quarta-feira, 2 de dezembro de 2015

Contos Populares do Tibete (Ngon Tok Gyen: Opame, Chenrezik y Dolma)

O Buda celeste Opame (Amithâba), olhando para baixo desde a sua Terra Pura, contemplou o mundo e viu o sofrimento de todos os seres. Opame sentiu uma grande compaixão por eles. Deste sentimento de compaixão nasceu Chenrezik (valakiteshvara), a encarnação da compaixão, o Senhor da Compaixão.1 As montanhas se abriram e a água saiu em torrentes, cobriu a terra e correu até o Oceano Índico. Chenrezik apareceu numa ilha no centro de Lhasa, e, vendo o sofrimento dos seres, fez o voto de ajudá-los a alcançarem o Nirvana, a realidade última, a paz. Chenrezik fez o voto de não abandonar este mundo sem que todos, até mesmo a última fibra de erva, alcançassem a paz.

Havia no lago muitos seres e todos eles clamavam por um corpo. Ouvindo suas vozes, Chenrezik deu-lhes os corpos que pediam. Mas os corpos eram todos iguais, e, por isso, os seres suplicaram por se diferenciarem uns dos outros. Chenrezik deu, então, a cada um dos seres um corpo distinto, cada um deles característico e diferente dos demais.

Chenrezik, o Senhor da compaixão, pregou o Dharma, o ensinamento de todos os Budas, a fim de que todos os seres do lago, em número incontável, pudessem alcançar o Nirvana. Muitos seres o alcançaram. Mas, cada vez que Chenrezik voltava ao lago, havia muitos mais seres, muitos e muitos mais que os que já havia podido ajudar. De novo, Chenrezik pregou o Dharma, e, de novo, muitos alcançaram o Nirvana.

Quando Chenrezik contemplou o lago pela terceira vez e tornou a ver tantos seres necessitando ajuda, encheu-se de desespero. E compreendendo a impossibilidade da tarefa que se havia imposto, clamou ao Buda celeste Opame para que revogasse o seu voto, pois agora considerava a tarefa demasiado grande para que ele, sozinho, pudesse realizá-la. Em seu desespero e compaixão, o corpo de Chenrezik se fragmentou em inumeráveis pedaços.

Vendo a sua situação, Opame reconstruiu o seu corpo, dando-lhe ainda mais poder para ajudar a todos os seres vivos. Chenrezik tinha agora onze cabeças, coroadas pela cabeça do próprio Opame, e mil braços, e ainda um olho onividente na palma de cada mão.2

Mas, mesmo assim, inclusive com os mil braços e com as onze cabeças, Chenrezik considerou impossível a realização da sua tarefa. Os seres eram incontáveis e suas mentes estavam completamente toldadas por pensamentos impuros. Chenrezik chorou. E, de uma lágrima cristalina de sua face, nasceu Dolma (Târâ), para ser-lhe sua ajuda.3

Assim, pois, não existe um só ser, por insignificante que seja, cujo sofrimento não chegue a ser visto por Chenrezik ou por Dolma, e que não possa ser atingido por sua compaixão.

Notas

1. Amithâba ("luz infinita"), em tibetano Opame (Od-d pag-med), é um dos chamados Chyâni Buddas no budismo tântrico. Estes são aspectos universais, arquetípicos da "bu-deidade", tal como se mostram o espírito em meditação (dhyâna).
A Terra Pura é o chamado Paraíso Sukhâvati ou. Ocidental, no qual reside Amithâba, e que tem dado nome a uma via espiritual centrada na invocação do nome deste, via particularmente florescente no Japão.
Avalokitesvara é como uma extensão de Amithâba, uma emanação sua. Seu nome significa "o senhor que olha para baixo com compaixão", e é, pois, a personificação deste ato de Amithâba.
É a figura mais popular do panteão budista tibetano, e seu mantra (fórmula de invocação) é a oração por excelência de todo tibetano; está presente por igual na devoção popular e nas práticas iniciáticas.
Avalokitesvara, em tibetano Chenrezig (Spv-an-ras gzigs), é igualmente uma figura de primeira ordem em todas as áreas do budismo mahâyâna, como a China e o Japão, onde, na iconografia, assume um aspecto semifeminino algumas vezes, e abertamente feminino em outras, em virtude da doçura misericordiosa que encarna. Na China, é conhecido como Kuan-Yin, e, no Japão, como Kannon.
É um bodhisattva ao qual se atribuem diversas encarnações, e não apenas no mundo dos homens, pois sua compaixão abarca todos os mundos. Em particular, considera-se o Dalai Lama como uma manifestação terrenal sua.
E uma das figuras mais representadas na iconografia budista, principalmente com esta forma (à qual nos aludiremos mais adiante, em nosso relato), de onze cabeças e mil braços, na qual recebe o nome Ekadasmukha.

2. Traduzimos dessa maneira "all-seeing eye". A propósito desta designação e de seu simbolismo, pode ser consultado R. Guénon, Símbolos fundamentais da ciência sagrada, cap. LXXXII, "O olho que a tudo vê", pp. 384-386, Buenos Aires, 1960.

3. Esta é uma das diferentes versões que existem sobre o nascimento de Dolma.

Fonte:
Jayang Rinpoche. Contos Populares do Tibete. (Tradução: Lenis E. Gemignani de Almeida)

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