Carta que nunca será enviada, em continuação ao texto “Amor e tragédia nas sombras da intolerância” (https://pergola-de-textos.blogspot.com/2024/12/amor-e-tragedia-nas-sombras-da.html) . Yasmin foi morta por ladrões e Najla se suicidou.
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Há cinquenta anos eu carrego esta dor, um peso que não se alivia, que me acompanha como uma sombra em todos os momentos do dia e em cada instante da noite. São quase cinco décadas que se passaram, mas é como se tudo tivesse acontecido ontem, como se o tempo tivesse congelado naquele momento em que vocês partiram e eu fiquei aqui, sozinho, rasgado por dentro, tentando juntar os pedaços de um coração que nunca mais foi o mesmo.
Najla, minha amada, você era o meu mundo, o meu norte, a razão de cada suspiro. Eu me lembro do brilho dos seus olhos, olhos que falavam mais do que qualquer palavra, que diziam tudo o que havia em sua alma. Lembro do seu sorriso, tão delicado, tão cheio de vida, da forma como você tocava as coisas, como se cada gesto fosse uma dança. Você era a minha paz, mas também o meu fogo, e eu nunca soube como um só coração podia conter tanto amor.
E Yasmin, nossa pequena Yasmin, tão frágil, tão cheia de promessas. Eu me lembro de como ela era pequenina, como cabia inteira nos meus braços, como eu olhava para ela e via o futuro, um futuro que parecia tão brilhante, tão cheio de possibilidades. O cheiro dela, seu chorinho suave, a forma como seus olhos começavam a se abrir para o mundo... Tudo nela era um milagre, e eu me pergunto, todos os dias, por que Deus me deu esse milagre apenas para arrancá-lo de mim tão cedo?
Eu não consigo parar de pensar naquele dia. Eu me pergunto, ainda hoje, o que você sentiu, Najla, nos momentos finais. Você estava com medo? Estava com raiva? Ou será que sentiu que não havia outra saída? Eu nunca vou entender plenamente o que te levou a isso, mas eu sei que o mundo te feriu. Eu sei que as barreiras que nos separavam — essas malditas barreiras impostas por crenças, por tradições, por um Deus que deveria unir, mas decidiu nos dividir — te esmagaram.
Eu amaldiçoei esse Deus tantas vezes, Najla. Eu gritei para o céu, questionei, xinguei, implorei por respostas que nunca vieram. Como pode um Deus criar algo tão belo quanto o amor entre duas pessoas e depois destruí-lo só porque elas nasceram em culturas diferentes, em crenças diferentes? Que crueldade é essa? O que fizemos de errado, Najla, além de nos amarmos? Que pecado cometemos além de querer construir uma vida juntos, uma vida onde Yasmin pudesse crescer cercada de amor?
Mas o mundo não nos deixou. E eu nunca vou perdoar por isso. Eu nunca vou esquecer as palavras duras que ouvimos, os olhares de reprovação, as portas que se fecharam. Eu vi você se desgastando, Najla, sendo abandonada pelos seus próprios pais, que deveriam te apoiar, vi você tentando ser forte, tentando carregar o peso de tudo isso, até que não conseguiu mais. E eu me culpo todos os dias por não ter conseguido te proteger, por não ter sido suficiente para te manter junto.
E Yasmin... Ah, minha pequena Yasmin. Você foi arrancada de mim antes mesmo que eu pudesse te ver crescer, antes que eu pudesse te ensinar sobre o mundo, antes que eu pudesse te mostrar que, apesar de tudo, a vida ainda pode ser bonita. Eu me pergunto, todos os dias, como você seria hoje. Será que teria os olhos da sua mãe? Será que teria o meu sorriso? Será que seria tão teimosa quanto nós dois? Mas essas perguntas nunca terão respostas, e isso é o que mais me dói.
Minha pequena e querida Yasmin... Eu desejaria te pegar nos braços, mesmo que fosse só por um instante, e te diria o quanto te amo, o quanto sonhei com o seu futuro, o quanto lamento não ter podido te ver crescer. Eu te contaria sobre tudo o que planejei para nós, sobre os passeios que imaginei, as histórias que eu queria contar para você antes de dormir, as risadas que jamais pudemos compartilhar. Eu te diria que você foi a luz mais pura e breve que já passou pela minha vida, e que, mesmo tão pequenina, você mudou tudo em mim.
Eu também pediria perdão. Perdão por não ter sido capaz de impedir que a dor do mundo nos separasse. Perdão por não ter conseguido ser maior que os preconceitos e as barreiras que nos cercaram. Perdão por não ter podido te dar a infância que você merecia, cheia de amor e segurança.
Eu daria tudo, absolutamente tudo, para poder abraçar vocês mais uma vez. Para sentir o calor do seu corpo, Najla, para ouvir o som da sua voz dizendo que tudo vai ficar bem. Para segurar a pequena Yasmin nos braços, para sentir o cheiro dela, para ouvir seu riso. Mas tudo o que me resta são lembranças, memórias que, ao mesmo tempo em que são preciosas, são como facas que me cortam toda vez que as revisito.
Najla, eu espero que, onde quer que você esteja, você tenha encontrado a paz que o mundo te negou. E Yasmin, minha pequenina, espero que você esteja nos braços da sua mãe, sentindo o amor que eu nunca tive a chance de te dar como gostaria. Eu espero que vocês estejam juntas, em um lugar onde a dor não existe, onde os preconceitos não separam as pessoas, onde o amor não é julgado.
Quanto a mim, eu sigo aqui, sobrevivendo, dia após dia. Não vou mentir, há momentos em que tudo parece insuportável, momentos em que eu penso que talvez fosse melhor se eu estivesse aí, com vocês. Mas algo me mantém aqui, talvez a necessidade de carregar a memória de vocês, de lembrar ao mundo que vocês existiram, que vocês foram amadas, que vocês foram tudo para mim.
Se eu pudesse falar com vocês agora, Najla e Yasmin, eu diria que vocês são a razão de eu ainda buscar algum sentido para essa vida, mesmo em meio à dor. E que um dia, espero, nos reencontremos. Até lá, vivam em meu coração — porque é o único lugar onde o amor que sinto por vocês jamais será tocado pelo tempo ou pela distância, ou pelo preconceito de um mundo ignorante.
Eu não sei se algum dia nos reencontraremos, mas eu me agarro a essa esperança. Porque, Najla e Yasmin, vocês são e sempre serão o amor da minha vida. E enquanto eu viver, vocês viverão em mim.
Com toda a dor e todo o amor do mundo,
De quem nunca deixou de amar vocês.
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