sexta-feira, 27 de novembro de 2015

Silvana da Rosa (A mulher escritora e personagem, nos contos de fadas) Parte I

Pintura de Salvador Dali
INTRODUÇÃO
                                  
    As histórias de fadas são a ligação mais visceral que temos com a imaginação de homens e mulheres cujos trabalhos criam nosso mundo [...]

A nossa cultura é altamente individualista, e acredita piamente na obra de arte como coisa única, e no artista como um ser original, um criador inspirado pelos deuses. Mas os contos de fadas não são assim, nem seus criadores. Quem inventou primeiro as almôndegas? Em que país? Existirá a receita definitiva de sopa de batatas?   
   
    Vamos pensar em termos de lides domésticas. O que eles estão  dizendo, então, é essa é a maneira como eu faço minha sopa de batatas.                       

    As histórias orais, incluindo fadas, são tão antigas quanto a história da humanidade, pois são narrativas que buscam, em sua essência, explicar a natureza humana e o seu entorno. Por conseguinte, é possível afirmar que a vida humana é uma narrativa, formada a partir de múltiplos elementos constituintes. É evidente que os contos pertencentes a tempos distantes, na modernidade, têm sido alvo de alterações como modo de adaptação a uma realidade diferenciada. Dessa forma, a personagem feminina retratada em narrativas, correspondente ao contexto próprio em que estava inserida, veio sofrendo consideráveis transformações sociais, prevalentemente ao longo dos últimos cinqüenta anos.            

    Delimitando-se o espaço temporal entre o século V até a metade do século XX, constata-se que a mulher foi aos poucos – e tardiamente - tornando-se figura representativa da descrição de um universo essencialmente formado por homens escritores. Somente em meados de 1180 é que se começa a perceber a tímida e incipiente presença feminina  o mundo literário, através de Marie de France, que traduziu para o francês belas narrativas escritas pelos primitivos líricos bretões. Evidentemente, Marie de France traduziu obras de homens escritores, o que é de se considerar natural para a época, porém o que se destaca é a sua atitude, a coragem em realizar essa atividade, incomum às mulheres da época, a qual serviu de impulso inicial para que, posteriormente, as mulheres escrevessem suas próprias obras. Mais tarde, em 1690, Mme d’Aulnoy publica História de Hipólito, cuja personagem central é uma fada e, a partir dessa primeira narrativa, a adesão feminina à escritura de obras somou diversas adeptas.
   
    Ainda no século XVII, a França conheceu as “preciosas”, seguidoras de Mme d’Aulnoy, que se caracterizavam por serem intelectuais e escritoras as quais, em reuniões públicas, apresentavam seus trabalhos e, sutilmente, ditavam modismos.

    É evidente que a expansão feminina no campo literário foi lenta, tanto que, ainda na primeira metade do século XX, esses contos de fadas se estenderam de forma tradicional, ou seja, enfocando mulheres submissas ao domínio paternal, subjugadas a preceitos sociais e religiosos e que acordam após um longo período de sono, como em A bela adormecida, uma vez que ao longo dos vários séculos em que essa obra foi disseminada, a Bela seguiu inerte, adormecida em seus anseios mais íntimos.

    Aproximadamente a partir da década de cinquenta, os contos sofreram reconstruções que se adequaram ao contexto sócio-político-ideológico-cultural vivido pela personagem feminina. Descortina-se assim a nova identidade da mulher, uma vez que se constata uma figura independente, decidida, trabalhadeira, intelectual e também bela. Considerando um universo anterior de homens escritores de contos destinados às mulheres e crianças, vemos, agora, escritoras como Angela Carter, em O quarto do Barba-Azul, e a romancista Margaret Drabble, em The Radiant Way, A Natural Curiosity e The Gates of Ivory, entre muitas outras, evidenciando essas mudanças de comportamento da mulher.

    Com base no acima exposto, tem-se a intenção de analisar o percurso evolutivo da figura feminina, circunscrito a diversos contos de fadas, partindo da Idade Medieval, mais especificamente do século V até a contemporaneidade, observando a trajetória da mulher também enquanto escritora, tentando retratar a tradição cultural padronizada pelos ditames sociais ocidentais, e realizando também um estudo comparado entre as histórias tradicionais e as re-escrituras produzidas por escritoras feministas na atualidade.

1. CONTOS DE FADAS

    É sabido que os contos de fadas acompanharam a humanidade e seu processo evolutivo. Conseqüentemente, a origem dessas narrativas entrelaça-se à da própria humanidade. Desse modo, torna-se imprescindível o surgimento de algumas dúvidas a respeito dos contos de fadas, tais como: qual o povo que primeiramente os registrou? Quais as primeiras obras e como se define contos de fadas?

      Neste capítulo inicial, a pretensão é responder esses questionamentos que nos instigam. E, para que isso aconteça, o primeiro subcapítulo enfocará as variadas denominações de contos de fadas no território mundial, bem como, a sua origem, ou seja, os povos que, em ordem primeira, empregaram esses contos.

      Na seqüência, serão vistas as primeiras obras consideradas embrionárias dos contos de fadas, respectivamente, os seus autores e as temáticas apresentadas nas mesmas.

      E, finalizando este capítulo, verificar-se-ão inúmeras definições de contos de fadas, provenientes de estudiosos, historiadores, escritores, especialistas da área, visando elucidar a significação deste gênero narrativo que, sem dúvida, representa “[...] a linguagem internacional de toda a espécie humana de idades, raças e culturas (FRANZ, 1981, p.38). “

1.1 Contos de fadas: povo origem

    A velha suspirou compassivamente. “Minha linda”, disse ela “alegre-se e não se preocupe mais com sonhos. Os devaneios diurnos não merecem confiança, todos sabem, e até mesmo os noturnos funcionam ao contrário [...] Mas vou lhe contar alguns contos de fadas para alegrá-la”. APULEIO apud WARNER, 1999, p. 25.
                                                    
      De acordo com Câmara Cascudo (2004), os contos de fadas denominam-se contos de encantamento e constituem a cultura de cada parte do mundo,correspondendo ao “Tales of magic, Tales of supernatural, o Cuentos, Conti,Racconti, Fairy Play, Marchem, o mi-soso dos negros de Angola, skarki dos russos” (p. 21).

      Segundo Novaes Coelho, o conto de fadas compõe a história da humanidade e, como tal, difundiu-se em todo o território mundial, atendendo as peculiaridades próprias de cada região e recebendo variadas denominações:

    Na França, a denominação é conte de fées; na Inglaterra, fairy tale; na Espanha, cuento de hadas; na Itália, racconto di fata; na Alemanha, märchen [...] Em Portugal e no Brasil [...] como contos da carochinha. (O conto de fadas, 1987, p. 12)
                     
      A autora salienta que os contos de fadas são de origem céltica e abordam temáticas que buscam a integralidade humana, a nível espiritual e moral, ou seja, os conflitos individuais e interiores, os quais representam a amplitude da vida, baseada no ser único e em relação.

    Os contos de fadas [...] são de origem celta e surgiram como poemas que revelavam amores estranhos, fatais, eternos... Poemas que são apontados como células independentes, mais tarde integradas no ciclo novelesco arturiano, essencialmente idealista e preocupado com os valores eternos do ser humano: os de seu espírito. (COELHO, 1987, p.13-14, reticências e grifos da autora)
                     
      Novaes Coelho cita ainda que os celtas criaram as fadas, “através de seus valores espirituais ou religiosos e de sua inteligência prática e criadora” (1987, p. 31), uma vez que, como pastores de carneiros, possuíam características incomuns para uma época em que os homens, em sua maioria guerreiros, eram dotados de primitivismo e perversos sentimentos.
   
    Os primitivos contos resistiram ao passar dos tempos devido à sua afinidade com a essência humana, a espiritualidade. Em razão disso, as histórias, comunicadas em diferentes formas e suportes, como em pedras, tábuas, papiros, ainda são lidas e apreciadas.

      As obras primeiras não se apagaram com os cataclismos do tempo. Elas, tais como sombras inseparáveis, acompanharam o ser humano. Sendo assim, através dessas obras é que se pode mergulhar nesse misterioso universo, procurando a luz do entendimento a respeito da vida e da mente humana.

continua…

Fonte:
Silvana da Rosa. Do tempo medieval ao contemporâneo: o caminho percorrido pela figura feminina, enquanto escritora e personagem, nos contos de fadas. Dissertação de Mestrado em Letras. Universidade de Santa Cruz do Sul (UNISC), 2009

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