quinta-feira, 31 de dezembro de 2015

Contos Populares do Tibete (O Moço que se Negava a Matar)

Era uma vez um moço que se chamava Tashi. Tashi não era capaz de se ajustar aos costumes do mundo. Por mais que seu pai se esforçasse, jamais havia conseguido que o moço caçasse para obter comida. Tashi se negava a tirar a vida de quem quer que fosse, e tampouco comia a carne que seu pobre pai levava para casa para a panela familiar.

Tashi tinha três irmãs, que se haviam casado com homens ricos. Amiúde seus pais se lamentavam da má sorte que haviam tido por terem ficado sozinhos com um filho que não seria capaz de sustentá-los em sua velhice, um filho que não queria caçar, e que era, por natureza, muito dócil e pacífico.

— Deveria ter-se tornado monge — dizia a mãe —, porque, de que nos serve este nosso filho? Quando formos velhos, teremos que mendigar às nossas filhas e aos nossos vizinhos para não morrermos de fome.

Esta era a queixa constante dos pais de Tashi, mas, mesmo assim, o moço se negava a tirar uma vida.

— Toda vida é sagrada — dizia; não posso matar outro ser.

Certo dia, o pai de Tashi insistiu para que o rapaz saísse com ele para caçarem juntos. Caminharam durante muitos quilômetros e o pai já estava muito cansado. Havia sido um dia bastante ruim, pois tudo o que havia conseguido pegar tinha sido um coelhinho. E o pai pensou: "É este meu filho, ele me da azar".

O moço estava sentado numa rocha, e enquanto comia sua pobre ração de fruta e queijo, ia gravando a oração de Chenrezik — OM MANI PADME HUM — numa rocha que havia ao lado. Ao largo do caminho, havia outras rochas, nas quais os viajantes também tinham gravado esta oração, pois o caminho conduzia a um santuário muito visitado pelos que passavam por ali.1

Chenrezik, a divindade tutelar e padroeira do Tibete, o Senhor da Compaixão, recebia uma grande devoção da parte do povo.

Quando o pai de Tashi viu o que seu filho estava fazendo, também se pôs a articular em silêncio a poderosa oração, e o fez repetidas vezes, enquanto desfiava, em suas mãos, as contas já gastas do seu rosário. Tirar a vida de alguém era uma coisa contrária às suas crenças como budista, mas ele precisava conseguir comida para a sua mulher; por isso, tratava de matar os animais o mais humanamente possível, rogando por eles ao fazê-lo. Mas era evidente para o pai que nunca iria conseguir que seu filho raciocinasse como ele. O rapaz jamais tiraria uma vida, por mais fome que passassem, e o pai não via saída alguma para esta situação.

Pai e filho seguiram caminhando ainda um pouco mais, sempre atento, o primeiro, para ver se conseguia descobrir algum animalzinho ou ave. De repente, por entre as árvores, viu algo que lhe fez conter a respiração. Ali, no campo que beirava o caminho, estava uma enorme lebre. Era realmente a melhor oportunidade que se havia apresentado para ele, desde há muitas semanas; por isso, decidiu não deixá-la escapar de maneira alguma. Pegando a sua funda, arrastou-se entre as árvores para ter uma perspectiva melhor do animal. A lebre corria em direção a eles, e suas pernas traseiras davam-lhe tal velocidade, que era impossível ao pai fazer bem a pontaria.

De repente, a lebre se deteve, como que percebendo que havia perigo. Mexeu nervosamente o nariz, olhou para um lado e para o outro e aguçou o ouvido. Estava tão perto que o rapaz podia vê-la perfeitamente. O mesmo acontecia com o pai, que já estava prestes a atirar uma grande pedra com a sua funda. Mas Tashi se levantou e gritou: "Não, pai, não! Não a mate!" E a lebre, dando um grande salto no ar, desapareceu num segundo e se escondeu de seu irritado agressor num campo de cevada.

O pai ficou como que atônito durante uns minutos. Sua cara estava pálida e lufadas de cólera subiam-lhe desde dentro. "Por quê?, perguntou ao filho. Por que você fez aquilo?". Tashi ficou perturbado, pois viu que seu pai estava mais irado do que nunca e que, provavelmente, a maior surra da sua vida já estava esperando por ele.

O pai não pôde dominar-se por mais tempo. Apanhando uma grande rocha, avançou em direção ao filho. "Eu vou matar você" — disse —, eu vou matar você, você, meu único filho". Dizendo isto, o pai se dispôs a lançar a pedra na cabeça de Tashi, mas este retrocedeu assustado, rogando ao pai que lhe poupasse a vida. Bem ao lado do caminho, havia uma encosta rochosa, e, ao lado desta, se abria uma pequena caverna. A abertura era somente uma estreita rachadura, mas o rapaz se enfiou por ela e conseguiu escorregar até o seu interior, antes que o pai lhe atirasse violentamente a pedra na cabeça. A pedra atingiu Tashi na perna e o moço gritou de dor.

Uma vez dentro da caverna, Tashi viu que estava a salvo, pois a abertura era demasiado pequena para que seu pai pudesse passar por ela. Tashi não podia fazer idéia das dimensões do seu cárcere de rocha, pois estava escuro e era muito difícil enxergar dentro dele. Avançando palmo a palmo, ao longo de uma das pontiagudas paredes, chegou ao fundo da caverna, que estava apenas a uns metros da entrada. AJi, com a perna sangrando, se estendeu no solo e... perdeu a consciência.

Muitas horas depois, Tashi voltou a si ao ouvir o ruído de passos, e se levantou. A dor o fez recordar tudo o que o havia levado até ali. O ruído de passos se tornava mais forte. Quis gritar pedindo ajuda, mas sua voz estava muito fraca e somente um leve murmúrio saiu dos seus lábios. Algum tempo depois, reunindo todas as forças que pôde, Tashi gritou, e desta vez mais alto. Os passos se detiveram e ele pôde escutar vozes que falavam em voz-baixa desde o exterior da caverna.

De repente, apareceu uma cabeça na abertura, dois olhos procuraram caverna adentro e uma voz gritou para que saísse.

— Não posso mover-me — disse Tashi, estou ferido, e me é difícil caminhar os poucos metros que me separam da entrada da caverna.

A cabeça desapareceu e logo foi substituída por outra. Depois, um pequeno corpo vestido com um hábito passou pela abertura e avançou de rastros pela caverna até Tashi. Este pôde ver que se tratava de um monge, que avançava até ele com os braços estendidos para levantá-lo e levá-lo a um lugar seguro. Uma vez fora da caverna, Tashi viu que eram três monges. Eles viajavam juntos em peregrinação aos lugares santos.

Os monges o levaram a um matagal de plantas delicadas, puseram-no no solo e cuidaram da sua perna. Depois de repartirem com ele a sua comida, os monges pediram a Tashi que lhes contasse a sua história, como havia chegado àquela situação tão penosa. O moço contou-lhes tudo, referindo-se à sua recusa a caçar, e dizendo-lhes como, no fim, seu pai, desesperado, havia pensado em matar a seu único filho.

Os monges escutaram em silêncio. Depois, o monge principal convidou o moço a acompanhá-los em suas viagens. E Tashi assim o fez, vestido com o hábito de um monge mendicante.

Ao fim de alguns dias, os peregrinos chegaram à casa da irmã mais velha de Tashi. O monge principal se aproximou da casa, chamou à porta e, quando apareceu a moça, pediu-lhe uma esmola. Depois de dar comida aos monges errantes, quando estes já se preparavam para partir, a moça perguntou se não teriam encontrado, por seu caminho, seu irmão desaparecido. Disse-lhes que estava desaparecido há muitos dias e que a família estava muito preocupada. O monge principal respondeu-lhe que não o haviam visto, mas que, se isso viesse a acontecer, logo tratariam de dar alguma notícia aos familiares.

A irmã mais velha de Tashi não reconhecera o irmão com o hábito de monge.

Pouco depois, chegaram à casa da segunda irmã do rapaz. De novo, o monge principal se aproximou da casa e pediu uma esmola. Esta lhes foi dada. E foi-lhes perguntado, também, se haviam encontrado o irmão desaparecido. O monge principal respondeu que não e seguiram seu caminho.

Quando chegaram à casa da irmã menor de Tashi para pedir uma esmola; ela reconheceu imediatamente o irmão desaparecido e o estreitou em seus braços, pedindo-lhe que permanecesse com os que lhe queriam bem.

As três irmãs se reuniram na casa da irmã menor e fizeram um banquete para celebrar a volta de Tashi. Os monges foram muito obsequiados pelos parentes do rapaz, os quais lhe pediram que permanecessem como convidados todo o tempo que quisessem. Os monges, entretanto, agradeceram o convite e deixaram a casa da irmã mais nova de Tashi para prosseguirem a sua viagem.

Tashi agradeceu às irmãs por toda a sua ajuda e por todo o seu interesse, mas pediu-lhes que o abençoassem, pois desejava partir e levar a sua própria vida. As irmãs se entristeceram ao ver seu único irmão sair para enfrentar o mundo e deram-lhe, como presente, um cavalo mágico que falava.2 Tashi pegou o cavalo e se dirigiu para as regiões mais remotas do país.

Ainda não havia ido muito longe, quando alcançou uma vasta planície. O cavalo lhe disse, então: — Mate-me. Estenda a minha pele sobre a planície e espalhe as minhas cerdas por todas as partes, para que o vento as leve aos confins desta planície.

O rapaz ficou horrorizado e negou-se a matar o cavalo. Em lugar disso, depositou seu fardo no chão, comeu o que suas irmãs lhe haviam dado e se dispôs a passar a noite ali. Mas, durante a noite, enquanto Tashi dormia, o cavalo lançou-se de um precipício escarpado e matou-se.

Quando Tashi se levantou, pela manhã, procurou o cavalo, mas não o encontrou em parte alguma. Explorando toda a planície, o rapaz chegou ao precipício e, olhando para baixo, viu o corpo destroçado do cavalo. Sentindo invadir-lhe uma tristeza enorme e pensando na conversa na noite anterior, Tashi decidiu fazer o que o cavalo lhe havia pedido. Pegou a pele, estendeu-a no centro da planície, e depois espalhou as cerdas do cavalo por todas as partes, lançando-as ao ar para que o vento as levasse até os confins mais distantes da planície.

Imediatamente, a pele do cavalo se converteu numa grande mansão e as cerdas se converteram em ovelhas e iaques, que pastaram pela planície até se perderem de vista. O cavalo tornou a aparecer a Tashi e assim lhe falou:

— Você tem mostrado uma grande compaixão para com todos. Esta é a sua recompensa.

Dizendo estas palavras, o cavalo partiu a galope e desapareceu ao longe. E Tashi notou que no chão, por onde os cascos do cavalo haviam tocado, haviam aparecido montinhos de ouro.

Inspecionando a sua nova casa, Tashi pensou nos pais e se perguntou como estariam se arranjando para sobreviver. Decidiu-se a ir vê-los e a trazê-los para viverem com ele na mansão. "Meus pais nunca hão de precisar buscar por comida, nunca mais", disse a si mesmo.

E assim pensando, o moço se vestiu novamente com o hábito de monge, pois não queria que seus pais soubessem de sua recém-adquirida fortuna. Depois, apanhou duas tortas e se dirigiu à casa dos pais. Ao chegar a esta, encarapitou-se no telhado, espiou por uma pequena janela e viu os pais acocorados diante do fogo. Tashi deixou cair uma das tortas. Sua mãe a agarrou, dizendo: "É um presente dos deuses!" Mas o pai, esfaimado, arrancou a torta das mãos da mãe, e se pôs a comê-la com avidez. Tashi deixou cair, então, a outra torta para a mãe. Depois, desceu do telhado e chamou à porta. Sua mãe abriu-a e, imediatamente, reconheceu o filho. Estreitou-o nos braços e pediu-lhe que não voltasse a deixá-los. O pai, embargado de emoção, pediu perdão a Tashi.

Tashi contou-lhes sobre sua nova casa e sobre sua riqueza, e os levou a viver com ele, na planície. Ali, colocou a mãe num trono de ouro puríssimo; fez o pai sentar-se num trono de prata puríssima. E quanto a ele, o único filho varão, sentou-se num trono de madrepérola puríssima, também.
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Notas
1. A propósito do mantra de Avalokitesvara (Chenrezik), a fórmula sagrada por excelência do budismo tibetano, gostaríamos de citar as palavras do Lama Anagarika Govinda: "Está nos lábios de todos os peregrinos, na reza dos moribundos, na confiança dos vivos. É a melodia eterna do Tibete, que o homem religioso percebe no murmúrio dos regatos, no rumor das cascatas ou no fragor das tempestades; e que saúda o ser humano desde os rochedos e desde as pedras-mam, que o acompanham por todas as partes, ao largo dos caminhos e dos escarpados desfiladeiros". (Fundamentos da Mística tibetana, Madri, 1975, p. 29). É numa dessas "pedras-mani" que grava Tashi em nosso relato; existem em grande número no Tibete e nas regiões limítrofes, Podem tratar-se de pedras isoladas ou de pequenos muros, e quando um budista passa junto a uma delas, deve contorná-la no sentido das agulhas do relógio, deixando-a sempre à sua direita, como se faz com os chôrten e outros símbolos sagrados. Para uma boa ilustração de uma pedra-mani, consulte-se Javier Gómez Rea e Dedvan Sen: Himalaia, os mosteiros dos auras. Coleção "O Universo do Espírito", n." 1, Madri, 1985, pp. 20-21.
2. O tema do "cavalo que fala" é muito frequente nas lendas tibetanas, e se encontra vinculado, em particular, à figura do rei Gesar de Ling e ao mito de Sambhala.


Fonte:
Jayang Rinpoche. Contos Populares do Tibete. (Tradução: Lenis E. Gemignani de Almeida).

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