sexta-feira, 4 de dezembro de 2015

Silvana da Rosa (A mulher escritora e personagem nos contos de fadas) Parte VI

2.3 Homens escritores dos séculos XVII a XX: avanços e retrocessos para a inserção feminina no mundo intelectual

[...] pequenas e sofridas histórias são bem
representativas das dificuldades que as
escritoras [...] enfrentaram nos séculos
passados e até nas primeiras décadas
deste, para se imporem numa sociedade
que se recusava a aceitar a concorrência
feminina, em qualquer de seus domínios.
LIMA DUARTE, 1997, p. 56.
                                                              
Ainda no século XVII, João Amos Komensky, Comenius, publica Didática Magna, obra essa em que o autor sugere que o ensino deve ser adequado às diferentes idades. Comenius propõe também a igualdade entre homens e mulheres, partindo do princípio de que todos são racionais e de que não há privilegiados perante Deus, portanto, devem ser instruídos, independente de sexo.

Didática Magna, a obra de Comenius, apresenta valor considerável para a inclusão feminina no campo intelectual, uma vez que o autor, embasado em princípios cristãos quanto à igualdade desprovida de privilégios, escancara a deslealdade das relações humanas, visto que somente homens abastados até então poderiam conhecer e ter acessibilidade ao mundo letrado: “O próprio Deus assegura que, diante d’Ele, não há privilégio de pessoas” (COMENIUS apud NOVAES, 1991, p.111).

Novaes Coelho sustenta a importância dessa obra para aproximar-se mais dos anseios do indivíduo, uma vez que a mesma estaria alçada em diferentes faixas etárias para o ensino-aprendizagem. Além disso, essa obra faz transparecer a triste realidade de um mundo selvagem, onde a violência predominava nas relações entre os homens, sendo que essa situação se comprovava nas histórias registradas da época, assim como nos contos de fadas.

Essa atitude reformista de Comenius, no século XVII, tem para nós um valor indicial: indiretamente revela a violência que imperava, como regra, nas relações entre os homens. O que torna mais compreensíveis a violência, a agressividade e a maldade onipresentes nos “contos de fadas” ou nos “contos prodigiosos” destinados às crianças, e mesmo nas novelas de cavalaria (a despeito de todo seu elevado idealismo) e em outras formas narrativas destinadas aos adultos. (COELHO, 1991, p.111)

Já Rousseau, posterior e contrariamente, em o Livro IV de Emílio (1762), declarou repulsa à leitura das fábulas pelo público infantil e infanto-juvenil. De acordo com ele, essas acentuavam demasiadamente o caráter negativo dos personagens. Além disso, observa-se que o referido escritor mostrou-se favorável ao idealismo patriarcal, em relação à estrutura familiar, uma vez que a mulher deveria estar condicionada ao comando masculino e dele ser servidora. Aliás, esse protótipo feminino esteve presente na literatura até o século XIX.

Novaes Coelho registrou em sua obra o que Rousseau pensava a respeito das fábulas disponibilizadas às crianças e pré-adolescentes. Assim, ele menciona no Livro IV de Emílio:

Ensinamos as fábulas de La Fontaine a todas as crianças, e não há uma só que as compreenda. E se as entendessem, seria pior ainda, porque a moral ali está tão misturada e desproporcionada à sua idade que levaria mais facilmente ao vício do que à virtude. Direis que aí está um paradoxo. Seja, mas vejamos se não são verdades. (ROUSSEAU apud COELHO, 1991, p. 126)
                      
De certo modo, as idéias de Maria Tatar correspondem às de Rousseau, ou seja, ela afirma que se torna inacessível para as crianças a compreensão da moral presente nos contos de Perrault, uma vez que os infantes aprendem realmente através da observação e da experiência pessoal e não por meio de palavras aleatórias e, não raramente, acompanhadas de vaguidão de sentido. Tatar argumenta ainda que o inverso proposto nas lições das histórias acontece, quando posto em prática pelos menores aprendizes.

Novaes Coelho cita ainda as idéias de Rousseau sobre as mulheres e seus deveres, extraídas de sua obra seguinte, o Livro V de Emílio:

Toda educação das mulheres deve ser relativa aos homens. Agradá-los, ser-lhes úteis, se fazerem amar e honrar por eles, educar os jovens. Cuidar dos grandes, aconselhá-los, tornar-lhes a vida agradável e doce: eis os deveres das mulheres em todos os tempos, e o que devemos ensinar-lhes desde a infância. (ROUSSEAU apud COELHO, 1991, p.127)
                      
É notório que, durante a caminhada feminina com destino à emancipação, aconteceram avanços e recuos. Enquanto Comenius, no século XVII, buscava a inclusão intelectual da mulher, argumentando através de discursos cristãos, Rousseau, no século XVIII, retrocedia, sustentando que a educação feminina deveria estar condicionada à dos homens, e que as mulheres deveriam ser orientadas para servi-los, sendo comparadas a meras escravas dos caprichos de seus senhores.

Em 1778, no Brasil, João Rosado de Villa Lobos e Vasconcelos publica uma obra voltada para a educação dos meninos, denominada Livro dos Meninos. Apesar de o ensino, aparentemente, ter sido oferecido a qualquer cidadão, ainda a distância entre os sexos fazia-se visível, uma vez que obras específicas para meninos e outras para meninas, impregnadas de moralismos, ainda eram difundidas.

Quanto à literatura, o século XVIII assemelha-se ao anterior, uma vez que homens escritores redigem suas obras de acordo com a sociedade patriarcal vigente à época. Já no século XIX há a mescla entre o culto e o popular e, com esse meio-termo, surge o romance. Por sua vez, a criança é vista como um possível leitor e, assim, a literatura volta-se a esse público. É nesse século que as narrativas do fantástico-maravilhoso surgem e têm os filólogos Jacob e Wilhelm Grimm como adeptos.

A partir dessa perspectiva de que as crianças já estavam sendo inseridas no contexto literário, poderia se pensar que a mulher seria a próxima a usufruir desse direito. No entanto, as obras dos Irmãos Grimm ainda descrevem a figura feminina e o seu entorno em um espaço repleto de fraquezas, ansiedades, culpas, medos,  tristezas e convencionado de acordo com os moldes patriarcais.

Entre os anos de 1812 e 1822, os Irmãos Grimm publicaram o volume Contos de fadas para crianças e adultos contendo quarenta e uma histórias: A bela adormecida; Os músicos de Bremen; Os sete anões e a Branca de neve; O chapeuzinho vermelho; A gata borralheira; As aventuras do irmão folgazão; O corvo; Frederico e Catarina; Branca de neve e Rosa vermelha; O ganso de ouro; A donzela que não tinha mãos; O pescador e suas esposas; A dama e o leão; O alfaiate valente; Os sete corvos; O rato, o pássaro e a salsicha; A casa do bosque; O lobo e as sete cabras; A guardadora de gansos; O príncipe rã; O caçador habilitado; Olhinho, dois olhinhos, três olhinhos; O lobo e o homem; O príncipe e a princesa; A luz azul; O lobo e a raposa; O enigma; A raposa e a comadre; A raposa e o gato; Margarida, a espertalhona; A alface mágica; As três fiandeiras; João jogatudo; A morte da franguinha; A velha do bosque; O prego; Joãozinho e Maria; O diabo e a avó; O senhor compadre; João, o felizardo e o Pequeno polegar.

Nesses contos a descrição da figura feminina segue os padrões sociais determinados à época, ou seja, mulheres escravizadas e injustiçadas, comumente maltratadas por mulheres mais velhas. Aliás, o estereótipo anjo e demônio é bastante claro nas obras dos Irmãos Grimm. As mulheres-anjo constantemente são testadas em seus valores morais (honestidade, paciência, desprendimento material, obediência, fé inabalável) e, quando vitoriosas, são recompensadas com um casamento e/ou uma posição em ascensão na sociedade.

Posteriormente aos Irmãos Grimm e também redigindo contos, o escritor dinamarquês Hans Christian Andersen publicou cento e sessenta e oito contos entre os anos 1835 e 1872, sendo que os de maior sucesso são: O patinho feio; Os sapatinhos vermelhos; A rainha da neve; O rouxinol e o imperador da China; O soldadinho de chumbo; A pastora e o limpador de chaminés; A pequena vendedora de fósforos; Pequetita; Os cisnes selvagens; A roupa nova do imperador; O companheiro de viagem; O homem da neve; João e Maria; João grande e João pequeno.

As histórias narradas por Andersen apresentam algo novo: dois contrastes marcantes, o mundo fantástico e a triste realidade envolta pela miséria, marcada pelo pós-guerra.

Apesar de o escritor estar vivendo em um cenário nada propenso à aquisição de valores e respeito aos direitos humanos, de certa forma, Andersen contribuiu para a ascensão da personagem feminina, uma vez que ele, através do conto A pequena sereia, caracterizou a personagem sereia através de atitudes nada convencionais para uma mulher e nem ao menos para um ser encantado, ou seja, o autor a vestiu de valores, ideais, atitudes e lhe concedeu voz, características até então pouco comuns na Literatura Infanto-juvenil.

Em A pequena sereia, Andersen inovou a estrutura já estabelecida e tradicionalmente arraigada do conto de fadas.Nessa narrativa, a protagonista é vítima do destino, do meio familiar, da sociedade. Por sua vez, as circunstâncias que a envolvem a instigam a aventurar-se em busca da concretização de seus objetivos e de seu amadurecimento intelectual, assim distanciando-se de seu lar e dos laços familiares, principalmente do paternal. Uma vez que a heroína é órfã de mãe, a sereia embrenha-se no mundo terreno, enquanto o príncipe aproxima as suas atitudes às de um homem comum, sendo que não enfrenta dragões e monstros e nem salva mocinhas desamparadas ou em perigo. Além disso, singular também é o desfecho da história, uma vez que é bem conhecida a frase “e viveram felizes para sempre” em contos de fadas, porém nessa o final feliz não acontece, sendo o final da mesma um convite à pluralidade imaginativa do leitor:

E a pequena sereia levantou seus braços claros em direção ao sol de Deus e pela primeira vez sentiu que lágrimas lhe corriam pelas faces. No navio havia de novo ruídos e vida. Ela viu o príncipe com sua bela noiva procurando-a; tristes contemplavam as espumas efervescentes como se soubessem que ela se havia atirado às águas. Invisível, ela beijou a testa da noiva, sorriu para ele e sumiu com as outras filhas do ar numa nuvem rosada que viajava pelos céus [...] (ANDERSEN, 1994, p.26)

continua…

Fonte:
Silvana da Rosa. Do tempo medieval ao contemporâneo: o caminho percorrido pela figura feminina, enquanto escritora e personagem, nos contos de fadas. Dissertação de Mestrado em Letras. Universidade de Santa Cruz do Sul (UNISC), 2009

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