terça-feira, 15 de dezembro de 2015

Silvana da Rosa (A mulher escritora e personagem nos contos de fadas) Parte VIII

2.4 O papel social desempenhado pelas mulheres segundo certa ótica masculina

A mulher que os deuses cumulam com a dupla beleza do corpo e da alma é uma verdade ao mesmo tempo evidente    e misteriosa. Compreendemo-la pelo amor e tocamo-la com os dedos da pureza. Mas quando procuramos descrevê-la com palavras, desvanece-se atrás do nevoeiro da hesitação e do equívoco.

      Visto que os papéis feminino e masculino já eram bem determinados, tanto literária quanto socialmente e, de acordo com os novos ideais iniciados pelo Catolicismo, Novaes Coelho (1991) menciona que, na busca de se transferir a imagem de madrasta-má, ou seja, a mulher perversa, à de uma nova personagem, surgem, entre os séculos XII e XIII, as fadas. Estas se caracterizavam como, praticamente, enviadas do Divino, ou seja, em uma narrativa em que aparecesse uma situação crucial, lá elas surgiriam para amenizar ou resolver tal dificuldade. Na verdade, as fadas atuavam para suavizar a prerrogativa da maldade, sendo que o heroísmo não era atribuído a elas, mas direcionado ao príncipe que surgia para salvar vítimas indefesas.

As fadas foram provenientes do Ocidente e, mais especificamente, da novela de cavalaria, que muito contribuiu para que o homem convivesse com valores mais altruístas, como a luta por sentimentos nobres, abandonando, de certa forma, o primitivismo cruel de épocas passadas.

Por outro lado, Marie-Louise von Franz afirma que as fadas foram adaptações e junções de mulheres do passado que muito auxiliaram, porém anonimamente ou como antagonistas, nas tramas dos contos:

Essas “fadas” se aproximam das velhas mulheres sábias e cheias de experiência, um pouco feiticeiras e curandeiras, que presidem aos partos. É assim que a palavra que as designa no conto de Grimm, Weise Frau, designa tanto as mulheres sábias quanto as parteiras. (FRANZ, 1995, p. 30)
                     
De outro modo, Marina Warner afirma que a Sibila, figura oposta às fadas, mas, igualmente sábia, era considerada a bruxa pagã dos oráculos. Todavia, ela redimiu-se de seus pecados, uma vez que o culto à Sibila foi associado ao de santa Ana, na França do século XVII e, assim, como em um passe de mágica, de bruxa tornou-se a avó, a narradora querida dos contos de fadas.

(Nota: No conto de Basile, por exemplo, as fadas madrinhas prestam auxílio à mãe letárgica, que deu à luz a um casal de gêmeos, após ter sido estuprada por um rei que, por aquelas redondezas caçava, mas que já havia contraído matrimônio com outra rainha. O curioso nessa história é que em momento algum se faz menção à ação animalesca e digna de punição do rei. Basile enfeita e encanta com magicidade essa cena que, de certa forma, pode-se imaginar o inverso à violência, como se o estupro fosse algo inevitável diante de tamanha beleza da princesa e, além disso, algo corriqueiro, pois, após praticar esse ato, o rei retornou para o seu reino, esquecendo do que havia acontecido.   

O perceptível nesse conto é que a esposa do rei é que é a megera, pois jamais lhe concedeu filhos, enquanto que a atitude dele é considerada normal, pelo menos para Basile, escritor dessa época.

O que se nota é que as questões de bondade e crueldade variam quanto ao gênero do praticante, ou melhor, se o estuprador foi o rei, como já citado em Basile, é aceitável, porém a incapacidade de a rainha conceder-lhe filhos, é que é considerada inaceitável, cruel.)

É notório que o papel da mulher que esteve secularmente atrelado à figura feminina presente nos contos de fadas é verificado como exemplo de adoção do ideal patriarcal. No entanto, esse papel, desempenhado fora da história escrita, assumia outra realidade. No enredo do cotidiano, a vida era madrasta, uma vez que não havia príncipes, nem castelos, nem encantos. A mulher não era vista e nem tratada como princesa. O seu papel assemelhava-se, sim, ao de uma gata borralheira, real e fictício.

Sabe-se que, tradicionalmente, o personagem feminino é o portador de uma herança cultural, onde valores e posturas estão pré-determinados, e este deve, inquestionavelmente, moldar-se a estes, visto que para a mulher era característica a identidade de filha, mãe, esposa. Por representar a passividade e a inconsciência, a intelectualidade jamais estaria a seu alcance, pois não possuía inteligência o bastante para assumir esta atividade. E, como o homem sempre representou o oposto das características femininas, coube a ele, então, o sinônimo da atividade, do fazer, do consciente.

Márcia Hoppe Navarro (1997) cita as ideias de Guerra Cunningham, uma vez que ela examina os significados primários atribuídos a cada gênero no código simbólico que serve de suporte à tradição cultural do patriarcado. Em tal código, o “masculino” define-se como sinônimo de “atividade” e da “consciência”,    enquanto    o    “feminino”    representa    o    “passivo” e    o “inconsciente”.

Tradicionalmente, os personagens masculinos caracterizam-se pelo “fazer” - em atividades variadas em seu papel econômico e produtor- , enquanto a mulher também se caracteriza a partir de seu papel primário que é a reprodução biológica. Como resultado, afirma Guerra, da totalidade complexa que constitui ser mulher, a imaginação masculina selecionou e abstraiu a maternidade para torná-la a “essência” exclusiva de sua identidade. (CUNNINGHAM apud NAVARRO, 1997, p.47-48, grifos da autora)
                     
Ainda convém comentar a citação já mencionada de Mendes (subcapítulo 1.3, p. 21-22), uma vez que esse autor salienta a preponderância e a importância da personagem feminina, em comunidades primitivas, em detrimento da masculina que se tornara figura secundária e anônima em seu papel, designada por sua patente, ou seja, a de príncipe ou de rei, servindo, assim, como uma fada madrinha “masculina” que transforma e realiza a mulher na história.

É sabido que os aspectos “negativos” da mulher, outrora ressaltados, foram suavizados com o tempo, só que, concomitante a isso, ela perdeu a identidade própria. A figura feminina absorveu as características das “Belas” dos contos de fadas, que são mulheres servis, acomodadas e conformadas com o ambiente hostil em que estavam inseridas. Sendo assim, às que não se enquadravam nessa moldura de personagem angelical, sobrar-lhe-ia a de amargurada, horrenda e infeliz. Percebe-se em Rosinha dos espinhos, dos Irmãos Grimm, a presença da décima– terceira mulher sábia ou bruxa, figura desagradável e vingativa, porém não há mais a madrasta perversa, citadas nos contos de Perrault.

E, quando da inexistência da mulher má, é comum verificar-se a imagem de heroínas submissas e obedientes nos contos de fadas, e essa situação também é presente em Barba-Azul, de Perrault. O autor declara que o motivo que tornava o Barba-Azul tão feio e amedrontador era tão-somente a cor nada convencional de sua barba.

(Nota: No conto A bela dormindo no bosque, a maldade recebeu personagem substituto em Perrault, ou seja, a sogra possuía descendência ogra, uma vez que só satisfez seu instinto canibal quando pensou ter devorado seus netos e nora.)

Era uma vez um homem que possuía belas casas na cidade e no campo, baixelas de ouro e de prata, móveis de madeira lavrada e carruagens douradas. Mas, para sua infelicidade, esse homem tinha a barba azul, e isso o tornava tão feio e tão assustador que não havia nenhuma mulher e nenhuma moça que não fugisse de sua presença. (PERRAULT, 1999, p. 189)
                     
Segundo a história de Perrault, Barba-Azul era um homem ogro que testava a obediência de suas esposas, dando a elas um molho de chaves, sendo que uma jamais poderia abrir um quarto secreto. A chave pertencente ao quarto secreto era mágica, uma vez que denunciava com manchas de sangue, caso fosse usada.

Enquanto em Cinderela encontravam-se irmãs emprestadas que a invejavam, em Barba-Azul as vizinhas e amigas da heroína desempenhavam esse papel. É nítida a semelhança também em Branca de neve, Cinderela, Pele de asno e A bela adormecida quanto ao desfecho, em que as princesas são salvas pelo beijo e/ou união eterna com o príncipe.

Já em Barba-Azul, os dois irmãos da heroína chegaram para salvá-la no momento crucial da vida dela, sendo que, no desfecho final, ela, viúva, emprega parte da fortuna herdada do falecido marido para o seu próprio dote, ao casar-se com um homem bondoso.

Em observância à personagem feminina nos contos de fadas, denota-se que a representação cultural da mesma estigmatiza um tipo de mulher que deve ser castigada com a própria vida pelo fato de ser monstruosa e malvada; o segundo tipo, que já foi visto, é o modelo ideal e angelical de mulher: linda e submissa, incapaz de conduzir sua vida sem a presença de uma figura masculina.

Propp confirma esses dois tipos distintos de mulheres cultuados historicamente nos contos, porém o autor se refere a princesas, mulheres comumente descritas por suas ações e atitudes, raras vezes em aspecto físico detalhado:

[...] É verdade que, por um lado, ela é uma noiva fiel, que aguarda seu prometido e recusa-se a todos os que tentam obter sua mão enquanto este está ausente. Por outro lado, é um ser pérfido, vingador e maldoso, sempre disposto a matar, afogar, mutilar, roubar seu pretendente; e a principal tarefa do herói ao chegar ou quase chegar à posse dela consiste em domá-la. [...]
[...] Os dois tipos de princesa são determinados menos por qualidades pessoais do que pelo curso da ação [...] (PROPP, 2002, p. 365-6)
                     
Maria Tatar contrapõe-se a Propp, afirmando que os contos atribuem valor demasiado ao físico e material em relação ao personagem, como em Cinderela, ou seja, “os contos de fadas atribuem alto valor às aparências, e a beleza de Cinderela bem como seu magnífico traje, a distingue como a mais linda do reino” (TATAR, 2004, p.38).

Nos contos de Basile, Grimm e Romero também ocorre percepção semelhante à de Maria Tatar, ou melhor, a beleza física da mulher assume grande importância para a sua ascensão na escala social, bem como as riquezas materiais de que possa dispor. Além disso, se a personagem for chamada de Bela (em A Bela e a Fera ou A bela adormecida), jamais se poderia imaginar alguém que fosse desprovido de beleza física. Dessa forma, essas observações são comprovadas através de alguns exemplos, no momento do primeiro encontro do príncipe ou rei com a princesa:

Ela era tão linda que ele não pôde deixar de olhá-la, e curvou-se e deu-lhe um beijo [...] Então comemorou-se com toda a pompa o casamento do príncipe com Rosinha dos Espinhos, e ambos viveram felizes para sempre. O rei, vendo-a assim, pensou que estivesse dormindo, chamou-a: mas já que ela não acordava, por mais que fizesse, o rei, aquecendo-se com tanta beleza [...] (BASILE, 1996, p.55)

Um dia embrenhou-se muito pelo mato, dando aí com uma casa, do que ele ficou muito admirado, e para ela dirigiu-se. Chegando lá, viu uma moça muito bonita, ficando o rei logo muito apaixonado por ela. (ROMERO, 1996, p. 69)

continua…

Fonte:
Silvana da Rosa. Do tempo medieval ao contemporâneo: o caminho percorrido pela figura feminina, enquanto escritora e personagem, nos contos de fadas. Dissertação de Mestrado em Letras. Universidade de Santa Cruz do Sul (UNISC), 2009

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