segunda-feira, 28 de dezembro de 2015

Contos Populares do Tibete (O Castelo do Lago)

Na terra do Tibete havia um belo lago rodeado de colinas e montanhas. Era tão belo e de águas tão claras, que os que passavam perto dele ficavam boquiabertos de admiração. Alguns diziam que, quando o sol estava alto e projetava sobre a tranquila massa de água as sombras dos picos das montanhas, parecia como se houvesse um castelo no lago, um castelo de proporções tão enormes que tomava toda a água. Assim, pois, o lago passou a ser conhecido como "o lago do castelo".

Criaram-se muitas histórias sobre o lago e seu castelo. Às vezes se dizia que, quando a lua tremeluzia e as estrelas refulgiam como diamantes na água, se podia ver uma estranha gente sair do lago, gente com olhos de fogo e cabelos soltos que caíam como folhas molhadas ao redor de seus rostos. Ou, então, dizia-se, também, apareciam ferozes cães, que estraçalhavam as carnes dos viajantes solitários que caminhavam incautamente por suas praias.

Mas, como costuma ocorrer com as lendas, o pai conta à filha e a mãe ao filho, e, assim, durante gerações e gerações, até que as histórias se ampliam cada vez mais e mais, e acabam por dizer muito mais do que pretendeu quem as contou pela primeira vez. E aconteceu que, logo, foi aceito por todos que havia, mesmo, um castelo no lago, e que o castelo tinha um rei. Este rei, dizia-se, possuía muitos servidores, homens que, por alguma desgraça, haviam caído no lago, ou que haviam sido capturados enquanto caminhavam sozinhos por suas margens, e que depois, foram obrigados a permanecer a serviço do rei.

Certo dia, um jovem pastor estava guardando seus iaques no lado oriental do lago, quando sentiu vontade de comer algo; por isso, deixou o seu rebanho e desceu até a margem do lago. Depois de ter molhado o rosto com água fresca, sentou-se apoiado contra uma grande rocha; tirou um queijo e um pão de cevada do surrão, acendeu um pequeno fogo para esquentar seu chá com manteiga, e se pôs a comer.

Enquanto comia, Rinchen — que assim se chamava, o pastor começou a pensar em sua vida. Sua mãe era uma mulher cruel, que sempre o havia forçado a trabalhar muito, a fim de que ela pudesse comprar vestidos novos e comer bem. E, quanto a ele, tinha de contentar-se com uns poucos farrapos e com as sobras de comida que a mãe não queria mais. Considerando a vida que levava, Rinchen se pôs a chorar. As lágrimas lhe escorriam pela face e os soluços agitavam todo o seu corpo. Não conseguiria trabalhar mais do que já vinha fazendo, e, entretanto, sua mãe continuaria a querer mais e mais.

O jovem pastor já começava a guardar as suas coisas, quando, ao levantar os olhos, viu um homem de pé junto à margem do lago. Era um homem alto e vestia uma chuba1 negra da qual jorrava água — o que dava a impressão de que havia acabado de sair do lago. Recordando as histórias que tinha ouvido sobre o lago do castelo e os servidores do rei, Rinchen se sentiu tomado de pânico, e já se ia embora correndo, quando o homem falou:

— Por que você estava chorando daquele modo?

Rinchen se voltou para o homem e percebeu que ele possuía uma expressão bondosa e afável. A sua voz era doce e melodiosa. Todo o medo que o pastor sentira antes pareceu abandoná-lo, e ele se aproximou do homem alto, de chuba negra, que estava na margem do lago. Este repetiu a pergunta. Rinchen contou-lhe, então, sobre sua mãe e sobre como esta o obrigava a trabalhar cada vez mais para mantê-la e seus gostos exigentes.

— Entre comigo no lago — disse o homem —, pois o rei é um homem bom e talvez possa ajudá-lo a resolver o seu problema.

O jovem pastor sentiu que o medo lhe voltava, pois estava certo de que se entrasse no lago jamais poderia sair dele. O homem alto percebeu o medo do rapaz e, num tom suave, que era como música para os ouvidos, convenceu-o de que não havia nada a temer.

— Sou um dos servidores do rei — disse o homem. Eu vou levá-lo diante do rei e cuidarei para que aqui volte são e salvo.

O jovem pastor pensou por um momento: "Que posso eu perder? Minha mãe é tão cruel, que até a morte me seria melhor do que passar o resto da minha vida como o seu escravo". E, assim, afastando o medo, Rinchen seguiu o servidor do rei e entrou no lago.

A água era morna e acolhedora, e o rapaz se surpreendeu de que pudesse respirar com a mais completa liberdade. O servidor do rei pediu-lhe que fechasse os olhos enquanto o conduzia pela água até o castelo. Quando pararam e Rinchen abriu os olhos, viu que se encontrava numa grande sala, primorosamente enfeitada com ouro, prata reluzente e madrepérola. No fundo da sala havia um trono, e, neste, estava um homem: o rei.

O rei fez sinal ao jovem pastor para que se aproximasse. Ao fazê-lo, Rinchen percebeu que não estava sozinho, na sala, com o servidor e o rei, mas que a cada lado do trono havia mais servidores, todos eles vestidos com chubas negras como a do homem alto que lhe havia falado à beira do lago. Quando chegou aos pés do trono do rei, um dos servidores se aproximou e colocou um tamborete baixo diante do trono, para que o rapaz se sentasse nele. Timidamente, Rinchen se sentou e ficou observando os lacrimejantes olhos azuis do rei.

— Por que você está aqui? perguntou o rei com uma voz profunda que mais parecia o distante reboar de um trovão. O pastor contou, então, a sua história, tal como a relatara ao servidor, à beira do lago.

O rei foi escutando o que o jovem lhe contava e, quando Rinchen terminou o seu relato, voltou-se para o seu corpo de servidores e fez sinal a um deles para que se aproximasse. O servidor se aproximou do rei e se inclinou diante dele, enquanto este lhe sussurrava algumas instruções. O jovem pastor aguçou o ouvido, mas não pôde ouvir o que o rei dizia. O servidor abandonou a sala e voltou depois de alguns minutos trazendo um cão.

— Tome este cão — disse o rei ao pastor —, mas cuide para sempre dar-lhe de comer antes que você mesmo o faça. Isto é muito importante.

Rinchen pegou o cão e, com os olhos fechados, deixou-se conduzir até a beira do lago. Quando abriu os olhos, estava sozinho com o animal.

O jovem pastor foi embora para casa e com ele seguiu o cão. A partir daquele dia, tudo o que Rinchen desejava sempre aparecia diante dele. Ao despertar pela manhã, descobria que havia posto cevada na caixa da cevada, manteiga na caixa da manteiga, e dinheiro na caixa do dinheiro. Inclusive, apareciam roupas novas em seu guarda-roupa. Era muito feliz e sempre cuidava muito bem do cão, seguindo as instruções do rei de dar de comer ao animal antes que ele mesmo comesse.

A mãe de Rinchen, que andava muito intrigada com a súbita e inexplicável riqueza do filho resolveu, um dia, sair ela mesma com o rebanho de iaques, para ver se podia descobrir a fonte de tanta fartura. E enquanto a mãe se achava fora, o jovem pastor decidiu observar o cão, pois também estava curioso por saber como o animal conseguia obter o dinheiro e a comida. Escondendo-se na casa, observou o cão: este entrou, aproximou-se da lareira e, depois, se pôs a sacudir-se violentamente.

Imediatamente, a pele do cão caiu ao chão, deixando a descoberto uma formosa mulher a quem Rinchen jamais havia visto. Ela andou até a caixa da cevada, levantou a tampa e pôs dentro a cevada, que não se via de onde saía. Depois, fez o mesmo com a gaveta da manteiga, a do chá e a do dinheiro, tirando do nada tudo o que o rapaz e a mãe necessitavam.

Rinchen não se pôde conter. Agarrou a pele do cão e a lançou ao fogo. A formosa mulher tentou impedir que o fizesse, mas já era tarde, pois a pele ardeu rapidamente e logo não foi mais do que um grande monte de cinzas.

Temeroso de que o filho do chefe visse a mulher e a quisesse por esposa, para ocultar a sua beleza, Rinchen cobriu o rosto dela com fuligem e a reteve em casa, longe dos olhares do povo.

Em pouco tempo, o jovem pastor tornou-se muito rico, e a sua riqueza foi-o deixando excessivamente ousado. "Por que me preocupo? — perguntou-se. Tenho muito dinheiro, e o filho do chefe não se atreverá a roubar-me esta mulher, pois posso pagar-me armas e homens". Pensando desse modo, Rinchen limpou a fuligem do rosto da bela mulher e a levou à cidade para mostrá-la ao povo, pois se orgulhava da sua beleza.

O filho do chefe estava na cidade e viu a mulher. Cativado por ela, tomou a firme determinação de fazê-la sua esposa e enviou homens para buscá-la. Muito aflito, o jovem pastor pediu ajuda aos homens da cidade, mas nem um só quis atendê-lo.

Muito triste, Rinchen foi à margem do lago, sentou-se junto à grande rocha e se pôs a chorar. Como na vez anterior, apareceu o servidor do rei.

— Por que está chorando desta vez? — perguntou.

— Porque perdi a minha mulher —, respondeu o rapaz. E contou ao servidor toda a história de como havia lançado ao fogo a pele do cão e mantido escondida dos olhares do povo a formosura da mulher.

Contou, também, que, por se ter tornado imprudente e demasiado seguro, havia lavado o rosto da jovem, descobrindo-lhe, assim, a beleza para o filho do chefe; e, com isso, a havia perdido para sempre.

O servidor pediu a Rinchen que o seguisse de novo ao lago, pois o rei tinha de conhecer essa história.

— Talvez o rei possa ajudá-lo outra vez, disse ao jovem pastor, e este logo se encontrou ante o trono e aos pés do rei do lago.

Depois de escutar a história de como Rinchen havia perdido a bela mulher, o rei estendeu-lhe uma caixinha e disse:

— Leve esta caixa — e o pastor a pegou. Agora, vá ao alto de uma colina e chame à guerra o filho do chefe. Quando este tiver congregado as suas tropas na base da colina, abra a caixa e grite: A luta!

Assim fez o pastor. E quando abriu a caixa e gritou:

— À luta! —, milhares de homens saíram dela e avançaram sobre os soldados do filho do chefe e os derrotaram.

Rinchen recuperou sua bela mulher e a tomou por esposa. Enriqueceu ainda mais com a metade das terras do chefe e se converteu num chefe rico e benévolo. O jovem pastor devolveu a caixa ao rei do lago, agradecendo-lhe, e viveu em proveitoso contato com ele pelo resto de sua vida.
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Nota
1. A chuba, palavra da mesma origem que as espanholas "juba", "jubón" ou "chupa" (e o francês "jupe" recebidas do árabe, é a roupa típica dos povos tibetanos. É um roupão de lã, como uma espécie de túnica ou toda cruzada, de cor ver-melho-escura, que se amarra na cintura, formando uma bolsa (ambac) sobre o peito, na qual se transportam os objetos mínimos necessários aos deslocamentos de lugares. As mangas da chuba, quando não são levadas recolhidas, ultrapassam as mãos pelo menos um palmo.


Fonte:
Jayang Rinpoche. Contos Populares do Tibete. (Tradução: Lenis E. Gemignani de Almeida).

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