domingo, 27 de dezembro de 2015

Silvana da Rosa (A mulher escritora e personagem nos contos de fadas) Parte XII

3. A INSERÇÃO DA MULHER ESCRITORA NA LITERATURA INFANTO-JUVENIL AO LONGO DOS TEMPOS

No capítulo precedente observou-se que a escritura de contos de fadas era direito exclusivo e incontestável dos homens. Esse universo era de autoria masculina.

Já neste capítulo a abordagem será a respeito das mulheres. Na verdade, será acompanhada a trajetória da mulher escritora que se inseriu no meio intelectual, sobretudo na área da Literatura Infanto-juvenil.

      O espaço temporal entre os séculos XVII a XX foi delimitado, uma vez que, devido à imposição masculina que conspirava contra a presença feminina no contexto literário, o resultado foi a tardia inserção da mulher nesse período.

      Num primeiro momento, o estudo analisará os efeitos e mudanças no papel feminino na sociedade, salientando-se que desta vez é a mulher que escreve a sua história.

      Em seguida, serão observados os percalços que retardaram ou que impossibilitaram o ingresso efetivo da figura feminina no mundo intelectual.

      Entretanto,    assim    como    homens    escritores    tornaram     inviável, temporariamente, a real participação feminina no contexto literário, outros contribuíram para que a mesma se projetasse nesse meio, pelo menos na ficção. Lewis Carrol, Lyman Frank Baum e Monteiro Lobato ressaltaram a figura feminina através de suas personagens. Esta será a abordagem final, trabalhada no terceiro subcapítulo.

3.1 Efeitos e mudanças no papel feminino na sociedade


Os livros que têm resistido ao tempo são os que possuem uma essência de verdade, capaz de satisfazer a inquietação humana por mais que os séculos passem. MEIRELES apud COELHO, 1991, p. 9.
                                    
      É possível afirmar que o século XVll foi marcado pelo gosto do conto da carochinha, e Marie Catherine d’Aulnoy escreveu inúmeros deles, os quais são conhecidos ainda hoje no meio literário, sendo de sua autoria a expressão Contes de fée, contos de fadas, adotada por gerações passadas e atuais.

De acordo com Novaes Coelho, Mme d’Aulnoy escreve contos maravilhosos e publica oito volumes, introduzindo o modismo dos contos de fadas também entre os adultos. Casualmente, Perrault publica seus contos na época em que, no cenário intelectual burguês, surge Mme d’Aulnoy. A escritora engaja-se também no mundo dos contos de fadas e, em 1690, publica História de Hipólito, Conde de Douglas.

Posteriormente, Memórias da Corte de Espanha e Relação da Viagem à Espanha, caracterizados como relatos de viagens.

Cinco anos depois, inicia a publicação de oito volumes de contos maravilhosos que, desafiando o racionalismo clássico e o “modelo dos antigos greco-latinos”, lançavam a “moda das fadas” entre os adultos. Moda que vai durar anos. É entre 1696 e 1698 que Mme D’Aulnoy publica: Contos de Fadas; Novos Contos de Fadas ou As Fadas em Moda; Ilustres Fadas; etc. (COELHO, 1991, p. 98)
                     
      Marie-Catherine, também chamada baronesa d’Aulnoy, era de nacionalidade francesa, nasceu entre 1650/51 e faleceu em 1705. A referida escritora apresenta dois volumes de histórias, sendo que nestes misturam-se viagens fantásticas, novelas mágico-realistas e contos de fadas, tendo a co-autoria de Henriette-Julie de Castelnau, a condessa de Murat.

Quanto à vida pessoal dessa escritora, sabe-se que foi bastante turbulenta, principalmente em relação aos inúmeros relacionamentos amorosos e casamentos que manteve, devido a isso se torna possível observar que suas obras eram o retrato de sua própria vida. Marina Warner comprova essa comparação entre a vida e a obra da escritora d’Aulnoy:

[...] D’Aulnoy ultrapassou os limites aceitos pela sociedade e, ao mesmo tempo, parece que conseguiu uma fonte diferente de renda. Antes de adotar os contos de fadas, sua carreira foi ainda mais atribulada do que a de Henriette-Julie de Murat.
Os contos copiosos e rebuscados que escreveu correspondem às violentas transformações que ocorreram em sua própria vida, assim como reagem, num espírito de revolta, aos conflitos políticos e às coerções sociais de sua época. (WARNER, 1999, p. 319)
                     
      Talvez, quanto ao estilo irreverente de viver e escrever, d’ Aulnoy possa ser comparada a Jean-Nicolas Arthur Rimbaud, um poeta francês do século XlX, que migrou para vários países, participando de Círculos Literários assim como fez a escritora. Além disso, Rimbaud expressou em seus versos a franqueza e, de certo modo, a ironia com que tratava sexo, violência e também a vida mundana. Tanto que o poeta Rimbaud reescreve a poesia de Albert Glatigny sobre o nascimento de Afrodite, a deusa Vênus, porém comparando-a a uma prostituta, em Venus Anadyomène, modificando integralmente a magia descritiva da figura mitológica, considerada uma das mais belas da mitologia greco–romana.

      Há uma distância temporal de dois séculos entre d’Aulnoy e Rimbaud, mas muito em comum entre ambos, como o sucesso acompanhado de escândalos que cercavam suas vidas. No filme de Agnieszka Holland, denominado Eclipse de uma paixão, é possível constatar a história de vida de Rimbaud.

Além disso, na biografia de d’Aulnoy, relatada por Marina Warner, constata-se uma vida bastante incomum, marcada por calúnias, difamações, prisão, fuga a supostos países, como Holanda, Espanha e Inglaterra. No entanto, em 1685 retornou à França e lá retomou a literatura, abrindo um salão que se tornou bastante movimentado em Paris.

Segundo Warner, “em 1782, por exemplo, vários contos de fadas de madame
d’Aulnoy foram coligidos e publicados em inglês sob o título Queen Mab: containing a sellect collection of only the best, most instructive and entertaining tales of the fairies”. A autora salienta ainda que um conto de fadas do estilo antigo apresenta Oberon, Robin Goodfellow e outras figuras do folclore mágico local, e conta uma fábula à moda das baladas escocesas sobre a cura mágica de desprezado protagonista, Edwin, o corcunda - um    típico conto de fadas sobre os fracos que são recompensados[...] (WARNER, 1999, p.107)
                     
      Em suas narrativas, d’Aulnoy utilizava-se de maridos bestiais como personagens para construir um conto. Na verdade, a escritora criava um mundo fictício em que o amor conjugal, algumas vezes possível, era alcançado com muita dificuldade.

Dentre as produções de d’Aulnoy, Le mouton enfatiza a união de um casal nada convencional, o noivado de uma princesa e um carneiro que possui hábitos cortesãos. Além do enfoque que envolve noivos animalescos e casamentos arranjados, há nesse conto a desavença familiar entre o rei e a filha mais jovem, noiva do carneiro. Devido a esse desentendimento com o pai, a garota é expulsa do castelo, porém, no final da narrativa, o pai-rei reconcilia-se com a filha e esta é coroada rainha ao lado do pai. Cena essa assistida pelo noivo que morre com o coração partido.

Em Le dauphin não há variação temática como nos demais contos criados pela autora. Assim, nesse há um pretendente a casar-se com uma princesa, porém ele é considerado feio e horripilante pela mesma, parecendo-se com um ser animalesco. Livorette, a princesa, é arrogante e propõe ao pretendente que só casará com ele no momento em que ele se transformar em um pássaro e por ela for domesticado. A situação propõe o inverso do que acontecia realmente com as mulheres.

Em Le serpentin vert, a escritora aborda os temas antagônicos beleza/feiúra, visto que a protagonista da história foi amaldiçoada ao nascer pelo pior dos males para a época, a falta de beleza, sendo que isso poderia resultar em não conseguir arranjar casamento.

Além disso, Hidessa, a protagonista, foi rejeitada pelos pais, tendo que se refugiar na floresta, onde encontra uma serpente verde, cuja aparência causa repulsa à menina. Nesse mesmo momento, ela é interpelada por uma fada que a aconselha a não dar valor às aparências e, sim, a buscar a essência de cada ser.

Seguindo esse conselho, Hidessa passou a receber visitas noturnas de um amante, a quem jamais pôde ver, assim como em Amor e Psiquê de Apuleio. Mas a curiosidade a traiu e, ao observar uma serpente em seu leito, apavorou-se. Posteriormente, inúmeras provações desumanas Hidessa tem de enfrentar. Com isso, após três anos exilada, sofrendo cruéis castigos, ela retorna vitoriosa e descobre, é claro, que a serpente é um belo príncipe.

Segundo Marina Warner, observando as obras de d’Aulnoy, “as histórias relatam obsessivamente essas figuras da autoridade feminina, poderosas e efetivamente fatais, que abusam de sua posição [...]” (1999, p. 265).

Faz-se pertinente nesse momento mencionar as ideias de Geoffrey Chaucer em relação às mulheres em geral e não somente direcionadas à d’Aulnoy, que, coincidentemente correspondem com as de Warner. Evidentemente que Warner se refere    às    obras    específicas de    d’Aulnoy,    enquanto    Chaucer    amplia    essa característica, atribuindo-a a todas as mulheres, sem exceção. Ou melhor, Chaucer afirma que os anseios femininos resumem-se tão somente em a mulher querer comandar o seu parceiro e obter o poder. Assim sendo, não há mais mistérios. Lélia Almeida (2003)35 cita, então, a visão desse escritor quanto à postura feminina:

Para Chaucer, portanto, através das personagens femininas a quem ele dá voz, as mulheres querem mandar nos homens, querem mandar nos maridos, as mulheres querem o poder, o que as mulheres querem é, pura e simplesmente, mandar. Não há muitos mistérios. (ALMEIDA, 2003, p.20)
                     
      Na verdade, é possível afirmar o oposto do que Chaucer mencionou. As mulheres, através de suas personagens femininas, estão apenas retomando as rédeas de suas decisões, ou seja, estão recuperando os seus papéis de protagonistas atuantes, o que não pode ser confundido com autoritarismo e ânsia de poder. Conseqüentemente, quando é mostrada uma nova postura das personagens, a sociedade também começa a vê-las sob uma outra ótica e, assim, a transformar–se, oportunizando um espaço intelectual maior à mulher.

Os contos de d’Aulnoy tratam, sim, de relacionamentos forçados e acertados pelas famílias dos noivos, acordos comuns à época. Em razão disso, tornam-se uniões infelizes protagonizadas por maridos que não eram homens e, sim, animais. As suas histórias são retratadas e vistas de forma realista, uma vez que perderam o caráter encantado e mágico dos contos de fadas, tornando-se reflexões sobre os relacionamentos humanos, o que mostra uma mudança relevante nas temáticas dos contos.

Além de d’Aulnoy, Marie–Jeanne L’Héritier também trazia em seu sangue a ânsia de escrever. Característica essa que se acentuava, uma vez que era filha de um poeta, Nicolas L’Héritier e, como já foi mencionado, sobrinha ou prima (não se sabe) de Perrault.

De acordo com Marina Warner, Marie–Jeanne L’Héritier, “embora pertença por idade à geração mais jovem, era muito íntima de Charles Perrault; as mães deles, Françoise e Paquette Le Clerc, eram ou irmãs ou primas” (1999, p. 202).

Marina Warner salienta ainda que:
Marie–Jeanne L’Héritier de Villandon começou a compor contos de fadas na década de 1690, e publicou Bigarrures ingénieuses em 1697 – o próprio título, com suas alusões à astúcia e ao heterogêneo, anunciava sua empresa de narração de histórias dentro do modo cômico da trapaça e do engano. (WARNER, 1999, p. 202)
                     
      Após a morte do pai de L’Héritier, a sua família empobreceu, porém ela continuou frequentando a alta sociedade, incluindo os Círculos Literários. L’Héritier tornou-se amiga íntima da escritora Madeleine de Scudéry, dona de um salão, o qual passou a pertencer à Marie–Jeanne L’Héritier, após a morte da escritora e amiga.

      Assim como Perrault, L’Héritier redigia contos de fadas, tendo como fonte a sua babá, coincidentemente como Perrault que teve a babá de seus filhos, e ela continuou escrevendo, mesmo quando esses contos foram considerados tolices vulgares e femininas por escritores da época.

continua

Fonte: Silvana da Rosa. Do tempo medieval ao contemporâneo: o caminho percorrido pela figura feminina, enquanto escritora e personagem, nos contos de fadas. Dissertação de Mestrado em Letras. Universidade de Santa Cruz do Sul (UNISC), 2009

Nenhum comentário: