segunda-feira, 26 de fevereiro de 2018

Érico Veríssimo (As Aventuras de Tibicuera) Capítulos 29 a 32

29 — TIBICUERA INCENDIÁRIO
Saltei para cima duma jangada e me pus a remar na direção das naus. O mar estava calmo. A noite, escura. Aproximei-me de um navio sem ser visto. Minha cara devia estar horrenda à luz daquela tocha que ardia na minha mão. Joguei a tocha sobre as velas e o cordame de uma das naus. Quando a embarcação holandesa prendeu fogo, não pude deixar de soltar um berro de alegria. E como ardeu ligeiro o belo barco! O clarão se ergueu, iluminando o mar. Correu gente para a praia. O pavor tomou conta da alma dos marinheiros que guardavam os navios. Foi uma gritaria infernal. Lancei-me n’água calmamente e nadei sem ruído na direção do Capibaribe. Só de madrugada é que voltei ao arraial. Matias de Albuquerque me apertou a mão. Fui dormir contente e sonhei com Anchieta.

Tudo ia muito bem para as nossas armas quando um tal Domingos Fernandes Calabar, que era dos nossos, passou para o lado dos holandeses e guiou-os em vários ataques com sucesso. Conhecia a nossa tática. Conhecia o terreno. Era astuto. Foi a nossa desgraça. Levamos sustos tremendos. E dentro de algum tempo todos os outros redutos de defensores de Pernambuco estavam vencidos. Só restava o nosso arraial. Fomos cercados. Aos poucos se tornaram escassos os mantimentos e as munições. Tivemos de nos entregar. E sabem quanto tempo se sustentou o Arraial de Bom Jesus nas suas guerrilhas? Não foram cinco dias nem cinco semanas ou cinco meses, mas sim cinco anos!

Tínhamos resolvido não cair vivos nas mãos dos inimigos. Matias de Albuquerque e um punhado de homens, entre os quais eu me achava, fizeram uma notável retirada. Não devo esquecer o nome do valente índio Caramuru, companheiro de todas as horas, e de Henrique Dias, que comandavam um grupo de pretos, gente boa também.

Nem queiram saber os trabalhos que passamos nessa retirada...

Chegamos quase exaustos a um lugar chamado Porto Calvo, que antes fora dos nossos e agora estava ocupado por uma guarnição holandesa. Quando percebemos que Calabar se encontrava entre os soldados inimigos, o cansaço desapareceu do nosso corpo e só tivemos um desejo: tomar a praça e castigar o traidor. Caímos de surpresa no arraial e tomamos conta dele, depois duma luta rápida e feroz. Matias de Albuquerque mandou enforcar Calabar. Por mais estranho que pareça, cheguei a suplicar que não o matassem. Não sei por que... Eu tinha a impressão de que era meu amigo Anchieta que falava por minha boca. Mas tudo foi inútil. Lá ficou pendurado num galho de árvore o corpo sem vida de Domingos Fernandes Calabar.

Certa noite uma tempestade nos apanhou no mato. Quando serenaram os relâmpagos e os trovões e a lua tornou a brilhar, vi que estava perdido, longe de minha gente.

30 — MAURÍCIO DE NASSAU
Segui sozinho... Quanto tempo andei a caminhar às tontas! 

Por aquela época muita coisa aconteceu. A Companhia das Índias Ocidentais mandou para o Brasil o Conde Maurício de Nassau para governar a colônia e garantir a sua posse para a Holanda.

Em 1637 chegou ele a Pernambuco. Era um homem inteligente e justiceiro. Enxergava claro e longe. Ele mesmo fazia os traçados das ruas, cuidava da arquitetura da cidade. Recife fez progressos espantosos. Um dia lá cheguei e abri a boca de espanto. Não era a mesma Recife de poucos anos atrás. O que mais me seduziu nela foi o palácio de Nassau.

Consegui um lugar nas cavalariças do conde. Aprendi meia dúzia de palavras holandesas. Nunca hei de me esquecer do tempo que passei à sombra daquele grande homem. Porque foi ele quem primeiro me despertou a paixão pelos livros. Nos tempos do colégio de Piratininga, os poucos livros que lá existiam me eram quase indiferentes. Eu amava era Anchieta. A tudo mais que não fosse aquele homem extraordinário eu era cego e surdo.

O dia mais feliz dos que passei no palácio de Nassau foi o em que me foi dado abrir um dos ricos livros da biblioteca do conde. Era uma linda Bíblia com iluminuras.

Uma vez vi o conde contemplando um globo terrestre Comecei a ter desejos de conhecer a Europa, de mudar de vida e ser finalmente um cidadão de boas maneiras. Nada disso, porém, me impediu de ficar contente ao saber que uma armada portuguesa se aproximava do Recife. Essa armada, entretanto, foi derrotada.

Uma tarde chegou às cavalariças do palácio esta notícia importante: Portugal se libertara do domínio da Espanha. Houve festas em Recife. O povo pensava que a invasão holandesa tinha sido motivada apenas pela inimizade entre Holanda e Espanha. Puro engano. Nassau não quis abandonar o Brasil.

31 — EXPULSAMOS OS INVASORES
Nas capitanias os patriotas se reuniam, se armavam e dentro de pouco tempo a guerra se acendeu de novo. Comecei a ficar inquieto. Esqueci os livros. Esqueci Nassau. Esqueci tudo. Fugi. Procurei os revolucionários. Servi sob as ordens de André Vidal de Negreiros, um dos chefes dos patriotas.

Contar os altos e baixos dessa campanha é correr o risco de fazer vocês bocejarem. Uma batalha dificilmente é diferente de outra batalha. Foi nos Montes Guararapes que vencemos os holandeses duas vezes. Foi uma espécie de “melhor das três”, como essas que estamos habituados a ver hoje nos campeonatos de futebol. Os patriotas ficaram campeões. Em 1654 findou o domínio holandês no Brasil.

Ficaram na História os nomes de muitos valentes: André Vidal de Negreiros; Matias de Albuquerque; João Fernandes Vieira; o índio Felipe
Camarão; Henrique Dias. E vocês já pensaram nos guerreiros esquecidos? Bom. Não vou propor um monumento ao herói desconhecido da História do Brasil. Nem estou dando a entender que meu nome deva ser colocado em destaque nos livros escolares que narram as prodigiosas aventuras deste nosso prodigioso Brasil.

32 — AS BANDEIRAS
Tibicuera continuava. O pajé tinha razão. O espírito pode vencer o tempo e a morte. O Brasil ia para diante. E eu, junto. Viam-se por todos os lados sinais de progresso. Cidades florescendo. Engenhos. Algumas estradas. E essa coisa muito importante que é a consciência nacional. Quero dizer: o Brasil já começava a se sentir como uma nação unida, composta de homens que no momento necessário se reuniam para combater pelo bem comum.

De 1531 a 1772 as bandeiras exploraram as regiões desconhecidas do Brasil. Quando falo em bandeira não me refiro a esse pano colorido que é um símbolo, mas sim às expedições que saíam a desbravar os sertões. Porque havia em nossa pátria zonas vastíssimas e desconhecidas. Sem dúvida alguma existiam imensos tesouros escondidos. Formavam-se então muitas bandeiras, chefiadas por homens corajosos e audazes. Muitos iam apenas com o olho no lucro. Procuravam ouro e pedras preciosas. Caçavam índios — negócio tristemente lucrativo. Mas havia outros que eram levados pelo amor à aventura e pelo desejo de fazer alguma coisa pelo país. Mas não resta dúvida de que todos revelaram uma coragem assombrosa e prestaram serviços enormes à pátria, alargando-a, povoando-a, redescobrindo-a.

Tomei parte na célebre bandeira de Fernão Dias Pais. Foram aventuras tremendas que não conto aqui para não encompridar a minha história. Tive notícia de outros bandeirantes famosos: Bartolomeu Bueno da Silva; Antônio Raposo Tavares — que teve o mau gosto de atacar as missões de Guaíra, só porque estas asilavam os pobres índios que não queriam ser escravos dos bandeirantes; Antônio Pires de Campos e outros que não cito porque no fim de contas a História não se faz só com nomes próprios. ..

Nunca me senti muito atraído pelas pedras preciosas nem pelo ouro. O que me arrastava era o espírito de aventura. Um dia presenciei uma cena comovente. Vi um homem morrer picado por uma cobra venenosa. Nossos socorros chegaram tarde. E o coitado estava estendido no chão, olhando com olhos arregalados para o saco cheio de esmeraldas que tinham a seu lado. De que lhe serviam aquelas pedras? Não o podiam salvar...

Quando voltei para a cidade de Recife contaram-me que havia explodido uma revolta no Maranhão. O povo estava desgostoso com o governo. Prendeu o capitão-mor e tomou conta da cidade. Manuel Beckmann era o cabeça da insurreição. Houve festas. Mas a alegria de pobre não dura muito.

Gomes Freire de Andrade veio de Portugal para acabar com a brincadeira. Beckmann fugiu. Um afilhado o atraiçoou e o revolucionário foi enforcado. Disse alguma coisa antes de morrer. E essa alguma coisa faz que a gente hoje considere Manuel Beckmann como um dos primeiros homens que sonharam com a independência do Brasil.

Mas não quero insistir nesses detalhes porque tenho a contar a vocês uma aventura impressionante.

Fonte:
Érico Veríssimo. As aventuras de Tibicuera, que são também do Brasil. (Texto revisto conforme Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa em vigor em 2009). Porto Alegre: Edição da Livraria do Globo, 1937.

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