terça-feira, 29 de dezembro de 2015

Silvana da Rosa (A mulher escritora e personagem nos contos de fadas) Parte XIII

L’Héritier utilizou-se dos contos de fadas para unir as diferentes classes sociais, babás e literatas, mostrando a realidade deprimente em que a mulher vivia, independendo da classe a que pertencia. Estilo também adotado por d’Aulnoy, porém essa escritora distanciava-se de Marie–Jeanne L’Héritier quanto ao uso do linguajar, e também quanto à expressão de sentimentos e de valores adotados.

      L’Héritier, pertencente à tradição francesa, através da língua culta, redigia contos elegantes, os quais eram considerados excessivamente rebuscados para o entendimento popular. Pelo contrário, d’Aulnoy não possuía “papas na língua” como já foi visto, uma vez que essa escritora retratava o vulgar e o mundano, bem como amores bestiais. Enquanto L’Héritier recolhia os contos populares e os lapidava, acrescentando a eles valores e sentimentos superiores, d’Aulnoy os escancarava, sem censura ou pudor.

      Marina Warner cita o posicionamento de L’Héritier quanto às histórias vindas diretamente da boca do povo:

                       Essas histórias se encheram de impurezas ao passarem pela boca da gente comum, assim como a água pura se polui com lixo ao passar por um bueiro sujo. Quando as pessoas são simples, são também grosseiras: não sabem o que é apropriado. Se um evento licencioso e escandaloso é mencionado ligeiramente, a história que contarão depois se encherá com todos os detalhes. Esses atos criminosos são relatados com um bom propósito, mostrar que eram sempre punidos, mas o povo, de quem os recebemos, relatam-nos sem cobri-los com nenhum véu, e de fato os vinculam tão firmemente às questões que revelam que fica difícil contar as mesmas aventuras e mantê-los ocultos do público. (WARNER, 1999, p. 206)
                     
      Convém salientar mais uma diferença entre d’Aulnoy e L’Héritier, ou seja, a primeira compunha seu enredo com metamorfoses de animais; a segunda não inseria seres animalescos em suas narrativas, mas sim, propunha às suas heroínas desafios até então considerados masculinos. Isso acontece em Marmoisan ou L’innocent tromperie, uma vez que a heroína disfarça-se de homem e vai para a guerra. A garota se faz passar pelo irmão gêmeo que havia morrido de forma inusitada.

Marmoisan, assim a heroína se chamava, destacou-se pela bravura entre os demais guerreiros e, como a escritora abominava a linguagem inculta e mundana, transferiu, então, essa aversão a sua personagem. A heroína jamais participava de um círculo de conversa masculina, onde o assunto principal era a conduta feminina. Afinal, a heroína cai nas graças de um príncipe que, após descobrir sua verdadeira identidade, casa-se com ela.

Faz-se interessante ressaltar que, já nessa época, século XVII, L’Héritier assim como d’Aulnoy, mostravam uma nova identidade da personagem feminina: mulheres inteligentes que podiam muito bem direcionar suas vidas, bem como assumir funções masculinas e desempenhá-las da melhor forma possível. Tanto que, em Marmoisan, o príncipe valoriza a mulher, primeiramente, pela sua bravura como soldado, e, após, pela sua beleza.

      Além de Marmoisan, L’Héritier escreveu La robe de sincerité, uma vez que a heroína é uma tecelã chamada de Hermínia que auxilia o pai, o falso mago Misandro, em uma cômica e ardilosa mentira. Misandro afirma ao rei de Creta que há um manto capaz de denunciar se as mulheres são fiéis ou infiéis, quando usado pelas mesmas. Assim, sob a ordem do rei, a filha do mago, Hermínia, e sua mãe, passaram a tecê-lo. Logo após o manto estar pronto, os homens exigiram que as mulheres o usassem, com isso a confusão começou, pois o referido vestuário deveria mostrar em seu bordado a situação da mulher, porém nada se via, o que deixava o sexo masculino enlouquecido. No entanto, quando os homens saem do estado de insanidade, vêem que foram enganados. Hermínia, procurando salvar a vida do pai, assume a culpa pela invenção do fato e, por isso, é perdoada.

Nesse conto, percebe-se nitidamente a amplitude da ingenuidade masculina, que se faz grotesca ao acreditar que um manto pode transparecer o interior humano. Além disso, torna-se evidente a sabedoria, a humildade feminina e a generosidade em que a filha assume a culpa para salvar a vida de seu pai.

De certo modo esse conto apresenta versão semelhante, criada em 1837, por Hans Andersen, A roupa nova do rei. Ambos, L’Héritier e Andersen, criam artefatos que, supostamente, quando usados, podem refletir o interior, as virtudes ou os vícios humanos.

Referindo-se ao conto La robe de sincerité, de L’Héritier, Warner salienta que:
      
Os adultérios e outros crimes que os homens fantasiavam, quando não viam nada no manto, representam as calúnias atiradas sobre mulheres inocentes; a colaboração de Hermínia com o pai revela a teia de fidelidades conflitantes em que as mulheres são presas; os contos e imagens que teceu, como os escritos da própria L’Héritier, representam seu protesto – a história diferente, a versão feminina [...] (WARNER, 1999, p. 211)
                     
      Soma-se ao círculo de escritoras de contos de fadas, bem como, ao das preciosas, Julie-Henriette de Castelnau de Murat. A escritora, nascida em 1670, na Bretanha, deixou-a para casar-se com o conde de Murat e residir em Paris.

      A poetisa esteve exilada, após redigir textos acusatórios sobre o rei Luis XIV e a suposta amante do mesmo. Durante seu período de reclusão, inúmeros boatos sobre sua postura “insana” disseminaram-se. Nesse tempo, Murat escreveu contos e novelas, o que fez transparecer o seu amargor em relação aos convencionalismos sociais e, até mesmo, em relação ao amor. Julie Murat só foi libertada após a morte do rei, tendo assim permissão para retornar a Paris.

      Em Le palais de la vengeance, Murat aborda o desgaste de sentimentos com o passar do tempo, como o amor. No conto, narra-se a história de uma feiticeira má que, no apogeu de sua crueldade, enclausura dois jovens amantes em um palácio de cristal. Durante o confinamento, ao invés de o casal fortificar os seus sentimentos virtuosos, acontece o contrário, eles descobrem que não mais se amam.

      Murat, em Le palais de la vengeance, coloca em xeque a conhecida frase final dos contos de fadas “e eles viveram felizes para sempre”. A escritora mostra que nem todo relacionamento afetivo é eterno e que o amor, se não for verdadeiro, pode se desgastar com o tempo. Dessa forma, a escritora, sutilmente, suger e que os casamentos podem ser desfeitos, caso não mais se tenha sentimentos de afeição entre ambos.

Les lutins du château de Kernosyra consiste de três contos interpolados. Novamente, narra-se a história de um confinamento, mas, desta vez, é o de duas irmãs órfãs que estão sob a tutela de uma tia má e interesseira. Com a chegada de dois jovens galantes, essa rotina entediante modifica-se: bailes e inúmeros divertimentos acontecem, acompanhados pela escritura de histórias de acordo com os festejos.

      No entanto, esse período feliz já possui tempo delimitado, condicionado pela vinda de um pretendente para uma das meninas, escolhido pela tia, sendo que esse é tão tolo e inculto a ponto de não saber diferenciar o que é um animal de caça de uma vaca leiteira. Dessa forma, Murat denuncia a clausura e os relacionamentos detestáveis que as mulheres de sua época eram condicionadas a viver e, mais uma vez, retoma a questão da ignorância masculina.

Em Peau d’ours, o conto desenrola-se a partir do momento em que um ogro, o Rinoceronte, deseja casar-se com a princesa Hawthorn. A cerimônia acontece, porém, em uma vacilada do ogro que sai da caverna para caçar ursos para a ceia, a serva da princesa costura a mesma em uma pele de urso. Hawthorn, ao cobrir-se com essa pele, percebe que é encantada, pois ela tornou-se uma linda ursa. Quando, ao fugir, é capturada por um príncipe, seu mistério é desvendado.

Murat, em Peau d’ours, denuncia, além da clausura feminina, outra contravenção a que ela é submetida, ou seja, a mulher precisava disfarçar ou anular os seus anseios mais íntimos para poder sobreviver em uma esfera em que a sociedade e as leis eram regidas somente por homens e somente a eles era permitida a totalidade de direitos. Além disso, a escritora ressalta a falta na esperteza do homem-ogro, uma vez que em um “cochilo” deste a mulher o supera em sua sabedoria e agilidade.

Aos nomes de L’Héritier, d’Aulnoy e Murat acresce-se Jeanne-Marie Leprince de Beaumont. A escritora francesa Beaumont, nascida em 1711, tornou-se notável durante o século XVIII ao sugerir que as suas meninas, as quais cuidava como governanta, eram inteligentes e capazes de refletir e opinar sobre a qualidade das obras que lhes eram oferecidas para leitura. Warner cita a afirmativa de Beaumont quanto a isso:

elas dirão com muita gravidade sobre um livro que estão lendo: “O autor se desviou do assunto; diz coisas muito fracas. Seu princípio é falso; suas inferências também devem ser.” E mais ainda: minhas meninas provarão o que dizem. Não julgamos de forma correta a capacidade das crianças; nada está fora do alcance delas [...] Hoje em dia as damas lêem todo tipo de livros: de história, política, filosofia, e até mesmo os que tratam de religião [...] Portanto devem ser [...] capazes de discernir entre verdade e falsidade. (WARNER,1999, p. 328)
                     
      Jeanne-Marie Leprince de Beaumont foi uma das tantas mulheres de sua época que manteve por dois anos um casamento arranjado por sua família. Posteriormente, contraiu uma segunda união e teve vários filhos.
                     
      Beaumont escreveu mais de setenta obras, dentre essas Le magasin des enfants, em 1757. Sua obra se canonizou com o conto A Bela e a Fera. Várias de suas obras têm caráter didático, e a autora escreve de acordo com a ideologia cristã, ou seja, atribuindo castigos e recompensas às ações do homem, bem como abordando os valores humanos, porém o que a tornou realmente inovadora foi a utilização dos contos de fada como medida educadora para crianças e jovens. Entre seus contos está La Belle et la Bete (A Bela e a Fera).    Neste, a heroína Bela submete-se a casar com um homem-animal para salvar a vida de seu pai. O que não poderia se esperar é que o monstro se revelasse um verdadeiro cortesão, assim conquistando Bela, que consegue salvá-lo da morte, afirmando amá-lo e que com ele deseja ficar eternamente.
                      
      A moral dessa narrativa assemelha-se à do livro O Pequeno Príncipe, de Saint-Exupéry, ou seja, o que é essencial é invisível aos olhos. A beleza da Fera escondia-se em seu interior, o que poderia torná-lo realmente belo eram as suas virtudes. E, quanto à heroína, ela deveria enxergar o invisível    e sacrificar-se sempre, em prol da felicidade de seus familiares.

      O conto A Bela e a Fera de Beaumont foi baseado no já existente, escrito por Gabrielle-Suzanne Barbot Gallon, madame de Villeneuve (1695-1755), inserido na novela denominada Les contes Marins ou La jeune américaine, em 1740.

continua…

Fonte: Silvana da Rosa. Do tempo medieval ao contemporâneo: o caminho percorrido pela figura feminina, enquanto escritora e personagem, nos contos de fadas. Dissertação de Mestrado em Letras. Universidade de Santa Cruz do Sul (UNISC), 2009

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