terça-feira, 1 de dezembro de 2015

Silvana da Rosa (A mulher escritora e personagem nos contos de fadas) Parte III

1.3 Conceituações e postulados

O conto de fadas é, em si mesmo, a sua melhor explicação, isto é, o seu significado está contido na totalidade dos temas que ligam o fio da história. FRANZ,1981, p.15.
                                              
      Quanto à conceituação de contos de fadas, Novaes Coelho os define como narrativa com ou sem a presença de fadas (mas sempre com o maravilhoso), seus argumentos desenvolvem-se dentro da mágica feérica (reis, rainhas, príncipes, princesas, fadas, gênios, bruxas, gigantes, anões, objetos mágicos, metamorfoses, tempo e espaço fora da realidade conhecida etc.) e têm como eixo gerador uma problemática existencial. Ou melhor, têm como núcleo problemático a realização essencial do herói ou da heroína, realização que, via de regra, está visceralmente ligada à união homem/mulher. (1987, p.13)
                      
      Bruno Bettelheim afirma que os contos de fadas habitam o mundo real, o consciente, e o inconsciente, o irreal, sendo que esse misto de magicidade e concretude é que fascina o ser humano, correspondendo ao que ele já conhece e ao que a imaginação pode alcançar: “As histórias de fadas falam ao nosso consciente e ao nosso inconsciente e, por conseguinte, não precisam evitar as contradições, já que elas coexistem facilmente no nosso consciente” (1997, p. 20).

      Mendes (2000) salienta que os contos derivam de rituais primitivos, praticados em tempos extremamente longínquos, a tal ponto de, nessa época, a mulher ser considerada divindade e apresentar significativo papel na sociedade. Por sua vez, o homem era personagem-antagonista e, como tal, seu papel também constituía função secundária, como a de transformar a menina em mulher.

[...] os contos são herdeiros dos mitos, por sua vez se originam de rituais praticados nas comunidades primitivas. Nessas comunidades, a mulher tinha um papel social importante como sacerdotisa e as divindades eram femininas. [...] O dado mais importante, no entanto, seria a preponderância e a importância das personagens femininas nas narrativas. [...] O personagem masculino é secundário, nem mesmo tem nome e representa apenas o instrumento de transformação e realização da mulher. (MENDES, 2000, p. 125)
                      
Por sua vez, Vladimir Propp afirma que o conto tem uma estrutura uniforme que, inicialmente, prepara o leitor ou ouvinte para um clima harmônico, a fim de que esse atente integralmente e viva em detalhes o emaranhado de tensões fictícias que se sucederão, envolvendo uma família e seus integrantes.

As primeiras palavras do conto: “Em um certo reino, em um certo Estado...” já introduzem o ouvinte em uma atmosfera especial, que se caracteriza pela tranquilidade épica. Mas trata-se de uma impressão ilusória. Ante ele não tardarão a se desenrolar acontecimentos extremamente tensos e vibrantes. Essa tranquilidade é um recurso artístico que contrasta com a dinâmica interna do conto, geralmente vibrante e trágica, às vezes cômica e realista.

O conto prossegue assim: “... havia um camponês que tinha três filhos”; ou então: “... um czar que tinha uma filha,” ou ainda: “... havia três irmãos;” resumindo, o conto apresenta uma família [...] (PROPP, 2002, p. 29)
                      
Amarilha atribui valores psicológicos e sociológicos aos contos de fadas, ressaltando a importância da acessibilidade desses contos às crianças, como forma de interação e compreensão dos problemas humanos, quer individuais ou sociais:

No meu entender, os contos de fada, com seu rico referencial simbólico, ressaltam o papel que a literatura deve ter para a criança. O de tornar acessível ao leitor experiências imaginárias que sejam catalisadoras dos problemas do desenvolvimento humano e assim proporcionar autoconfiança sobre o seu próprio crescimento. (AMARILHA, 1997, p. 73-74)
                      
Conforme Marina Warner, os contos de fadas surgiram como uma válvula de escape, como um apelo ou alento para as mulheres cansadas de serem menosprezadas e injustiçadas por uma sociedade patriarcal, onde a lei do mais forte imperava:
                     
  Os contos de fadas sugerem uma situação em que o próprio menosprezo pelas mulheres abriu, para elas, a possibilidade de exercitar a imaginação e comunicar suas idéias. A responsabilidade das mulheres pelas crianças, o desprezo vigente por ambos os grupos e a suposta identificação daquelas com as pessoas simples, a gente comum, entregaram-lhes os contos de fadas como um tipo diferente de estufa, onde podiam semear seus próprios brotos e plantar suas próprias flores [...] (WARNER, 1999, p. 22)
                     
Já Sheldon Cashdan (2000)8 afirma que os contos relatam e representam a história em suas épocas. Em tempos difíceis como em pós-guerras, percebia-se essa realidade através das narrativas, como as de Andersen, por exemplo: “Os contos de fada são documentos históricos únicos, que nos mostram como era a vida em certos períodos da história - épocas em que cada dia era em si uma batalha pela sobrevivência” (CASHDAN, 2000, p. 62).

D’Onofrio afirma que “sob a denominação de conto popular, conto de fadas ou conto da carochinha, agrupam-se inúmeras narrativas de temas e motivos os mais variados” (2006, p. 110) e salienta ainda que as narrativas apresentam estruturas peculiares, sendo que os seus autores e narradores são desconhecidos, uma vez que essas histórias acompanham a humanidade e são o patrimônio cultural efetivo da mesma. Além disso, os seus personagens representam funções em um tempo e espaço indeterminados.

Já a escritora Clarissa Pinkola Estés sustenta que nos contos de fadas há instruções que conduzem à compreensão da evolução feminina. O passado, para a autora, é o elo e a condução para que a mulher encontre o seu autoconhecimento.

Os contos de fadas, os mitos e as histórias proporcionam uma compreensão que aguça nosso olhar para que possamos escolher o caminho deixado pela natureza selvagem. As instruções encontradas nas histórias nos confirmam que o caminho não terminou, mas que ele ainda conduz as mulheres mais longe, e ainda mais longe, na direção do seu próprio conhecimento. As trilhas que todas estamos seguindo são aquelas do arquétipo da Mulher Selvagem, o Self instintivo inato. (ESTÉS, 1994, p.19)
                      
      Por sua vez, Franz afirma que “o estudo dos contos de fadas é essencial,
para nós, pois eles delineiam a base humana universal” (1981, p. 38), esclarecendo ainda que os contos estão além de quaisquer diferença, quer sejam culturais ou raciais, “podendo assim migrar facilmente de um país para outro. A linguagem dos contos de fadas parece ser a linguagem internacional de toda a espécie humana de idades, raças e culturas” (FRANZ, 1981, p. 38).

Desse modo, depreende-se, através da cultura popular, que os contos de fadas tratam de temas universais e antagônicos. Emaranham-se sentimentos como amor e ódio, atitudes de poder e submissão, bem como desígnios de vida e morte. A bem da verdade, o início e o término da narrativa assemelham-se, uma vez que a estabilidade da mesma é alcançada nesses dois períodos. Primeiramente, esse equilíbrio é desestabilizado com um conflito que gera um ou inúmeros outros problemas existenciais e, no momento em que esses são reconhecidos e solucionados, a harmonia é retomada.

Quanto à conceituação de conto de fadas, nota-se que é a atribuição dada a
uma história fantasiosa, a qual tem fadas como personagens, podendo também não as ter, além de reis, rainhas, príncipes, princesas e bruxas. Por outro lado, se o próprio Lobato denominou o “Mundo das Maravilhas” (1990, p. 249) o lugar onde os personagens vivem e desempenham seus papéis dentro dos contos, percebe-se, desta forma, então, que o enredo transcorre em um mundo mágico envolto por florestas e castelos, sendo que a temática central do mesmo é a luta do bem contra o mal. Assim, esse último acaba perdendo a batalha, e o castigo é aplicado ao malfeitor. Convém salientar que nos contos o fracasso também é castigado, e a coragem enaltecida, como em Rosinha dos espinhos, dos Irmãos Grimm, sendo que nesse muitos homens que vieram salvar a princesa pereceram nos espinheiros, porém, o príncipe, que era destemido, alcançou tamanha proeza: acordar e conquistar a princesa. Essa função heroica do príncipe foi assim enfatizada pelos Irmãos Grimm e, dessa mesma maneira, outros também o fizeram, uma vez que o território para os escritores de contos de fadas tinha a demarcação masculina.

continua…

Fonte:
Silvana da Rosa. Do tempo medieval ao contemporâneo: o caminho percorrido pela figura feminina, enquanto escritora e personagem, nos contos de fadas. Dissertação de Mestrado em Letras. Universidade de Santa Cruz do Sul (UNISC), 2009

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