quarta-feira, 14 de fevereiro de 2018

Érico Veríssimo (As Aventuras de Tibicuera) Capítulos 9 a 12

9 — UM BELO ESPETÁCULO
Foram dias de festa para nós. Os marinheiros portugueses desembarcaram e espalharam-se por toda a praia. Riam, falavam alto, cantavam, dançavam. Tocavam instrumentos estranhos. Cantavam numa língua que nós achávamos barbaramente arrevesada. Davam aos índios espelhos, colares e outros objetos: recebiam em troca pedras coloridas, arcos, flechas, potes de barro...

Às vezes o pajé aparecia à entrada de sua oca, olhava os marinheiros, sorria, voltava para dentro de sua morada e ficava fumando cachimbo em
silêncio.

Havia na enseada um ilhéu. Foi nele que os portugueses rezaram a primeira missa. Nunca tínhamos visto aquilo. De olhos arregalados e em profundo silêncio escutamos e olhamos... Não perdemos um gesto, um som. Quando o capelão da armada (naquele tempo eu não conhecia estes nomes...) ergueu no ar o ostensório, tive a impressão de que era o próprio sol que de repente brilhava nas mãos dele. Fiquei deslumbrado. Senti um nó na garganta. Julguei que ia chorar. Eu, um guerreiro!

Dias depois os portugueses saíram em procissão, levando dois pedaços de madeira pregados em cruz. Plantaram-no a pouca distância do mar. Houve nova missa.

Uma noite, enquanto todos dormiam, fui olhar a grande cruz. A noite estava clara. Imaginei-me diante dum gigante negro de braços abertos. Eu sentia qualquer coisa que não sabia dizer que era. A cruz me deixava mudo, com um peso no peito. Naquela noite dormi à sombra dela.

Quando os navios portugueses se aprontaram para partir, o pajé mandou levar ao comandante da armada muitos presentes: cocares, enduapes, pedras preciosas, potes de barro, penas coloridas... O chefe branco — que hoje eu sei que se chamava Pedro Álvares Cabral — recebeu os presentes e decerto achou que eles significavam isto: “Chefe branco, eu te mando estas coisas porque eu e minha gente gostamos de ti e de teus homens e queremos viver em paz com a raça branca.” Na verdade, porém, a intenção do pajé fora outra. Ele quisera dizer: “Mando-vos estes presentes como pagamento das horas divertidas que nos fizestes passar.”

As velas ficaram inchadas, batidas pelo vento. Um canhão deu três salvas. As naus começaram a se mover na direção do mar alto. Aos poucos se foram sumindo...

Os índios ficaram reunidos na praia. Faziam gestos amigos, pulavam. Muitos traziam no pescoço colares e miçangas. As mulheres se olhavam nos pequenos espelhos.

Ficaram conosco dois brancos, que choravam.

O pajé viu as naus se sumirem no horizonte e depois falou:

— Foram-se. Que belo espetáculo!

E durante vários meses não disse mais nada.

10 — ENCONTREI CURUPIRA NO MATO
Se não me falha a memória, foi pouco tempo depois da partida dos portugueses que encontrei Curupira no mato. Andava eu muito orgulhoso dos meus músculos e de minha coragem. Tinha caçado a minha décima segunda onça e tomado parte na minha vigésima guerra. Trazia doze cicatrizes no corpo e tinha muitas caveiras de chefes inimigos na minha caiçara.

Um dia, no meio do mato, dei de repente com o Curupira. Era ele mais feio que o índio mais pavoroso de todas as tabas de Pindorama. Tinha cabelos cor de fogo das fogueiras de guerra. Trazia na mão um maracá, que sacudia como um desesperado, deixando a gente zonza e surda. Olhei para os pés da aparição. Eram torcidos, voltados para trás. Não havia dúvida. Era mesmo Curupira.

Aprontei arco e flecha e disparei o tiro. Pobre de mim! A flecha caiu a dois passos de meus pés, mole e sem força. Curupira matraqueava, matraqueava como um louco. Seus cabelos chispavam. Seu corpo era uma piorra. Seus olhos, dois vagalumes de brilho verde.

Fiquei tão assustado que saí a correr e a gritar. Cheguei sem fala à taba. Os índios me cercaram. Deram-me cauim a beber. Quando o pavor me deixou o corpo, pude dizer:

— Pajé, não tenho medo de homem. Que é que vou fazer para vencer os espíritos do mato?

O feiticeiro sacudiu a cabeça.

— Ninguém pode com eles. Ninguém.

Agora não era mais o medo e sim a raiva que não me deixava falar.

11 — O SEGREDO DO PAJÉ
Um dia o pajé me chamou à sua oca. Entrei. Fui recebido com esta pergunta:

— Tibicuera, qual é o maior bem da vida?

— A coragem — respondi sem esperar um segundo.

— Só a coragem?

Embatuquei. O pajé ficou sorrindo por trás da fumaça do cachimbo. Gaguejei:

— A... a...

O feiticeiro me interrompeu:

— O pajé é corajoso. Mas de que vale isso? Seu braço não pode levantar o tacape, seus pés não têm mais força para correr.

— Oh! — exclamei. — Mas tu és poderoso, sabes de remédios para todas as dores, consegues tudo com tuas mágicas.

O pajé continuou a sorrir. Sacudiu a cabeça:

— Ilusão — disse.

Depois dum silêncio curto tornou a falar:

— O maior bem da vida é a mocidade. Um dia Tibicuera fica velho. Atirado na oca, fazendo rede. Não pode mais ir para a guerra. O jaguar urra no mato e Tibicuera não tem força para manejar o arco. Tibicuera é mais fraco que mulher.

Escancarou a boca desdentada. Eu escondi o rosto nas mãos para não enxergar o fantasma da minha velhice.

— Pajé... Tibicuera não quer ficar velho. Ensina-me um remédio para vencer o tempo, para vencer a morte. Tu que sabes tudo, que viste tudo, que falaste com o grande Sumé.

O pajé continuava a me olhar com os olhos espremidos. Bateu na testa com o dedo indicador da mão direita.

— O remédio está aqui dentro, Tibicuera. Não há feitiçaria. O pajé gosta de ti. Ele te ensina. Escuta. O tempo passa, mas a gente finge que não vê. A velhice vem, mas a gente luta contra ela, como se ela fosse um guerreiro inimigo. Os homens envelhecem porque querem. Só muito tarde é que compreendi isso. Tibicuera pode vencer o tempo. Tibicuera pode iludir a morte. O remédio está aqui. — Tornou a bater na testa. — Está no espírito. Um espírito alegre e são vence o tempo, vence a morte. Tibicuera morre? Os filhos de Tibicuera continuam. O espírito continua: a coragem de Tibicuera, o nome de Tibicuera, a alma de Tibicuera. O filho é a continuação do pai. E teu filho terá outro filho e teu neto também terá descendentes e o teu bisneto será bisavô dum homem que continuará o espírito de Tibicuera e que portanto ainda será Tibicuera. O corpo pode ser outro, mas o espírito é o mesmo. E eu te digo, rapaz, que isso só será possível se entre pai e filho existir uma amizade, um amor tão grande, tão fundo, tão cheio de compreensão, que no fim Tibicuera não sabe se ele e o filho são duas pessoas ou uma só.

Eu olhava para o pajé, mal compreendendo o que ele me ensinava. O feiticeiro falou até madrugada alta. Quando voltei para minha oca fiquei longo tempo olhando meu filho que dormia na rede.

E eu me enxerguei nele, como se a rede fosse um grande espelho ou a superfície dum lago calmo.

12 — A HISTÓRIA É UMA MARAVILHA
Se me pedissem uma definição de História, eu diria: “É a narrativa da aventura do Homem no Mundo.” Ou então: “É um romance de aventuras que se passa na Terra e tem como personagem principal a Humanidade.”

Tenho vivido tanto, que não sei se estas definições são minhas mesmo ou se eu as ouvi ou li de alguém no decorrer de meus quatrocentos e tantos anos de vida.

Um dia destes, lendo a “Pequena História do Mundo” de meu caro amigo H. G. Wells, famoso escritor inglês, encontrei este trecho: “A História do
nosso mundo é ainda muito imperfeitamente conhecida. Há coisa de um par de séculos os homens só eram senhores da História dos últimos três mil anos. O que havia acontecido antes era objeto de lenda e especulação.”

Mas, seja como for, a História é uma maravilha. A gente para no meio da rua e grita:

— Quem foi que descobriu o Brasil?

O garoto que está vendendo jornais levanta o dedinho e grita:

— Foi “seu” Pedro Álvares Cabral!

No entanto eu, Tibicuera, guerreiro da taba tupinambá, homem de trinta anos, não saberia responder a essa pergunta no próprio ano de 1500! E o Brasil por assim dizer tinha sido descoberto a poucos palmos do meu nariz...

Vi os portugueses chegarem. Tomaram conta da terra. Plantaram a cruz. Rezaram duas missas. De novo se fizeram ao mar. E não compreendi que se tratava do descobrimento do Brasil!

A vida para mim continuou a ser a mesma de antes. Correrias pela beira do mar. Guerras. Caçadas. Aventuras. Nasciam crianças na taba. Os velhos morriam. Vinham grandes chuvas. Passavam-se luas e sóis. E o tempo seguia na sua marcha misteriosa, como uma grande cobra que vai deslizando, sem mostrar a cabeça nem a ponta do rabo, isto é: um monstro sem princípio nem fim.

No entanto, abro a História do Brasil e, após vinte minutos de leitura fácil, fico sabendo do que se passou antes do descobrimento e nos cinquenta anos que se lhe seguiram.

Positivamente: a História é uma maravilha!

Fonte:
Érico Veríssimo. As aventuras de Tibicuera, que são também do Brasil. (Texto revisto conforme Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa em vigor em 2009). Porto Alegre: Edição da Livraria do Globo, 1937.

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