segunda-feira, 30 de novembro de 2015

Silvana da Rosa (A mulher escritora e personagem nos contos de fadas) Parte II

1.2 Origens: obras primeiras e seus enfoques

E como encontraram,
Tal qual encontrei;
Assim me contaram,
Assim vos contei!...
CASCUDO, 2004, p. 23.

                                                                 
      Observa-se que a data exata em relação às origens dos contos não se sabe bem ao certo precisar, uma vez que, a partir do momento em que o homem descobriu e aprendeu as diferentes formas de comunicação, o seu universo interno e externo adquiriu forma, cor, simbologia e, assim, migrou como em ondas sonoras, acentuando o imaginário dos povos que no mundo habitavam. Consoante a isso, os registros escritos remontam a séculos antes de Cristo, tendo-se, como exemplo, o século II a.C, em Amor e Psiquê, do escritor latino Apuleio, uma vez que nesse já havia indícios que, posteriormente, poderiam constituir os contos de fadas e, dentre eles, A bela adormecida, A Bela e a Fera, entre outros. No entanto, o que realmente se comprova é que as origens dos contos de fadas provêm de fontes célticas.

      Novaes Coelho cita que Calila e Dimna, obra difundida em inúmeras versões pelo mundo, teve, posteriormente, Abn Al-Mukafa como responsável pela versão e registro árabe fiel da coletânea, no século XVIII, uma vez que “resulta de narrativas pertencentes originalmente ao Pantshatantra (apólogos usados pelos pregadores budistas, a partir do século V) e à primitiva    epopeia indiana Mahabarata, escrita entre os séculos IV a.C. e IV d.C.)” (COELHO, 1987, p.17).

Abdallah, Abn Al-Mukafa, significa o filho do homem de mão atrofiada, ou seja, seu pai recebeu esse castigo em torturas por não se portar de acordo com os preceitos muçulmanos. Abn Al-Mukafa nasceu em Firuzabad, na Pérsia, por volta do ano 724, porém viveu na cidade iraquense de Bassora, conforme Mansour Challita. (1967, p. 206)

      Mansour Challita acrescenta ainda qual o momento histórico vivido na escritura da obra Calila e Dimna, bem como a sua avaliação a respeito da mesma:

A lenda faz remontar a gênese desse livro, numa versão hindu, à época de Alexandre. Dessa data até Abn Al-Mukafa, estende-se um milênio de lutas e tormentas, durante o qual a obra evoluiu e aprimorou-se: o que explica, sem dúvida, a riquíssima experiência política e humana nela concentrada. Assim, Calila e Dimna se distingue por três superioridades: é uma das maiores obras da literatura árabe; é uma das grandes obras da ciência política; é uma das três maiores coletâneas de fábulas de todos os tempos: igual, em beleza, às fábulas de Esopo e La Fontaine, superior a elas em sabedoria e profundidade. (CHALLITA, 1967, p. 207)
                     
      Calila e Dimna pode ser percebido de duas formas, como um tratado de política ou como um receituário de boa conduta. A obra é composta por vinte e seis narrativas e, conforme Novaes Coelho:

O fio condutor de cada grupo de narrativas (= um livro) é “Dabshalim, rei da Índia,” que pede uma estória a “Báidaba, príncipe dos filósofos,” para ilustrar uma situação “exemplar”: os males da intriga, do ciúme ou da inveja; a ambição desmedida; a precipitação imprudente no agir; a irreflexão das palavras, etc. (COELHO, 1991, p.16)
                     
A referida obra traz como personagens principais dois animais, os chacais, que agem de acordo com as características humanas. Estes se denominam Calila e Dimna, atribuindo o nome à coletânea.

Os dois animais representam a personalidade humana, ora voltada para o bem-fazer e para as virtudes, ora voltada para as atitudes pecaminosas. Durante essas variações de temperamento, o conflito da narrativa se instala, quando o personagem chacal Dimna mata um boi. Ato considerado gravíssimo, pois esse animal é sagrado na Índia.

Contudo, Dimna só realiza esse ato grotesco por ser um mau-caráter, ambicionando o que não lhe é devido. Já Calila representa o equilíbrio, a sabedoria, o conhecimento, é o exemplo de integridade que a maioria dos seres humanos deseja alcançar. Em suma, a narrativa representa a complexidade da mente humana.

Conforme Novaes Coelho, Calila representa o homem prudente que se contenta com as circunstâncias em que vive; Dimna representa o ambicioso e astuto que está constantemente desejando ultrapassar-se e se igualar aos poderosos. Neles, estão simbolizadas as duas tendências polares que desde sempre diferenciaram os homens: a que os leva a se contentarem em satisfazer suas necessidades básicas, materiais... e a que os incita a almejarem planos mais altos de realização pessoal (seja através da astúcia e da ação nefasta; seja através da Sabedoria, Conhecimento, grandes ações, conquista de posições superiores aos demais, etc. (COELHO,1991, p.17, reticências da escritora)
                     
Já segundo Menendez Pelayo, em Orígenes de la novela, citado por Novaes Coelho, a moral da referida obra não tem nada a acrescentar aos que o leem, porém atribui às vicissitudes, como a astúcia e a manha, valor indevido.

A moral de Calila e Dimna não é, por certo, muito elevada nem muito severa. Na fábula tem predominado, desde sua mais remota origem, um certo sentido utilitário, um conceito de vida muito pouco desinteressado e que concede mais do que seria justo à astúcia e à manha. (PELAYO apud COELHO, 1991, p. 17)
                     
De acordo com a moral de Calila e Dimna, há uma fábula tunisiana que se assemelha à mesma. A raposa e a gazela, assim denominada, em As mais belas páginas da literatura árabe: amor, humorismo, sabedoria, espiritualidade, (p. 279– 280), a fábula aborda como eixo temático a busca por água, uma vez que a raposa tenta aproveitar-se da ingenuidade da gazela, objetivando sorver sozinha toda a água constante em um poço. Contudo, a raposa que se precipita à frente do dócil animal, é impedida de realizar seu plano, tendo em vista que os animais da floresta cortam-lhe o caminho, atrasando-a. Em consequência disso, a gazela chega primeiro e desfruta daquela água cristalina. Provavelmente, essas narrativas sejam reminiscência das fábulas do Esopo, muito anteriores à tunisiana, uma vez que em Esopo encontra-se a fábula do lobo e da ovelha, sendo que o lobo trata de culpar a ovelha por turvar a água que ele quer beber sozinho.

Constata-se então, assim como em Calila e Dimna, que a astúcia e a manha são valores negativos que jamais devem ser cultuados, vindo a trazer sofrimento a quem os pratica.

Novaes Coelho salienta ainda que dentre a coletânea de narrativas que compõem Calila e Dimna há, “pelo menos duas, que são consideradas precursoras dos contos de fadas: O anacoreta e a rata e Ilaz, Chadarm e Irakht” (1987, p.19). Além disso, faz-se necessário ressaltar que Calila e Dimna não é uma obra única, mas sim uma coleção, dividida em três livros: Pantschatantra, Mahabarata e Vischno Sarna. Coelho cita ainda as histórias que compõem cada um desses livros:

1. Pantschatantra – As Cinco Histórias, englobando as estórias: “O Leão e o Boi”; “Os Corvos e os Corujões”; “A Pomba-de-Colar”; “O Corvo, o Rato, o Cágado e o Veado”; “O Macaco e o Cágado” e “O Eremita e o Mangusto”[...]

2. Mahabarata, com três tábuas: “O Rato e o Gato”; “O Rei e a Ave Fanza” e “O Leão e o Chacal”. 3.Vischno Sarna, com a estória da “Cobra e o Rei dos Sapos”. (COELHO, 1991, p. 26)
                     
Sendebar ou O livro dos enganos das mulheres é também originário da Índia, de autoria do escritor hindu Sendabad, e é a segunda obra oriental citada por Coelho como gênese dos contos de fadas. Essa obra foi traduzida para muitas línguas entre os séculos IX e XIII e apresenta a mesma estrutura temática e elementos que se desenvolvem a partir da tríplice aliança paixão-ódio-sabedoria, características essas próprias de um conto de fadas, de acordo com a autora:

[...] embora não tenha fadas como personagens, pode ser incluído entre os precursores do conto de fadas, uma vez que o seu conflito básico é de natureza existencial: a Paixão amorosa e a Sabedoria da palavra são postos em jogo para a preservação ou a destruição de uma vida. (COELHO, 1987, p. 22, grifos da autora)

Convém salientar que a Índia foi o berço de duas preciosidades que delinearam o mundo literário, uma vez que, a partir dessas obras iniciais, inúmeras outras surgiram, as quais deram continuidade ao ciclo dos contos de fadas.

Quanto à segunda obra que serviu como semente aos contos de fadas, Novaes Coelho refere-se à origem escrita de Sendebar:

A menção mais remota da coletânea dessa obra é a de Almasudi, no século X, em sua famosa compilação Prados de Ouro, onde, ao tratar dos antigos reis da Índia, menciona o filósofo hindu, Sendabad, autor do livro Os Sete Visires, o Pedagogo, o Jovem Príncipe e a Mulher do Rei, - título que corresponde exatamente ao argumento do Sendebar atual. [...] Foi descoberto também um poema persa, traduzido para o árabe, Baktiar– Nameh (ou História dos dez vizieres), que é idêntico às narrativas de Sendebar, e entrou em algumas versões das Mil e Uma Noites. (COELHO, 1991, p. 26-27)
                     
      Sendebar possui vinte e seis narrativas que se entrelaçam ao mesmo tempo, sendo que cada história é uma novidade, surpreendendo e envolvendo a quem a lê. Esse livro alcançou a Península Ibérica juntamente com Calila e Dimna, porém, o que realmente deve ser ressaltado é que, a partir de Sendebar se passou a conceber a mulher como portadora de características pouco virtuosas, em consequência do enredo tratado pela referida obra. Nela já se observa de antemão a presença de uma madrasta, mentirosa e ambiciosa, esposa de um rei. O rei, por sua vez, tinha um filho já adulto, fruto de seu primeiro casamento. A rainha-madrasta, talvez apaixonada pelo seu enteado, ou objetivando somente prejudicá-lo, ou ainda, apaixonada e rejeitada pelo jovem, querendo vingar-se, arquitetou um astuto plano. Acusou-o de ter tentado violentá-la. Assim, o pai-rei, seguindo as leis vigentes da época e, além do mais, já que o fato havia se tornado público, condenou o filho à morte. A penalidade seria a execução do filho-príncipe, a qual foi adiada por sete dias. Durante esse tempo, a defesa, representada por sete sábios, e a acusação, pela madrasta-rainha, julgavam o caso. Enquanto isso, o príncipe-enteado a tudo assistia calado. Essa atitude foi-lhe ordenada, pois os sábios previram que um grande mal o cercaria se alguma palavra dissesse. No oitavo dia, o desfecho acontece. Como o prazo para o perigo acontecer já havia expirado, o príncipe, então, defende-se e a rainha-madrasta tem um final infeliz, tal como em A Bela dormindo no bosque de Perrault e Sol, Lua e Tália de Giambattista Basile, uma vez que os sentimentos e as atitudes das velhas-rainhas também se assemelham, bem como a omissão e fraqueza de caráter do rei.

      Posteriormente, a obra Sendebar fez-se semente em uma terra fértil, repleta de homens sedentos por contarem suas histórias. A partir dessa obra surgiu o conto As aventuras de Simbad, o marujo, inserido em As mil e uma noites. Na verdade, a obra As mil e uma noites é o somatório das duas obras origem Calila e Dimna e Sendebar, pois apresenta a mesma estrutura narrativa das anteriores ou “a idêntica estrutura-em-cadeia”, como afirma Novaes Coelho (1991, p. 20).

      Marina Warner, em um movimento de busca do passado, em Da fera à loira: sobre contos de fadas e seus narradores, também cita a origem dos contos e quais as obras que se constituíram a partir da obra embrionária.

A Índia, por exemplo, é citada como a fonte de uma coletânea seminal de setenta contos, o Panchatantra (os cinco livros), que foi compilado por volta do século VI a. C. e atribuída a Bidpai (ou Pilpay), um lendário sábio brâmane. Jean de La Fontaine, enquanto passeava pelas margens do Sena em Paris na década de 1660, encontrou um livro de autoria de Bidpai, comprou-o, e os contos que leu tornaram-se uma das fontes de inspiração fundamentais de suas próprias fábulas, que comumente são consideradas o apogeu da urbanidade gálica [...] (WARNER, 1999, p. 20)
                     
      De acordo com Warner, o Panchatantra foi compilado por um sábio brâmane por volta do século VI a. C. Novaes observa que as narrativas contidas no mesmo passaram a ser pregadas nos primeiros séculos d.C. Verificou-se ainda que os contos de fadas se originaram de povos indo-europeus, os quais eram oriundos do sudoeste da Alemanha, mas foram expulsos de seu território pelos romanos, entre os séculos II a. C e o I d. C, vindo esses povos a se espalharem pela Europa e Ásia e migrarem para diversos países. Além disso, constatou-se que as obras Calila e Dimna e Sendebar foram as primeiras que deram origem aos contos de fadas de que se tem registro na história.

      A partir dessas duas obras, consideradas mães dos contos de fadas, torna-se possível inferir que, através delas, um mundo primitivo está representado, onde a lei do mais forte é considerada fato comum. Sendo assim, escritores e estudiosos, embasados na análise dessas obras embrionárias e em suas ramificações, buscaram a significação dos contos procurando, dessa forma, adentrar na trama atemporal, fictícia e real humanas, registrada nos contos de fadas.

continua…

Fonte:
Silvana da Rosa. Do tempo medieval ao contemporâneo: o caminho percorrido pela figura feminina, enquanto escritora e personagem, nos contos de fadas. Dissertação de Mestrado em Letras. Universidade de Santa Cruz do Sul (UNISC), 2009

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