Bar Lagoa, de onde se pode ver um cantinho de céu e o Redentor.

– Rosinha, pense nas consequências do que estou dizendo. Se a vida for como um cardápio, nós talvez estejamos escolhendo errado. No lugar da buchada de bode em que nossas vidas se transformaram, poderíamos nos deliciar com escargots. Experimentar sabores novos, mais sofisticados…

– Por que a vida seria como um cardápio, Alfredo? Tenha dó.

– E por que não seria? Ninguém sabe de fato o que é a vida, portanto qualquer acepção é válida, até prova em contrário.

– Benhê, acorda. Ninguém vai aparecer para servir o seu cardápio imaginário. Na vida, a gente tem que ir buscar. A vida é mais parecida com um restaurante a quilo, self-service, entende?

– Boa imagem. Concordo com o restaurante a quilo. É assim para quase todo mundo. Mas quando evoluímos um pouco, chega a hora em que podemos nos servir a la carte. Rosinha, nós estamos nesse nível. Podemos fazer opções mais ousadas. 

– Alfredo, se você está querendo aventuras, variar o arroz com feijão, seja claro. Não me venha com essa conversa de cardápio existencial. Além disso, se a nossa vida virou uma buchada de bode, com quem você pensa experimentar essa coisa gosmenta, o tal escargot? 

– Querida, não reduza minhas ideias a uma trivial variação gastronômica. Minha hipótese, caso correta, tem implicações metafísicas. Se a vida for como um cardápio, do outro lado teria que existir o Grand Chef, o criador do menu. 

– Alfredo, fofo, agora você viajou na maionese. É o cúmulo querer reconstruir o imaginário religioso baseado no funcionamento de um restaurante. Só falta você dizer que nesse seu céu, os anjos são os garçons! 

Nesse momento, dois chopes desceram sobre a mesa. Flutuaram entre as mãos alvas, quase diáfanas, de um dos velhos garçons do Bar Lagoa.

Alfredo e Rosinha trocaram olhares de espanto e antes que pudessem dizer que ainda não haviam pedido nada, o garçom falou com voz grave:

– Cortesia da casa. Já olharam o cardápio?

Fontes:
https://danilocafe.wordpress.com/tag/cronicas/ 14.10.2012.
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Clarice Lispector (Águas do mar)

 Aí está ele, o mar, a mais ininteligível das existências não humanas. E aqui está a mulher, de pé na praia, o mais ininteligível dos seres vivos. Como o ser humano fez um dia uma pergunta sobre si mesmo, tornou-se o mais ininteligível dos seres vivos. Ela e o mar.

Só poderia haver um encontro de seus mistérios se um se entregasse ao outro: a entrega de dois mundos incognoscíveis feita com a confiança com que se entregariam duas compreensões.

Ela olha o mar, é o que pode fazer. Ele só lhe é delimitado pela linha do horizonte, isto é, pela sua incapacidade humana de ver a curvatura da terra.

São seis horas da manhã. Só um cão livre hesita na praia, um cão negro. Por que é que um cão é tão livre? Porque ele é o mistério vivo que não se indaga. A mulher hesita porque vai entrar.

Seu corpo se consola com sua própria exiguidade em relação à vastidão do mar porque é a exiguidade do corpo que o permite manter-se quente e é essa exiguidade que a torna pobre e livre gente, com sua parte de liberdade de cão nas areias. Esse corpo entrará no ilimitado frio que sem raiva ruge no silêncio das seis horas. A mulher não está sabendo: mas está cumprindo uma coragem. Com a praia vazia nessa hora da manhã, ela não tem o exemplo de outros humanos que transformam a entrada no mar em um simples jogo leviano de viver. Ela está sozinha. O mar salgado não é sozinho porque é salgado e grande, e isso é uma realização. Nessa hora ela se conhece menos ainda do que conhece o mar. Sua coragem é a de, não se conhecendo, no entanto, prosseguir. É fatal não se conhecer, e não se conhecer exige coragem.

Vai entrando. A água salgada é de um frio que lhe arrepia em ritual as pernas. Mas uma alegria fatal – a alegria é uma fatalidade – já a tomou, embora nem lhe ocorra sorrir. Pelo contrário, está muito séria. O cheiro é de uma maresia estonteante que a desperta de seus mais adormecidos sonos seculares. E agora ela está alerta, mesmo sem pensar, como um caçador está alerta sem pensar. A mulher é agora uma compacta e uma leve e uma aguda – e abre caminho na gelidez que, líquida, se opõe a ela, e no entanto a deixa entrar, como no amor em que a oposição pode ser um pedido.

O caminho lento aumenta sua coragem secreta. E de repente ela se deixa cobrir pela primeira onda. O sal, o iodo, tudo líquido, deixam-na por uns instantes cega, toda escorrendo – espantada de pé, fertilizada.

Agora o frio se transforma em frígido. Avançando, ela abre o mar pelo meio. Já não precisa da coragem, agora já é antiga no ritual. Abaixa a cabeça dentro do brilho do mar, e retira uma cabeleira que sai escorrendo toda sobre os olhos salgados que ardem. Brinca com a mão na água, pausada, os cabelos ao sol quase imediatamente já estão se endurecendo de sal. Com a concha das mãos faz o que sempre fez no mar, e com a altivez dos que nunca darão explicação nem a eles mesmos: com a concha das mãos cheias de água, bebe em goles grandes bons.

E era isso o que lhe estava faltando: o mar por dentro como o líquido espesso de um homem. Agora ela está toda igual a si mesma. A garganta alimentada se constringe pelo sal, os olhos avermelham-se pelo sal secado pelo sol, as ondas suaves lhe batem e voltam pois ela é um anteparo compacto.

Mergulha de novo, de novo bebe, mais água, agora sem sofreguidão pois não precisa mais. Ela é a amante que sabe que terá tudo de novo. O sol se abre mais e arrepia-a ao secá-la, ela mergulha de novo: está cada vez menos sôfrega e menos aguda. Agora sabe o que quer. Quer ficar de pé parada no mar. Assim fica, pois. Como contra os costados de um navio, a água bate, volta, bate. A mulher não recebe transmissões. Não precisa de comunicação.

Depois caminha dentro da água de volta à praia. Não está caminhando sobre as águas – ah nunca faria isso depois que há milênios já andaram sobre as águas – mas ninguém lhe tira isso: caminhar dentro das águas. Às vezes o mar lhe opõe resistência puxando-a com força para trás, mas então a proa da mulher avança um pouco mais dura e áspera.

E agora pisa na areia. Sabe que está brilhando de água, e sal e sol. Mesmo que o esqueça daqui a uns minutos, nunca poderá perder tudo isso. E sabe de algum modo obscuro que seus cabelos escorridos são de náufrago. Porque sabe – sabe que fez um perigo. Um perigo tão antigo quanto o ser humano.
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Clarice Lispector (Chaya Pinkhasovna Lispector) nasceu em 10 de dezembro de 1920, em Tchetchelnik, na Ucrânia. Emigrou com sua família para o Brasil em 1922, estabelecendo-se no Recife, Pernambuco. Casou-se com Maury Gurgel Valente, um diplomata brasileiro, em 1943, que conhecera na UFRJ quando ambos cursavam Direito. Tornou-se uma das mais importantes escritoras brasileiras, conhecida por sua prosa inovadora e introspectiva. Sua obra explora a condição humana, a subjetividade e a vida cotidiana, muitas vezes através de narrativas que desafiam as convenções literárias. Entre suas obras mais notáveis estão "A Paixão Segundo G.H.", "A Hora da Estrela" e "Perto do Coração Selvagem". Sua escrita é marcada por uma intensa profundidade psicológica e uma sensibilidade singular. Clarice faleceu em 9 de dezembro de 1977, no Rio de Janeiro, devido a um câncer de ovário metastático. Sua influência sobre a literatura brasileira e mundial permanece significativa, e ela é lembrada como uma voz única e poderosa na literatura do século XX.

Fontes:
Clarice Lispector. A descoberta do mundo. Textos publicados originalmente no Jornal do Brasil de 1967 a 1973.
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Como funcionam os jornais

 texto por Bob Wilson*

Introdução

Os jornais foram a primeira forma de comunicação de banda larga. Muito antes dos computadores, televisão, rádio, telefones e telégrafo, os jornais eram a maneira mais barata e eficiente de atingir as massas populares com notícias, comentários e anúncios. Os jornais, desde o tempo em que eram apenas uma grande folha de papel impressa à mão, têm sido um meio de comunicação de acesso aleatório, pois os leitores podem passar fácil e rapidamente pelas diferentes seções de um jornal, voltando a elas dias ou semanas depois. Além disso, pelo fato de seu "software" possuir uma linguagem comum, ele é universal e eterno. Por exemplo, um jornal publicado antes da Revolução Americana pode ser lido hoje como foi lido em 1775.

Neste artigo, vamos dar uma olhada nos bastidores de um complexo negócio em crescimento, que é a administração de um jornal, usando o The Herald-Sun (em inglês), de Durham, na Carolina do Norte, como exemplo real. Vamos examinar como as notícias são cobertas e descritas, como chegam ao jornal, como o jornal chega na gráfica e finalmente é distribuído, chegando às bancas e à sua casa. Também daremos uma olhada no jornal como uma empresa e discutiremos como ocorre o equilíbrio entre lucratividade e as funções de prestação de serviço e comunicação na sociedade.

O papel do jornal nos Estados Unidos tem mudado com o passar do tempo?

Embora o jornal de 1775 ainda seja legível, existe uma grande diferença entre ele e seu equivalente moderno. Em 1775, o jornal era publicado sob os caprichos de um governo colonial britânico, com pouca tolerância para a livre expressão de ideias, principalmente ideias políticas radicais. A Primeira Emenda à Constituição (em inglês), parte da Declaração dos Direitos dos Cidadãos Americanos (Bill of Rights) adicionada à Constituição Americana em 1791, proibiu leis que restringissem a liberdade de imprensa. Em uma era de reis e imperadores, isso significou um enorme passo rumo à liberdade individual e uma afronta à autoridade do Estado.

Os princípios e práticas que regem os jornais de hoje (objetividade jornalística, escrita concisa, notícias nacionais e internacionais) surgiram depois da Guerra Civil americana. Esta era a Idade de Ouro dos jornais diários, não somente pelo grande número de jornais então em circulação, mas também pelos lucros que eles geravam, permitindo a magnatas da imprensa como William Randolph Hearst e Joseph Pulitzer (em inglês) viverem em um patamar suntuoso. Nunca antes os jornais haviam exercido tanta influência na política e na cultura americana. Hearst, cujo império, ou melhor, parte dele, ainda existe até os dias de hoje, era tão poderoso que foi responsabilizado (ou culpado) pela explosão da guerra contra a Espanha em 1898.

O crescimento do telejornalismo

Com o crescimento do telejornalismo na década de 60, os jornais se confrontaram com seu primeiro grande concorrente. Hoje, a ABC News (em inglês) declara que mais americanos ficam informados através da ABC do que de qualquer outra fonte - e isso é provavelmente verdade. Os 1600 jornais diários americanos continuam servindo milhões de leitores, mas não são mais o meio de comunicação de massa dominante do país. O que mais se questiona nesse inicio de século é como fazer para sobreviver e progredir na indústria do jornal com a cultura atual mais sintonizada nos meios eletrônicos de comunicação que na tinta de impressão.

Os jornais vão sair de circulação?

Podemos dizer com certeza que os jornais não vão cair no esquecimento, como aconteceu com o Código Morse. Eles são um meio de comunicação portátil e conveniente. Ninguém leva o monitor do computador para a mesa do café da manhã para ler as notícias matinais. Além disso, os jornais têm provado estar dispostos a se renovar para os leitores de hoje, enfatizando bom design, fotos coloridas e histórias detalhadas que relatam ou interpretam acontecimentos atuais.

Pessoas e departamentos diferentes contribuem para um processo que lembra um rio com inúmeros afluentes. Entre eles estão cinco com grande importância para os leitores de um jornal: notícias, editorial, anúncios, produção e distribuição.

O que são notícias e como funcionam?

Curiosamente, para uma publicação denominada jornal, ninguém jamais criou uma definição padrão para o que é uma notícia. Mas o termo tem normalmente uma significação ampla: coisas anormais (falhas humanas, falhas mecânicas e desastres naturais são frequentemente "notícia").

Repórteres são os olhos e os ouvidos do jornal. Eles colhem informações de muitas fontes: algumas públicas, como registros na polícia, e outras privadas, como um informante do governo. Às vezes um repórter prefere ser preso do que revelar o nome de uma fonte confidencial. Os jornais orgulhosamente se consideram o Quarto Poder, que expõe o mal comportamento do Legislativo, Executivo e Judiciário.

Alguns repórteres são responsáveis pelos furos de reportagem ou por uma área de cobertura, como tribunais, prefeitura, educação, negócios, medicina e assim por diante. Outros são chamados repórteres gerais, o que significa que ficam de plantão para qualquer tipo de acontecimento, como acidentes, eventos cívicos e histórias interessantes. Dependendo das necessidades de um jornal durante o ciclo diário de notícias, repórteres especializados mudam facilmente do furo de reportagem para notícias gerais (novos repórteres eram chamados de focas, mas o termo não é mais usado).

Nos filmes, os repórteres têm trabalhos emocionantes, agitados e perigosos, vivendo de acordo com a famosa declaração sobre a vida nos jornais: "confortar os aflitos e afligir os confortados". Embora alguns jornalistas já tenham acabado mortos devido a investigações, o trabalho em um jornal é rotina para a grande maioria dos repórteres. Eles são nossos cronistas da vida diária, filtrando a realidade e trazendo um senso de ordem para um mundo desordenado.

Todos os repórteres atendem, em última instância, a um editor. Dependendo de seu tamanho, um jornal pode ter inúmeros editores, começando com um editor-executivo, responsável pelo setor de notícias. Subordinado ao editor-executivo está o editor-geral, que inspeciona o trabalho diário do setor de notícias. Outros editores das áreas de esportes, fotografia, estadual, nacional, coluna e óbitos, por exemplo, também podem ser subordinados ao editor-geral.

No entanto, o editor mais conhecido - e de alguma forma o mais crucial - é o editor-chefe. Os repórteres trabalham diretamente para este editor, que determina histórias, reforça prazos e é o primeiro a ver os rascunhos dos repórteres no sistema de composição ou na rede de computadores. Estes editores são chamados de gatekeepers (guardião/porteiro), pois controlam quase tudo o que deve ou não entrar na próxima edição do jornal. Normalmente trabalhando sob o estresse das notícias de última hora, suas decisões são traduzidas diretamente no conteúdo do jornal.

Uma vez que o editor metropolitano termina de editar o rascunho de um repórter, a história vai do sistema de composição até outra parte do setor de notícias, a mesa de redação, através da rede de computadores. Aqui, os vice-editores verificam a ortografia e outros erros. Eles também procuram nos artigos tudo aquilo que pode confundir o leitor ou deixar perguntas sem respostas. Se necessário, eles podem verificar fatos na biblioteca do jornal, que mantém uma coleção de livros de referência, microfilmes e cópias online de edições antigas.

A chefe da mesa de redação manda as histórias concluídas para outros editores, que ajustam histórias locais, as manchetes (escritas pelo editor, não pelo repórter!) e as fotos digitais nas páginas. Os jornais fazem cada vez mais este trabalho, chamado de paginação, com computadores pessoais, usando programas disponíveis em qualquer loja de artigos para computador. Microsoft Windows, Word e Quark Express são três programas que, apesar de não serem específicos para produção de jornais, são facilmente adaptados para isso. Antes de vermos o que ocorre com as páginas eletrônicas feitas pela mesa de redação, é útil entendermos como outros setores do jornal contribuem com o ciclo de produção.

O que são os editoriais?

Um jornal publica sua visão sobre fatos atuais, regionais ou nacionais, nos editoriais. O editorial é um texto opinativo não assinado que reflete a posição coletiva da redação do jornal. Editoriais não são notícias, são opiniões baseadas em fatos. Por exemplo, os editoriais podem criticar a atuação de autoridades públicas como o prefeito, o chefe de polícia ou o conselho de alunos local. Por outro lado, podem também elogiar pessoas por suas contribuições. Seja qual for o assunto, jornais esperam que seus editoriais aumentem o nível de discussão na comunidade.

Isto ocorre de duas maneiras que são familiares para o leitor: as cartas ao editor e os artigos de opinião editorial. As cartas estão sempre entre as seções mais lidas de um jornal, pois é onde os leitores expressam suas opiniões. Alguns jornais limitam as cartas a um determinado número de palavras, 150, 250 ou até 300, enquanto outros publicam cartas de qualquer tamanho. Os artigos de opinião editorial normalmente têm de 850 a 1000 palavras. Os jornais têm espaço para cartas ao editor e artigos de opinião editorial, disponíveis como parte de sua contribuição para o diálogo.

O editorial é dirigido por um redator que não trabalha no setor de notícias. Pessoas que trabalham em jornais chamam isso de "separação entre a Igreja e o Estado", o que significa que há uma linha que não deve ser ultrapassada entre notícia e opinião. Se esta linha for ultrapassada, o jornal perde seu bem mais valioso, a credibilidade. Por este motivo, os redatores em alguns grandes jornais são subordinados ao editor, que é o diretor-geral da empresa, e não ao editor-executivo. Em outros jornais ele pode ser. Seja qual for o modelo da organização, nenhum dos dois departamentos pode dizer um ao outro o que publicar no jornal.

Por que os anúncios são importantes para um jornal?

O número de páginas é determinado não pelo setor de notícias, mas pela quantidade de anúncios vendidos para aquele dia (além de cadernos especiais devido a grandes eventos ou acontecimentos, como tornados, campeonatos esportivos ou outros acontecimentos importantes). O setor correspondente coloca os anúncios nas páginas antes de serem liberados para o setor de notícias. Como regra, os jornais imprimem um pouco mais de anúncios do que notícias. Os anúncios correspondem a 60% ou mais das páginas semanais, mas na edição de domingo é comum que as notícias tomem mais espaço do que os anúncios. A proporção de anúncios com relação a notícias deve ser alta porque os jornais não conseguem sobreviver sem os ganhos que os anúncios proporcionam. Os editores chamam este espaço deixado de "buraco na notícia". O setor de anúncios e o de notícias não influenciam no conteúdo um do outro.

Três tipos de anúncios dominam os jornais modernos:

1 – anúncios de exibição - com fotos e gráficos, estes anúncios podem custar milhares de dólares, dependendo do tamanho. Estes anúncios, normalmente de lojas de departamento, cinemas e outros negócios, podem ser preparados por uma agência de publicidade ou pelo próprio departamento de anúncios. São chamados de carro-chefe e são responsáveis pela maior parte da renda;

2 – anúncios classificados - normalmente chamados de classificados, são publicados em caracteres miniatura chamados de ágatas. Estes anúncios são de pessoas que querem comprar ou vender produtos, empresas procurando funcionários ou comerciantes oferecendo serviços. Os classificados têm preço acessível, são populares e eficazes, atingindo milhares de prováveis consumidores;

3 – folhetos - o terceiro tipo de anúncio é feito por grandes cadeias de lojas. Estes folhetos coloridos são colocados no meio do jornal para serem distribuídos com a edição de domingo. Os folhetos trazem ganhos menores do que os anúncios carro-chefe. Os jornais cobram para distribuir os folhetos, mas não tem controle sobre seu conteúdo ou qualidade de impressão.

Como é produzido um jornal?

O setor de produção faz o trabalho pesado. Nestes departamentos há especialistas que operam e fazem a manutenção das prensas, fotocompositoras, digitalizadores de imagens e máquinas de impressão fotográfica. Alguns funcionários trabalham no turno diurno, enquanto outros no noturno.

Com início em torno de 1970, os setores de produção de jornal iniciaram um movimento histórico longe da tecnologia de trabalho intenso das máquinas fotocompositoras Linotype e outras "de última geração" usadas em impressão em relevo. Esta foi a mesma técnica usada por Johannes Gutenberg no século XIV: imprimir uma página de papel diretamente em um bloco. A invenção da fotocomposição, baseada em processos fotográficos, acelerou a produção e reduziu os altos custos de despesas gerais da impressão em relevo. Além disso, a fotocomposição funcionava melhor com as novas prensas em offset que estavam começando a ser usadas.

A maioria dos jornais diários mudaram para alguma forma de impressão em offset. Este processo grava a imagem de uma página de jornal em chapas finas de alumínio (páginas com fotos ou letras coloridas precisam de mais chapas). Estas chapas, agora com a imagem positiva revelada a partir do negativo de uma página, vão para outros especialistas para colocação na prensa. Este processo é denominado offset porque as chapas de metal não encostam no papel que entra na máquina. Em vez disso, as chapas transferem a imagem feita com tinta para um rolo de borracha que imprime a página.

Embora as máquinas para impressão de jornais sejam grandes e barulhentas, são delicadas com o papel de imprensa, o papel de que é feito o jornal. Estas máquinas precisam ser delicadas pois o papel de imprensa é caro e deve passar por esses rolos enormes sem serem rasgados. Estas complexas máquinas de três andares, que podem custar mais de US$ 40 milhões, são chamadas de prensas rotativas, pois usam papel contínuo em vez de folhas individuais.

Além de colocar tinta no papel, a prensa também monta as páginas do jornal na sequência correta. Tudo ocorre tão rápido que uma prensa em offset consegue produzir 70 mil cópias por hora na correia transportadora, que por sua vez manda as cópias para o setor de distribuição que já está aguardando.

Como são distribuídos os jornais?

A responsabilidade de levar o jornal da gráfica até o leitor é do setor de distribuição. Jornais grandes publicam dois, três ou até quatro edições, todas devendo estar prontas para deixar a gráfica em um horário determinado. A primeira edição, às vezes chamada de edição "buldogue", vai até os locais mais distantes da área de circulação. Isto pode significar vários municípios ou até mesmo um estado inteiro. As edições posteriores contêm notícias mais frescas e chegam até áreas menores. A edição final, que vai para impressão depois da meia-noite, contêm as notícias mais recentes, mas cobre uma área geográfica menor, normalmente uma cidade.

Qualquer assinante de um jornal diário sabe que ele é jogado em sua porta ainda de madrugada. Empresas terceirizadas chamadas de transportadoras compram os jornais com desconto e fazem a entrega, usando veículos próprios. Quando jornais vespertinos eram comuns, os veículos usados eram bicicletas. O primeiro emprego de muitos jovens americanos era como entregador de jornais pela vizinhança.

O departamento de circulação determina as rotas que os entregadores devem seguir. Este departamento também é responsável pelas vendas em máquinas de moedas. Ele mantém um registro de faturamento dos assinantes, interrompe e inicia as entregas mediante solicitação e usa mensageiros para entregar jornais que possam ter sido esquecidos.

Devido à circulação do jornal, o número de pessoas que o recebem tem grande impacto nos índices de anúncios. A Audit Bureau of Circulations, agência independente de aferição de tiragens, examina e autoriza as quantidades para circulação. Isto assegura ao setor de anúncios e aos anunciantes que a demanda de circulação é válida.

Em 18 horas de trabalho bem coordenado, realizado por vários setores, o que as pessoas que trabalham em jornais chamam de "um rascunho da história" passa por sistemas de computador, máquinas de tratamento de imagens e impressões (que deixariam Gutenberg perplexo) indo até seu destino final, os leitores. Depois das 3h30 da manhã, poucas pessoas ficam na gráfica. Os funcionários de todos os outros setores já foram para casa. As prensas ficam silenciosas, talvez em manutenção pelo restante da noite. O silêncio repentino não dura muito. Em menos de quatro horas, o jornal desperta e começa tudo de novo.
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* Bob Wilson é autor, escritor e redator de editorial no The Herald-Sun em Durham, N.C. Ele é formado pela University of Missouri School of Journalism e fez mestrado na Duke University. Ele também é autor de "Landing Zones: Southern Veterans Remember Vietnam" (1990, Duke University Press).

Fonte:
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sexta-feira, 8 de agosto de 2025

Guirlanda de Versos * 41 *

 

Aparecido Raimundo de Souza (À tua partida... um pedido de socorro)

FICA COMIGO, FICA AQUI, enquanto a solidão lá fora se dispersa. Fica e me abriga em teus braços, me deixa aninhar em teu colo e dormir como um menino assustado. Fica comigo, fica aqui. Repare que a tarde desalentada empurra as horas e o silêncio tange num frêmito de dor e de agonia querendo entrar e em meu peito se fazer presente. Fica comigo, fica aqui, enquanto as flores me contam que teu afago elaborou o vaso sacral onde será depositada a nossa felicidade.

Permanece aqui, ao meu lado, quieta como a lagarta que não tem pressa e breve outra vida terá nas asas de alguma borboleta. Fica comigo, fica aqui e ameiga meu cansaço, me acarinha com tuas mãos cordiais de menina transformada em mulher. Conta uma história de fadas e anões, enquanto o céu sutil se espraia além do horizonte e a lua cheia da noite calma viaja entre nós e se reflete entre fios de esperança e obsequia os suspiros que me agitam o peito. Fica comigo, fica aqui. Deixa que as batidas do meu coração se confundam com o teu, como se fosse um só.

Tu acreditas que acontece uma coisa que não sei explicar? Pois bem. Desde que nos vimos pela primeira vez, pressinto que de uma hora para outra, tu vais voar. Voar muito alto e para longe. Sinto aqui dentro do peito que vais ficar tão distante de mim, tão apartada, que só o vazio que permanecerá no teu lugar será o bastante para me amedrontar a alma, atemorizar o corpo, e desfalecer o espírito, tirando-lhe o alento que ainda resta para continuar vivendo.

Sabe o que eu queria? Sinceramente? Queria, na verdade, que o tempo parasse. O nosso tempo. Que a noite se tornasse demasiadamente longa, tão comprida e febril que o dia seguinte não tivesse como chegar e se expandir. Queria que o teu amor me despertasse por inteiro e virasse uma quimera única na esperança que está contida dentro de ti. Queria mais. Que a energia aflorada em teu peito se fundisse num só conduto e afugentasse, de vez, e para sempre, a solidão cruel que me definha.   

Mas isso, tu bens sabe, é um sonho. Uma ilusão utópica e os sonhos, assim como as ilusões fantasiosas, só vivem e criam formas diversas nas cabeças doentes, neuróticas e desmioladas. Cabeças iguais a minha. Quem sabe seja por isso, repito com veemência, não saber por qual circunstância, algo inexplicável vir me dizer, no pé do ouvido, que agora é tarde. Muito tarde para tudo. Inclusive para um recomeço.

Um fato, nessa confusão toda é certo e insiste.  Depois que te vi pela primeira vez, e a seguir, dias à frente, passei a te sentir distante. Aliás, desde o nosso primeiro encontro, onde te possuí como nunca antes havia usufruído dos prazeres de teu corpo escultural. Do teu prazer triunfante, do teu calor. Não sei explicar como pressinto igualmente um vazio denso que se apoderou de mim. 

Do nada. Um desabitado tétrico, um não sei o que atípico, um talvez sem nexo. Por essa razão me pego, me flagro, numa balbúrdia desordenada e, pior, desprotegido, sem saída, perdido acuado, amarrado em lembranças vãs, e, de roldão, em recordações e anormalidades lúgubres. 

Por isso, e não só por isso, por tudo mais, eu queria, minha linda e adorada, eu queria que ficasses. Tanto é o desejo que a noite se evaporou oculta antes do primeiro beijo se concretizar em nossas salivas. Enquanto o ermo, lá fora, não se debanda não se dispersa, não vai embora e não arreda pé. Queria que tu ficasses ao meu lado, de mãos dadas, esperando, junto comigo, o alvorecer de um novo dia.

Perceba que o muro do nosso amanhã tem cacos de vidros, mas o gato que existe no interior da minha vontade de viver alcança seus ruídos. Quando esse novo dia chegar, e igualmente o gato tiver transposto o alto do muro, eu ouvirei o vento celebrar o inverno e verei a rua coberta de folhas. Eu sentirei o minuto após fazendo antigo o sulco do qual se extrairá o meu, o nosso mais belo horizonte.

Não gostaria que pegasses as tuas coisas e saísses por aquela porta. Aliás, por nenhuma. E sabes por quê? No fundo, amada minha, no fundo tenho medo, me invade um receio derrotado e soturno de que se partires, não voltarás nunca mais. Medo maníaco que me deixes ao relento. Se isso ocorrer, tudo por aqui se tornará grande demais. Imenso, a ponto de se perder na eternidade, como uma fatalidade repentina. Sem a tua presença ao meu lado, com certeza um buraco imenso e maior do que este que agora ronda meus passos se transfigurará intransponível.

Não se vá. Fique aqui comigo. Baixe, de vez, a guarda. Venha aqui e de novo me prenda a ti, ao teu calor. E me envolva me acaricie, me embale... entorpeça meu sono e me abrace com a meiguice das tuas mãos de menina pomba, me conte histórias de fadas, de príncipes encantados e heróis protagonistas de feitos memoráveis. Por agora, somente quero me aninhar em teu colo. E dormir... dormir tranquilo e sereno, desprovido de receios bobos e crescentes. Dormir, enfim, como um menino assustado.
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Aparecido Raimundo de Souza, natural de Andirá/PR, 1953. Em Osasco, foi responsável, de 1973 a 1981, pela coluna Social no jornal “Municípios em Marcha” (hoje “Diário de Osasco”). Neste jornal, além de sua coluna social, escrevia também crônicas, embora seu foco fosse viver e trazer à público as efervescências apenas em prol da sociedade local. Aos vinte anos, ingressou na Faculdade de Direito de Itu, formando-se bacharel em direito. Após este curso, matriculou-se na Faculdade da Fundação Cásper Líbero, diplomando-se em jornalismo. Colaborou como cronista, para diversos jornais do Rio de Janeiro e Minas Gerais, como A Gazeta do Rio de Janeiro, A Tribuna de Vitória e Jornal A Gazeta, entre outras.  Hoje, é free lancer da Revista ”QUEM” (da Rede Globo de Televisão), onde se dedica a publicar diariamente fofocas.  Escreve crônicas sobre os mais diversos temas as quintas-feiras para o jornal “O Dia, no Rio de Janeiro.” Acadêmico da Confraria Brasileira de Letras. Reside atualmente em Vila Velha/ES.
Fontes:
Texto enviado pelo autor. 
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Claudia Lage (Porque é)

Andou com pressa sem hora marcada para nada. Virou as esquinas pensando em como era bom virar alguma coisa. Tropeçou num treco qualquer no meio do caminho e só depois viu não se tratar de uma pedra. Os jornais que embrulhavam a pessoa deitada anunciavam uma liquidação imperdível. Ótimo. Tinha mesmo que comprar presentes. Corra, corra, não perca! Imediatamente, correu, embora não soubesse o endereço. Passou por uma mulher linda, um homem lindo, uma criança linda. Pensou: o mundo é bom. E a cidade cintilava com as luzes extras sem nenhuma beleza nem economia.

No meio da multidão, esbarrou em alguém que conhecia. Rapidamente, não se cumprimentaram. Na esquina, desejou felicidades à mocinha que lhe vendeu um sanduíche. Depois, sentiu, de repente, uma alegria. Mal podia esperar a noite. Gostava da comilança, da família reunida. Nessa hora, cresceu um buraco em seu peito que o fez logo pensar em doenças. Em seguida, imaginou curas. É o susto do tempo. De tudo parecer a mesma coisa. E é também a dor desse susto. São as horas corridas que se adiantam tanto, e para quê? Para todos os anos caírem sempre no mesmo dia. Era o que pensava. Só esperava que, se alguma vez morresse, fosse quando estivesse muito, mas muito doente, pois achava morrer saudável um verdadeiro desperdício. Calculava, no futuro, que seria capaz de saborear cada instante. Em pequenas ambições, vislumbrava roçar a carne vida.

Olhando assim, é uma pessoa como outra qualquer. Carregando um desejo como qualquer outro. Arrastando e alimentando o desejo. Deixando ele crescer. Invadir o peito, arrepiar os pelos, subir à cabeça, desfiar os cabelos. É um perigo querer tanto assim. Talvez seja a época do ano. Você sabe. Aquela que nos faz gastar o dobro do dinheiro que temos. Aquela que nos faz pensar neles. No homem que morreu na cruz e no que anda pelo mundo inteiro, por incrível que pareça, de trenó. Um teve, no peso de sua dor, a dor de todos. O outro, velhinho, vive até hoje num lugar muito longe e frio. Coitados. E ainda têm que aguentar os teus pedidos. Esses desejos que vocês carregam, arrastam, alimentam. Vejam só:

Carregar – Ato de levar ou conduzir uma carga. Tornar sombrio, triste. Tornar mais intenso, mais forte. Exercer pressão sobre.

Arrastar – Ato de levar à força. Mover com dificuldade. Rastejar. Falar morosamente. Atrair, trazer atrás de si.

Alimentar – Dar alimento a. Nutrir, sustentar, conservar. Incitar, incrementar. Manter, prover.

Então o homem carregou os presentes até em casa, a mulher deixou mais forte o tempero da comida, o avô moveu com dificuldade a própria perna, a avó alimentou as crianças, e a menina comeu tudo, nutrindo a expectativa de enfim, naquele dia, ganhar um presente impossível porque era Natal.

Então o avô conseguiu sustentar com o próprio corpo o peso dos anos, a mulher falou morosamente com o marido, o homem exerceu pressão sobre a esposa, trazendo-a atrás de si até o quarto, a avó rastejou a história mais comprida para as crianças, e o menino deu alimento a cada palavra, achando que naquele dia tudo em casa estava mais calmo e bonito porque era Natal.

Então a menina sustentou que Papai Noel não existia, o menino incrementou achando que aquela barba de algodão era mesmo patética e ridícula, o avô tornou-se sombrio porque perguntava e ninguém respondia, a avó incitou a filha a cuidar dos filhos e da cozinha, a mulher entristeceu, pois ela e o marido às vezes não se entendiam, o homem carregou o medo de perder tudo aquilo que nem tinha tanta certeza assim de que tinha, e todos prometeram evitar discussões naquele dia porque era Natal.

A pele brilhava. Perfeita. Se a levantasse apenas um pouquinho, encontraria a carne branca e macia. Igualmente perfeita. Nesse momento, a boca certamente já estaria transbordando de água. Água de fome e vontade. Uma faca grande e bem afiada faria o corte preciso. Com muita calma, penetraria nela o garfo de enormes dentes e a deitaria languidamente no prato. Ao seu lado, para breve companhia, um pouco de arroz, farofa e maionese. Pronto, perfeito. Agora, a boca aberta já estaria à espera, assim como todas as glândulas e todos os dentes. Se houver sorte e dinheiro, 32 inteiros ou consertados. Mas, antes, outro corte. Menor, mais delicado, mais sensível. Enfim, o garfo, o pequeno, espetaria a sua pressa na carne. E a boca ávida, como em nenhum outro dia, engoliria tudo. Ao seu lado, em silêncio, a sua mulher fazia o mesmo. Ao lado dela, fazia o mesmo a sua filha. E o filho. Na outra ponta, o seu pai, mãe, e pai e mãe dela. 

Na casa vizinha, dava para ouvir o mesmo. E o mesmo, o mesmo. Alguém riu, todos riram. Alguém disse Feliz Natal, todos repetiram. Alguém estendeu um presente, todos estenderam. Alguém anunciou que ia dormir, dormiram. E o céu deste mundo brilhava, sem reluzir nenhuma estrela.
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CLAUDIA LAGE é carioca, se formou em Literatura e dedicou muito tempo ao teatro, como autora e atriz, mas sua verdadeira vocação se manifestou repentinamente, num domingo, quando em apenas um dia ela escreveu o conto A hora do galo que ganhou o concurso Stanislaw Ponte Preta de contos, da Rio Arte, em 1996. Este e outros doze contos formam seu livro de estreia, que publicou em 2000 – A pequena morte e outras naturezas. Claudia também tem contos em algumas antologias: – Recontando Machado; – 25 mulheres que estão fazendo a nova literatura brasileira (organizado por Luiz Ruffato); – Ficções Fraternas (organizado por Livia Garcia-Roza), etc. Em 2009, a autora se lança como romancista, trabalhando ficcionalmente a biografia de Eufrásia Teixeira Leite, com o livro Mundos de Eufrásia. Claudia Lage mantém o blog A pequena morte e é colunista do Jornal Rascunho.

Fontes:

Wemerson Augusto (O Pé de Goiaba)

Com um gosto na boca de bolacha, água, sal e tubaína eu ainda cochilava enquanto o ônibus seguia seu itinerário. Novos passageiros apareciam há quase todo instante. Às vezes a genealogia das pessoas que minutos antes me deixava curioso, com pouco tempo me parecia muito normal. As casas de barro, as crianças, as terras, as senhoras e os senhores na pista, o céu estrelado e o vento noturno eu já conhecia. Sinceramente não sei de onde vem nossa amizade.

Não consigo precisar datas, horas e lugares deste encontro, no entanto, tudo era muito real e próximo. A chegada que eu vislumbrava ainda num retrato mental foi idêntica a minha recepção a simpática cidade de Abacates, ao Sul das Colinas. Uma senhora de óculos e um pouco desconfiada me dá bom dia falando para dentro. Junto com o cumprimento a atendente da pensão me olha de cima a baixo, concentrando um pouco seu olhar em meus cabelos.

Vou preenchendo a ficha. Antes de terminar a senhora corre para atender uma voz do fundo da casa que diz: “a água tá ferveeeendo”. E eu continuava no cadastro. Maria Odília chega com uma chave daquelas de banheiro com apenas um pininho de relevo na horizontal. Folheia o caderno de hóspedes e corre o olho nas vagas. De longe avistei os seguintes dizeres: “deve 15” e “deve 10” e mais alguns rabiscos.

Odília resmunga e parece não acreditar na precisão do livro ata da casa. Agora com um molho de chave em mãos me convida a conhecer o estabelecimento. Abre o primeiro quarto, o de número 11. Roupas em cima da cama, camisetas na janela e uma mala entre aberta no chão informam que ali ainda tem hospede. Odília coça a cabeça e tem a certeza da imprecisão do controle dos moradores da pensão.

O quarto 13 é o próximo. A senhora vira a chave na fechadura, mas a porta não abre. A parte inferior da porta está muito próxima do chão, impedindo o movimento. Acostumada a senhora dá um chute de leve. A porta abre como uma grande janela. Para fúria de Odília o quarto também estava ocupado. Desta vez um casal com trajes íntimos ainda curtiam as primeiras horas da manhã.

A bolsa nas minhas costas a cada instante ficava ainda mais pesada e pegajosa. Numa terceira tentativa encontro um quarto aparentemente vago. “Pode ser este senhor”. Digo que sim. A senhora se despede. Abro a janela e dou de cara com um pé de goiaba com algumas goiabas no alto. Fecho parte da janela e fico me perguntando. Por que estou tão longe deste lugar, desta casa, que parece ser tão próximo?

Qual era a minha relação com este mundo? Qual era a relação das goiabas do alto? Do retrato mental da pousada esverdeada? Dos dias difíceis que só me foi anunciado neste espaço?

– Estou aqui rascunhando estas ideias para entender melhor um dia como tudo isso começou. Quando voltar pra casa pense melhor. Tenho a impressão que já passei por esta rua, escrevi algo parecido, vi essa pessoa ou já escutei essa história. Repito: não consigo precisar datas, horas e lugares deste encontro. Do mesmo modo, estou aqui tentando ler a fachada da pousada para refrescar a memória, mas parece ser em vão. A grande quantia de tinta, letras e riscos atrapalha a leitura.
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Wemerson Augusto é jornalista em Foz do Iguaçu/PR. Mestrando em Integração Contemporânea da América Latina pela Universidade Federal da Integração Latino-Americana (Unila). Possui especialização em Linguagem, Cultura e Ensino pela Universidade Estadual do Oeste do Paraná (Unioeste), graduação em Comunicação Social, com habilitação em Jornalismo e Gestão Pública. Integra a comunicação e divulgação da Revista Espirales. Atua principalmente em jornalismo, meios de comunicação, acervos digitais e meio ambiente.

Fontes:
– Colaboração do Jornal Guatá. Foz do Iguaçu.
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Neusa Padovani Martins (Dormi!!!)

Recordo-me de minha deliciosa infância no sítio de minha família. As variadas plantações de tudo um pouco me levavam a andar muito por todo o imenso terreno. Num determinado momento lá estava eu no meio do canavial, depois corria entre os pés de laranjas-lima, outra hora estava entre carreiras sem fim dos pés de feijão. Mas o dia mais lembrado por mim é aquele em que cansada adormeci entre os tantos pés de abóboras.

Foi assim que aconteceu: eu cansada de tanto andar resolvi, sem mais nem menos, que já era hora de relaxar. Deitei-me então e adormeci olhando para o imenso céu azul, protegida pela cerca viva de cipestres que faziam sombra em mim. Passado o tempo, nem sei quanto na verdade, ouvi ao longe a voz de meu irmão, nascido antes de mim alguns anos atrás. Rapazinho peralta, era meu amado companheiro de loucas aventuras. Junto ao chamado dele eu ouvi também a voz do nosso caseiro. Ambos aparentavam certa aflição ao gritarem meu nome. Ainda sonada levantei-me cambaleante e em poucos instantes ambos acercavam-se de mim querendo saber o que havia me acontecido. – Dormi ! – respondi eu.

Naquela noite, meu pai me aconselhou, assustando-me, dizendo-me que por aqueles pés de abóbora moravam algumas cobras venenosas. Não se faz necessário que eu diga que nunca mais andei por lá. Mas em alguns outros lugares sim, sempre calçada com imensas galochas de borracha que minha mãe me obrigou a usar, dizendo-me sempre que se sentisse sono deveria voltar correndo para a casa grande para me deitar. Conselho que segui a risco.

Numa destas vezes de sono intenso, não tive dúvidas do que deveria fazer. Corri de volta para a casa grande e depois de lavar bem as mãozinhas minúsculas, pegar minha amada chupeta e meu querido travesseirinho, entrei num dos vários quartos da casa, fechei muito bem a janela, já que sempre gostei de dormir no escuro, fechei a porta com a chave e me acomodei naquela imensa e deliciosa cama macia. Não avisei a ninguém que estaria ali. Apenas deitei-me e adormeci.

Apesar do pesado janelão estar fechado, a luz do sol da tarde teimava em entrar pelas frestas existentes. Elas me incomodavam um pouco porque sempre gostei do escuro, mas tratei de virar-me de frente para a parede para não ver a luz do sol. Pela pesada e imensa porta nada passava porque não havia nenhum rastro de sol por ali. Adormeci rapidamente sem precisar sequer pensar em carneirinhos, como gostava de fazer por pura diversão.

Não sei precisar que horas seriam. Ouvi gritos pela casa e passos de várias pessoas pelo imenso salão que comportava todas as portas do tantos quartos existentes ali. Minha mãe dizia sem parar que uma cobra poderia tê-la mordido e “ela” estaria caída pelas plantações. Ou então “ela” poderia ter escorregado na encosta do ribeirão e a estas horas já deveria ter descido rio abaixo. Ou então “ela” estaria perdida na parte de trás do sítio que ainda não havia sido explorado. Minha mãe só dizia coisas ruins para a tal “ela” que eu não sabia precisar quem seria tal criatura que corria tão grande risco de vida assim.

Ouvi meu pai discutindo com minha mãe sobre o fato dela ter deixado que “ela” andasse sozinha por ali. Queria saber onde minha mãe estava que nada viu. Minha mãe deveria estar desconcertada com o vozeirão nervoso de meu pai que falava rápido na frente de outras pessoas que ali se encontravam, embora eu não soubesse quem eram afinal. Ouvi-a dizer que estava na casa de D. Maria, nossa caseira, aprendendo a bordar.

Olhei para a imensa janela daquele quarto e não vi mais a luz do sol espreitando o ambiente. Mas das frestas da porta enorme vi uma luz me espiando e pensei de onde será que ela estaria vindo afinal. Naqueles dias eu não tinha mais do que sete anos. Menos, talvez. Tampouco conseguia armar em meu pensamento um raciocínio simples que me informasse que o sol se fora e as luzes do salão haviam sido acesas. Eu simplesmente continuava sonada, ainda com vontade de dormir mais.

Até que de repente entendi que estavam me procurando; era a mim que queriam saber o paradeiro. Meu irmão então, meu amado companheiro de brincadeiras teve a intuição de gritar meu nome pela casa várias vezes: – Neguinha, Neguinha… onde você está? E assim foi que apressada levantei-me da cama e me dirigi à porta tentando abri-la e para minha surpresa a chave estava presa. Assustada gritei para meu pai por socorro.

A gritaria que se seguiu me deixou apavorada e ouvi então batidas fortes na porta que insistia em permanecer fechada.

Meu pai então me disse para tentar virar a chave novamente e o obedeci. Então não se sabe como a porta se abriu e eu finalmente saí para a sala. Olhei então para todos aqueles rostos incrédulos que pareciam querer me devorar para depois então mostrarem imenso alívio. Meu irmão feliz correu antes de todos para me abraçar, perguntando-me alegre o que foi que aconteceu. Ainda sonada, respondi-lhe assustada : – Eu dormi !

Não sei qual era meu problema, nem mesmo se eu tinha algum, a verdade é que eu dormia demais e sempre nas mais adversas situações. Como naquela vez em que estávamos meus dois primos, meu irmão, a filha do caseiro e eu brincando de esconde-esconde pela imensa casa. Corríamos pra lá e pra cá sem parar, escondendo-nos e encontrando-nos. Até que num determinado momento escondida debaixo de uma das imensas camas de um dos quartos, vi-me cansada e com sono. Enfiei então minha mãozinha no bolso do meu macacão e peguei minha adorada chupeta e a coloquei na boca sugando-a sem parar, como se pudesse ali me enroscar no ventre de minha amada mãe. Nem preciso contar que adormeci de imediato só indo acordar quando os gritos do meu irmão e do meu pai ecoaram pelo casarão me fazendo acordar.

Com a maior cara de pau saí debaixo da cama e dei-me com meu pai com cara de poucos amigos esperando minha explicação. Sem ter o que explicar para aquele pai enfezado respondi simplesmente a verdade :- Dormi!
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Neusa Padovani Martins é de Sorocaba/SP, psicóloga, pedagoga e especialista em educação . Foi proprietária do Centro de Desenvolvimento Infantil “ Potinho de Mel”. Ministrou várias palestras para pais e professores, e alguns cursos também, sempre tendo como foco a criança, seu desenvolvimento e sua aprendizagem. Atuou na organização de eventos de Moda e na área da Psicologia da Moda. Depois, deu aulas de Moda. Em 2006 ganhei publicava seu primeiro livro,  “Dançando conforme a vida”, que me lançou no mundo literário sorocabano. Depois deste vieram outros. Coordenadora e editora do Sorocult, Coordenadora e responsável do “Projeto Leitura Responsável Sorocult”. Alguns livros: “Dançando conforme a vida” (2006); “Dançando Conforme os 50” (2007) e “Dançando Conforme as Ideias”(2008). Co-autora na “Antologia Internacional Roda Mundo-2006” e na antologia “Alma de Mulher” (2002) .
Fontes:
Portal Vânia Diniz. Acesso em 30.09.2010 (site desativado)
http://www.vaniadiniz.pro.br/neusa_padovani/dormi.htm 
Biografia = Espaço Literário Sorocult
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Rubem Braga (O padeiro)

Levanto cedo, faço minhas abluções, ponho a chaleira no fogo para fazer café e abro a porta do apartamento – mas não encontro o pão costumeiro. No mesmo instante me lembro de ter lido alguma coisa nos jornais da véspera sobre a “greve do pão dormido”. De resto não é bem uma greve, é um lock-out, greve dos patrões, que suspenderam o trabalho noturno; acham que obrigando o povo a tomar seu café da manhã com pão dormido conseguirão não sei bem o que do governo.

Está bem. Tomo o meu café com pão dormido, que não é tão ruim assim. E enquanto tomo café vou me lembrando de um homem modesto que conheci antigamente. Quando vinha deixar o pão à porta do apartamento ele apertava a campainha, mas, para não incomodar os moradores, avisava gritando:

– Não é ninguém, é o padeiro!

Interroguei-o uma vez: como tivera a ideia de gritar aquilo?

“Então você não é ninguém?”

Ele abriu um sorriso largo. Explicou que aprendera aquilo de ouvido. Muitas vezes lhe acontecera bater a campainha de uma casa e ser atendido por uma empregada ou outra pessoa qualquer, e ouvir uma voz que vinha lá de dentro perguntando quem era; e ouvir a pessoa que o atendera dizer para dentro: “não é ninguém, não senhora, é o padeiro”. Assim ficara sabendo que não era ninguém…

Ele me contou isso sem mágoa nenhuma, e se despediu ainda sorrindo. Eu não quis detê-lo para explicar que estava falando com um colega, ainda que menos importante. Naquele tempo eu também, como os padeiros, fazia o trabalho noturno. Era pela madrugada que deixava a redação de jornal, quase sempre depois de uma passagem pela oficina – e muitas vezes saía já levando na mão um dos primeiros exemplares rodados, o jornal ainda quentinho da máquina, como pão saído do forno.

Ah, eu era rapaz, eu era rapaz naquele tempo! E às vezes me julgava importante porque no jornal que levava para casa, além de reportagens ou notas que eu escrevera sem assinar, ia uma crônica ou artigo com o meu nome. O jornal e o pão estariam bem cedinho na porta de cada lar; e dentro do meu coração eu recebi a lição de humildade daquele homem entre todos útil e entre todos alegre; “não é ninguém, é o padeiro!”

E assobiava pelas escadas.
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Rubem Braga (Cachoeiro de Itapemirim/ES, 1913 — 1990, Rio de Janeiro/RJ). Iniciou-se no jornalismo profissional ainda estudante, aos 15 anos, no Correio do Sul, de Cachoeiro de Itapemirim, fazendo reportagens e assinando crônicas diárias no jornal Diário da Tarde. Formou-se pela Faculdade de Direito de Belo Horizonte, em 1932, mas não exerceu a profissão. Neste mesmo ano, cobriu a Revolução Constitucionalista deflagrada em São Paulo, na qual chegou a ser preso. Transferindo-se para o Recife, dirigiu a página de crônicas policiais no Diário de Pernambuco. Nesta cidade, fundou o periódico Folha do Povo. Em 1936, lançou seu primeiro livro de crônicas, O Conde e o Passarinho, e fundou em São Paulo a revista Problemas, além de outras. Durante a Segunda Guerra Mundial, atuou como correspondente de guerra junto à Força Expedicionária Brasileira. Fez diversas viagens ao exterior, onde desempenhou função diplomática em Rabat/Marrocos, atuando também como correspondente de jornais brasileiros. Após seu regresso, exerceu o jornalismo em várias cidades do país, fixando domicílio no Rio de Janeiro, onde escreveu crônicas e críticas literárias para o Jornal Hoje, da Rede Globo. Sua vida como jornalista registra a colaboração em inúmeros periódicos, além da participação em várias antologias, entre elas a Antologia dos Poetas Contemporâneos. Em 1987, foi agraciado com o grau de Comendador da Ordem do Infante D. Henrique, de Portugal. Morreu de insuficiência respiratória no Rio de Janeiro.
Fontes:
– Rubem Braga. Ai de Ti, Copacabana. RJ: Ed. do Autor, 1960. p. 43-46..
– Imagem = http://rafaxomes.blogspot.com