O
pequenino livro, em que me atrevo
a
mudar numa trêmula cantiga
todo
o nosso romance, ó minha amiga,
será,
mais tarde, nosso eterno enlevo.
Tudo
o que fui, tudo o que foste eu devo
dizer-te:
e tu consentirás que o diga,
que
te relembre a nossa vida antiga,
nos
dolorosos versos que te escrevo.
Quando,
velhos e tristes, na memória
rebuscarmos
a triste e velha história
dos
nossos pobres corações defuntos,
que
estes versos, nas horas de saudade,
prolonguem
numa doce eternidade
os poucos meses que vivemos juntos.
PERCEVAL
Ele,
o monge, dizia: "Eu fui glorioso e forte:
chamavam-me,
no mundo, o Belo Perceval...
Muito
alfanje inimigo, embaixador da morte,
estalou
no broquel pregado ao meu braçal!
Por
Brancaflor venci, sozinho, uma coorte;
zombei
do Rei Artur, matando-lhe o rival;
ao
brilho do meu nome e esplendor do meu porte
eu
conquistei a glória, um trono e o Santo Graal!
Depois...
fiz-me eremita. E, à sombra de uma penha,
eu
vesti, sem amor, sem fé, sem esperança,
sobre
a armadura de aço o manto de estamenha...
Porque
— ai de mim! — se o meu arnês nunca sequer
deixou
que perpassasse a ponta de uma lança,
também não quis que entrasse o olhar de uma
mulher!"
DOR
OCULTA
Quando
uma nuvem nômade destila
gotas,
roçando a crista azul da serra,
umas
brincam na relva; outras, tranquila,
serenamente
entranham-se na terra.
E
a gente fala da gotinha que erra
de
folha em folha e, trêmula, cintila,
mas
nem se lembra da que o solo encerra,
da
que ficou no coração da argila!
Quanta
gente, que zomba do desgosto
mudo,
da angústia que não molha o rosto
e
que não tomba, em gotas, pelo chão,
havia
de chorar, se adivinhasse
que
há lágrimas que correm pela face
e outras que rolam pelo coração!
FELICIDADE
Ela
veio bater à minha porta
e
falou-me, a sorrir, subindo a escada:
"Bom
dia, árvore velha e desfolhada!"
E
eu respondi: "Bom dia, folha morta!"
Entrou:
e nunca mais me disse nada...
Até
que um dia (quando, pouco importa!)
houve
canções na ramaria torta
e
houve bandos de noivos pela estrada...
Então,
chamou-me e disse: "Vou-me embora!
Sou
a Felicidade! Vive agora
da
lembrança do muito que te fiz!"
E
foi assim que, em plena primavera,
só
quando ela partiu, contou quem era...
E nunca mais eu me senti feliz!
SONETO
ÚNICO
Vejo
a sombra partir-se pelo meio
e
pôr-me duas pálpebras na face;
minha
boca de sede bebe o seio
de
alguma estrela que me amamentasse;
tem
um peso de terra o corpo alheio
que
há no meu corpo; em meus ouvidos nasce
uma
árvore cantando um vento cheio
de
céu em cada enlace e desenlace;
em
minhas mãos paradas pousam ninhos;
vão
os passos de todos os assombros
andando
as minhas veias de caminhos;
e
há, para o vôo aceso numa aurora,
pressentimentos
de asas nos meus ombros
— quando a Moça da Foice me namora.
LÍRICA
CAMONIANA
A Camoniana é composta por 26 sonetos de sabor camoniano
que registram estados emocionais de um
breve mas intenso e atribulado caso de amor do poeta, já na meia idade.
[TRISTEZA]
Tristes
versos que a pena entristecida
Foi,
por o gosto de penar, traçando,
Sem
saber que me estava retalhando,
A
alma, o peito, a razão, o sonho, a vida:
Em
quais terras da terra será lida
A
confidência que ides confiando?
E,
bem mais e melhor que lida, quando,
Em
qual tempo dos tempos, entendida?
Às
terras, e ainda aos tempos mais diversos,
Ide,
sem pressa aqui, ali sem pausa,
Pois
só por o partir foi que partistes.
Qual
glória heis de esperar, meus tristes versos,
Se
já vos falta aquela vossa causa
De serdes versos e de serdes tristes?
[PAIXÃO]
Se
isto de amar é só viver morrendo
E
achar-me de tal morte satisfeito;
Não
do meu ser, mas de outro, ser sujeito,
Sendo
menos quem sou do que outrem sendo;
Se
é ao meu coração ir prometendo
Lugar
conforme num alheio peito,
E,
em se ele mais mostrando, de tal jeito,
Das
suas mostras mais ir-me escondendo;
Se
isto é amor, e se a Fortuna é essa
Que
se exp'rimente em mim a sua lei;
Se
uma esquivança após de uma promessa
E
o nada ter é tudo o que terei:
Que
lhe sei já pedir, que me não peça?
Que me pode já dar, que lhe não dei?
[POSSE]
Tanto
de vossa vida vivo ausente,
Quanto
perto viveis de minha vida:
Onde
presente sou, sois escondida,
Onde
sou escondido, sois presente.
Mandais
que vossa vida se acrescente,
Não
de alguma outra coisa prometida,
Que
não da coisa que não for vivida,
E
com coisa outra alguma se contente.
Porém,
se tenho eu pouco e tendes muito,
Igual
parte provamos de igual fruito,
Pois
responde o que quero ao que podeis.
Vede
que um mesmo engano é o meu, e é o vosso:
Por
minha quero ter-vos, e não posso,
Por
vosso podeis ter-me, e não quereis.
[AUSÊNCIA]
A
qual parte vos fostes, que vos vejo
Mais
que nunca presente em toda parte?
Tanto
sois para mim que, se o que parte
É
muito, inda o que fica me é sobejo.
A
cada instante meu, a cada ensejo,
Tão
bem, por formas tais e de tal arte
Vossa
apartada imagem se reparte,
Que
nada mais já sobra ao meu desejo.
Qual,
fugindo da terra, pela altura
Vai-se
o sol, tal vos fostes, ordenando
Que
a meus pés fique a sombra sobre o pó.
Tanto
o vosso rigor nisso se apura,
Que
em vos partindo só, e em me deixando,
Nem me deixais o gosto de ser só.
[IMORTALIDADE]
Alma
que de meu corpo te apartaste,
Corpo
que de minh'alma te partiste,
E
que dest'arte em dois me repartiste,
E
numa só desdita a ambos juntaste:
Qual
vida é igual à morte que inventaste?
Qual
morte mais do que tal vida é triste?
Que
humano ser tão desumano existe
Que
haja sua igualdade em tal contraste?
Ante
a razão porque a razão cativa
No
próprio cativeiro acha conforto,
E
às vezes se abandona, outras se esquiva,
Chego
a quedar-me ante mim mesmo absorto,
Alma
sem corpo, que não sei se é viva,
Corpo sem alma, que não sei se é morto.
[DIVAGAÇÃO]
Naquela
solidão, naquela altura
Onde
os olhos nos montes apascento,
E
é o sonho, no seu doce alheamento,
Mais
verde d'esperança que a verdura;
Onde
a vida adormece, e de mistura
Aos
sentidos se afaz o entendimento,
Ali
me vos figura o pensamento,
Branda
de pensamento e de figura.
Que
é minha condição, meu mal sobejo
Andar
a minha vista revistando
Apenas
o que avista o meu desejo.
Sem
ventura de mim que, imaginando,
Se
vos não vejo, sonho que vos vejo,
E se vos vejo, cuido estar sonhando!
E se vos vejo, cuido estar sonhando!
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