domingo, 20 de dezembro de 2015

Silvana da Rosa (A mulher escritora e personagem nos contos de fadas) Parte X

Libreria Fogolla Pisa
Clarissa Estés (1994)28 observa que o que a mulher vestia, ou quando demonstrava estar alegre e, consequentemente, seu próprio corpo exibia esse estado de espírito, já representava risco para que ela fosse violentada, sendo que os maus-tratos às meninas eram atitudes comuns à época, visto que elas deveriam suprimir seus anseios básicos através de uma educação extremamente severa.

[...] A mulher que se enfeitava despertava suspeitas. Um traje ou o próprio corpo alegre aumentava o risco de ela ser agredida ou de sofrer violência sexual. Não se podia dizer que lhe pertenciam as roupas que cobriam os seus próprios ombros.
Era uma época em que os pais que maltratavam seus filhos eram simplesmente chamados de “severos”, em que as lacerações espirituais de mulheres profundamente exploradas eram denominadas “colapsos nervosos”, em que as meninas e as mulheres que vivessem apertadas em  cintas, amordaçadas e contidas, eram consideradas “certas”, enquanto aquelas que conseguiam fugir da coleira uma ou duas vezes na vida eram classificadas de “erradas”. (ESTÉS, 1994, p.18, grifos da autora)
                     
Além de o pai ser um antagonista ou um pai ausente, não tendo presença marcante ou, de outro modo, mostrando-se cruel nos contos de fadas, a imagem de homem-príncipe-herói é bastante intrigante, uma vez que, em Grimm, observa-se o seguinte:

Cem anos exatos haviam se passado, e chegado o dia em que Rosinha dos Espinhos deveria despertar. Assim que o príncipe aproximou-se da cerca viva, os espinhos eram inúmeras flores belas e grandes que se afastavam sozinhas, deixando-o passar ileso, fechando-se de novo atrás dele [...] (GRIMM, 1996, p.17)
                     
Nessa situação, questiona-se por que o príncipe é considerado um herói, pois todo o ambiente que, outrora, era fatalmente contrário aos que se aproximavam, inusitadamente, após o término do período de sonolência da princesa, tornou-se mágico, não apresentando mais nenhuma dificuldade a quem chegasse lá. Aliás, abrir-se-lhe-ia passagem. Dessa forma, é possível se questionar se havia o auxílio de alguma fada madrinha ou algum ser mágico que direcionasse o caminho para o príncipe e o estivesse acompanhando. Sendo assim, o príncipe tornou-se herói por acaso, imerecidamente. Tanto que, na versão de Perrault, também não há variação
quanto à casualidade do surgimento do herói:

O jovem príncipe, com esta conversa, sentiu-se todo aceso; acreditou, sem vacilar, que daria um fim a tão bela aventura; e impelido pelo amor e pela glória, resolveu ir ver na hora do que se tratava. Mal aproximou-se do bosque e todas as árvores grandes, o mato e os espinheiros foram-se afastando para deixá-lo passar: caminhou para o castelo que avistava ao fim de uma longa alameda que trilhou e, o que o surpreendeu um pouco, viu que ninguém da comitiva pudera segui-lo, porque as árvores se tornaram a fechar assim que ele passou. Não deixou de prosseguir seu caminho: um príncipe jovem e apaixonado é sempre valente [...] (PERRAULT, 1996, p.34-5)
                     
No caso do conto de Basile (Sol, Lua e Tália), já visto anteriormente, não há presença de heroísmo, uma vez que o rei encontra a princesa por acaso, adormecida e indefesa em seu castelo, abusa sexualmente da mesma e retorna ao seu reinado, sumindo covardemente desse cenário inicial e esquecendo do feito praticado. No entanto, o que se percebe nos contos escritos por homens é que as ações selvagens praticadas por príncipes e reis são atenuadas de forma incomparável. De outro modo, a figura feminina, representada pela princesa ou rainha é figurante em seu papel e dependente dos atos masculinos, mas quando esta decide agir por impulso próprio, geralmente comete falhas imperdoáveis. Aliás, contrariamente à avaliação masculina, a ação indevida feminina ganha projeções catastróficas, a ponto de fazê-la perder a vida e ser usada como exemplo a não ser seguido pelas demais.

      Por outro lado, paradoxalmente, segundo Franz, o herói é, [...] o restaurador da situação sadia, consciente. Ele é um ego que restabelece o funcionamento normal e sadio de uma situação, onde todos os egos da tribo ou nação estão desviando-se do padrão básico e instintivo da totalidade. (FRANZ, 1981, p. 72)
                     
Analisando-se a definição de herói vista acima, há de se convir que a afirmação de Franz é bastante pertinente, uma vez que o personagem príncipe ou rei assume, sim, um papel dúbio nos contos de fadas, mas depende dele o retorno da harmonia no enredo, outrora conflitante. Desse modo, o príncipe representa o equilíbrio, aquele que reestrutura a história em questão para que, sucessivamente, se tenha e se garanta um final feliz para a mesma.

Em relação à austeridade da figura feminina, Propp salienta que alguns povos cultuavam os limites, o exílio para o sexo feminino imposto pela sociedade, ou seja, a princesa deveria viver em reclusão, jamais podendo ver a luz do sol e nem conviver em sociedade: “[...] Nos contos georgianos e mingrelianos, a princesa é chamada mzedunag av. Esse termo pode ter dois sentidos: “não vista pelo sol” e “que não viu o sol” [...]” (PROPP, 2002, p. 33).

De acordo com essa ideia de solidão, observa-se o ambiente-chave do conto A bela adormecida, o quarto, uma vez que os ambientes estritamente internos eram os únicos permitidos à mulher. Enquanto que aos homens cabia-lhes escolher o que desejassem.

Propp afirma ainda que, nos contos de caráter novelesco, geralmente se percebe a presença de mulheres aprisionadas após o casamento e testadas, cotidianamente, quanto a sua fidelidade ao marido.

[...] Nos contos de cunho novelesco, após o casamento, o marido “constrói para sua mulher um palácio onde havia uma única janela”, etc. Na sequência, percebe-se que assim se fez para testar a fidelidade da esposa.
Às vezes esse confinamento tem como objetivo perseguir uma mulher:
“ - Prenderam sem motivo a pobre mulher inocente. O senhor mandou construir uma torre de tijolo em seu pátio e ali a trancou. Deixaram-lhe apenas uma janelinha, por onde lhe passavam água e pão seco”. O motivo das jovens e das mulheres aprisionadas é amplamente conhecido no gênero novelesco, onde os maridos ciumentos utilizam tal processo [...]  (PROPP, 2002, p. 41)
                     
Como curiosidade, faz-se necessário conferir que, por outro lado, existe a aplicação de outro sistema social e familiar no mundo, além do patriarcal. Marie–Louise von Franz demonstra uma outra realidade vivida pela mulher no Sul da Índia, uma vez que lá se vive uma estrutura matriarcal e isso não representa situação inversa à patriarcal, ou seja, que o sexo feminino seja o mandatário. Nada disso acontece nesse sistema, mas aqui se tem a realidade, não a ficção:

as mulheres confiam espontaneamente em sua natureza feminina. Têm consciência de sua importância, do fato que possuem traços particulares que as diferenciam dos homens, e de que estes não implicam em nenhuma inferioridade. Têm uma segurança inteiramente natural em suas existências e em seu comportamento humanos. (FRANZ, 1995, p. 16)
                     
No entanto, somente em decorrência da    disseminação do movimento feminista no mundo ocidental, é que as mulheres, vítimas de maridos e pais cruéis, bem como de um sistema patriarcal arraigado com raízes bastante profundas, puderam se opor à sua sorte e, a partir daí, brilharam em novos papéis dentro e fora de histórias escritas ou a serem escritas.

Nota:
Surgido nos países ocidentais entre as décadas de 1930 e 40, o Movimento Feminista é um movimento sócio-político, que luta pela igualdade de direitos entre os sexos. Olmi, referindo-se ao Movimento Feminista, cita também o Pós-Modernismo, uma vez que ambas as correntes político - culturais são recentes. Desse modo, Olmi apoia-se em Sarup para definir tais correntes: Como reconhece Sarup, feminismo e pós-modernismo surgiram como duas das mais importantes correntes político - culturais das últimas décadas. Ele aproxima os dois movimentos, tendo em vista que apresentam semelhanças, pois ambos trouxeram uma crítica apropriada e abrangente da filosofia e da relação entre filosofia e cultura, no sentido mais amplo possível. Ambos tentaram desenvolver um novo modelo de crítica social que não se apoia em sustentáculos filosóficos tradicionais [...] (OLMI, 2003, p. 109). Além disso, Olmi cita a voz de Hutcheon para expressar as contribuições do pensamento feminista para o ocidente: “As mulheres ajudaram a desenvolver a valorização pós-moderna das margens e do excêntrico como uma saída com relação à problemática de poder dos centros e às oposições entre masculino e feminino” [...] (HUTCHEON apud OLMI, 2003, p. 108)).


continua…

Fonte:
Silvana da Rosa. Do tempo medieval ao contemporâneo: o caminho percorrido pela figura feminina, enquanto escritora e personagem, nos contos de fadas. Dissertação de Mestrado em Letras. Universidade de Santa Cruz do Sul (UNISC), 2009

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