25 — OLHEM A HOLANDA
Examinem um mapa dessa pobre Europa desgraçada pela guerra. Estão vendo aquele pequeno país apertado entre a Bélgica, a Alemanha e o Mar do Norte? É a Holanda. Tem apenas 33 000 quilômetros quadrados. É menor que o nosso Estado de Sergipe. Tem pouco mais de oito milhões de habitantes. Era um exemplo de paz e trabalho, o que não impediu que os exércitos de Hitler a invadissem, bombardeando-lhe implacavelmente as cidades e aldeias. Em pouco tempo a bela terra dos moinhos e das tulipas foi dominada pelo invasor. No mundo moderno a Holanda não é o que se chama uma Grande Potência.
Entretanto, no século XVII a situação da Holanda era diferente. Os holandeses eram um povo de marinheiros, de descobridores, de conquistadores, de colonizadores. (A maior conquista que fizeram até hoje foi a da própria terra, que eles arrebataram corajosamente ao mar. Não esqueçam de que a Holanda é um país que fica abaixo do nível do mar.) Com apenas um milhão e quinhentos mil habitantes, era a Neerlândia uma potência naval de primeira ordem. Vivia em guerra com as outras grandes nações da Europa daquele tempo: Espanha, França e Inglaterra.
Na Europa contavam-se maravilhas do Brasil. Era uma terra prodigiosamente rica: dava pedras e madeiras preciosas, dava ouro, dava prata, dava tudo. Ora, os holandeses, que já tinham fundado a Companhia das Índias Orientais, para explorar a Índia, resolveram promover o Brasil à categoria de Índia e criaram a Companhia das Índias Ocidentais.
A Holanda não se achava em guerra com a Espanha? O Brasil não pertencia agora à Coroa espanhola? Aí estava uma boa desculpa...
26 — A PRIMEIRA INVASÃO HOLANDESA
Estávamos no ano de 1624. Eu me encontrava na Bahia, já cansado de alguns anos de vida sem aventuras. De repente ouvi uma gritaria que vinha dos lados da praia. Corri para lá e me aproximei dum grupo que falava alto e apontava para a entrada da enseada. Uns vinte e seis navios viajavam na direção do porto. Traziam bandeiras desconhecidas nos mastros. Era um espetáculo maravilhoso o daquelas velas branquejando entre o mar verde e o céu azul.
Amigos ou inimigos? — era a pergunta que todos faziam.
Em breve ficamos sabendo de tudo. Tratava-se duma armada holandesa — uma frota de 26 naus — com 3000 homens e mais de quinhentas bocas-de-fogo. O governador da Bahia preparou-se para defender a cidade. Os holandeses deram um tiro de salva. Mandaram emissários com uma bandeira de paz. Mas os defensores da cidade responderam à salva com um tiro de verdade.
Começou a batalha. Eu dava pulos, não sabendo que fazer. Estava desarmado. Não conhecia ninguém. Não tive outro remédio senão ficar olhando da praia, bem como um “torcedor” olha uma partida de “pingue-pongue”, voltando a cabeça dum lado para outro, olhando os tiros dos navios para a cidade e da cidade para os navios.
Para resumir: os holandeses venceram, tomaram conta de Salvador. E ainda não tinham morrido os ecos de suas trombetas e de seus gritos de vitória, quando surgiu uma expedição luso-espanhola comandada por D. Fradique de Toledo Osório e acabou a festa dos invasores. Houve luta feroz. Os holandeses foram derrotados e D. Fradique e sua gente entraram festivamente na cidade.
Eu estava revoltado. Fora obrigado a assistir às lutas, por assim dizer, de camarote. Isso era contra o meu temperamento. Oh! Mas eu mal sabia que os holandeses ainda nos iam dar trabalho.
Se eu quisesse contar com minúcias o que foram as nossas guerras contra as duas invasões das gentes de Holanda, teria de escrever quinhentas páginas e ainda ficaria muita coisa por contar.
27 — A SEGUNDA INVASÃO
O Brasil era uma tentação. A Holanda preparou durante o ano de 1629 uma grande frota de 50 navios com o fim de empreender a conquista definitiva do Brasil. (É bom notar que essa grande frota hoje poderia ser içada inteirinha para bordo do transatlântico “Normandie”, sem perturbar em absoluto a vida dos passageiros ou o trabalho da tripulação...)
Dessa vez o alvo dos conquistadores foi Recife, cuja defesa era comandada por Matias de Albuquerque. Em breve chegaram a meus ouvidos os ruídos da batalha. Os patriotas resistiram, mas cinquenta navios, 1100 canhões e 8000 homens treinados na arte da guerra não são brincadeira de criança. Recife e Olinda foram tomados em fevereiro de 1630 e Matias de Albuquerque, com os homens que lhe restavam, fundou uma praça de guerra — o Arraial do Bom Jesus — entre os Rios Beberibe e Capibaribe.
Ora, por esse tempo eu tinha algumas economias. Comprei um burro, montei nele e fui para o Recife. A viagem foi dura O burro morreu no caminho, vítima de uma onça. Mas a onça também ficou estendida na estrada, porque Tibicuera não tinha esquecido suas artimanhas de caçador.
Mais morto que vivo cheguei ao Arraial do Bom Jesus e me apresentei a Matias de Albuquerque. Ganhei um facão, um arcabuz e uma espada.
28 — GUERRA DE EMBOSCADAS
Que podia fazer um grupo de homens mal-armados contra oito mil soldados profissionais? A única esperança nossa estava na guerra de emboscadas. Uma noite fui escolhido para comandar um grupo que saiu na direção do Recife. A escuridão era grande, pois no céu não havia lua e as estrelas
estavam quase apagadas. Caminhavam em silêncio, às vezes nos arrastando como lagartos. À margem do Beberibe encontramos uma patrulha holandesa. Seriam uns vinte soldados. Vinham cantando e falando alto. Como achei estranha e pitoresca a língua deles! Ficamos acocorados atrás de arbustos, esperando.
Quando os inimigos se aproximaram, soltei um berro: “Agora!” Nossos homens se precipitaram. Foi uma luta corpo a corpo. Procurávamos evitar que os inimigos gritassem por socorro. O mais terrível de tudo era o silêncio. Um dos holandeses deitou a correr na direção da cidade. Agarrei-me às pernas dele. Derrubei-o e caí-lhe em cima, dominando-o. Quinze minutos depois, cansados, empoeirados, feridos, voltamos para o arraial. Levávamos arcabuzes, espadas, elmos, couraças e munições frescas.
E assim era a nossa guerra. Os holandeses um dia nos atacaram. Mas Matias de Albuquerque era astuto. Ideou e pôs em prática um plano tão hábil, que, com sua pouca gente posta de tocaia em diversos pontos, conseguiu envolver e vencer os invasores.
A minha maior proeza na guerra contra os holandeses foi a que vou contar agora. Uma noite tive uma ideia maluca Resolvi prender fogo na frota que estava fundeada diante da cidade de Recife.
Fonte:
Érico Veríssimo. As aventuras de Tibicuera, que são também do Brasil. (Texto revisto conforme Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa em vigor em 2009). Porto Alegre: Edição da Livraria do Globo, 1937.
Examinem um mapa dessa pobre Europa desgraçada pela guerra. Estão vendo aquele pequeno país apertado entre a Bélgica, a Alemanha e o Mar do Norte? É a Holanda. Tem apenas 33 000 quilômetros quadrados. É menor que o nosso Estado de Sergipe. Tem pouco mais de oito milhões de habitantes. Era um exemplo de paz e trabalho, o que não impediu que os exércitos de Hitler a invadissem, bombardeando-lhe implacavelmente as cidades e aldeias. Em pouco tempo a bela terra dos moinhos e das tulipas foi dominada pelo invasor. No mundo moderno a Holanda não é o que se chama uma Grande Potência.
Entretanto, no século XVII a situação da Holanda era diferente. Os holandeses eram um povo de marinheiros, de descobridores, de conquistadores, de colonizadores. (A maior conquista que fizeram até hoje foi a da própria terra, que eles arrebataram corajosamente ao mar. Não esqueçam de que a Holanda é um país que fica abaixo do nível do mar.) Com apenas um milhão e quinhentos mil habitantes, era a Neerlândia uma potência naval de primeira ordem. Vivia em guerra com as outras grandes nações da Europa daquele tempo: Espanha, França e Inglaterra.
Na Europa contavam-se maravilhas do Brasil. Era uma terra prodigiosamente rica: dava pedras e madeiras preciosas, dava ouro, dava prata, dava tudo. Ora, os holandeses, que já tinham fundado a Companhia das Índias Orientais, para explorar a Índia, resolveram promover o Brasil à categoria de Índia e criaram a Companhia das Índias Ocidentais.
A Holanda não se achava em guerra com a Espanha? O Brasil não pertencia agora à Coroa espanhola? Aí estava uma boa desculpa...
26 — A PRIMEIRA INVASÃO HOLANDESA
Estávamos no ano de 1624. Eu me encontrava na Bahia, já cansado de alguns anos de vida sem aventuras. De repente ouvi uma gritaria que vinha dos lados da praia. Corri para lá e me aproximei dum grupo que falava alto e apontava para a entrada da enseada. Uns vinte e seis navios viajavam na direção do porto. Traziam bandeiras desconhecidas nos mastros. Era um espetáculo maravilhoso o daquelas velas branquejando entre o mar verde e o céu azul.
Amigos ou inimigos? — era a pergunta que todos faziam.
Em breve ficamos sabendo de tudo. Tratava-se duma armada holandesa — uma frota de 26 naus — com 3000 homens e mais de quinhentas bocas-de-fogo. O governador da Bahia preparou-se para defender a cidade. Os holandeses deram um tiro de salva. Mandaram emissários com uma bandeira de paz. Mas os defensores da cidade responderam à salva com um tiro de verdade.
Começou a batalha. Eu dava pulos, não sabendo que fazer. Estava desarmado. Não conhecia ninguém. Não tive outro remédio senão ficar olhando da praia, bem como um “torcedor” olha uma partida de “pingue-pongue”, voltando a cabeça dum lado para outro, olhando os tiros dos navios para a cidade e da cidade para os navios.
Para resumir: os holandeses venceram, tomaram conta de Salvador. E ainda não tinham morrido os ecos de suas trombetas e de seus gritos de vitória, quando surgiu uma expedição luso-espanhola comandada por D. Fradique de Toledo Osório e acabou a festa dos invasores. Houve luta feroz. Os holandeses foram derrotados e D. Fradique e sua gente entraram festivamente na cidade.
Eu estava revoltado. Fora obrigado a assistir às lutas, por assim dizer, de camarote. Isso era contra o meu temperamento. Oh! Mas eu mal sabia que os holandeses ainda nos iam dar trabalho.
Se eu quisesse contar com minúcias o que foram as nossas guerras contra as duas invasões das gentes de Holanda, teria de escrever quinhentas páginas e ainda ficaria muita coisa por contar.
27 — A SEGUNDA INVASÃO
O Brasil era uma tentação. A Holanda preparou durante o ano de 1629 uma grande frota de 50 navios com o fim de empreender a conquista definitiva do Brasil. (É bom notar que essa grande frota hoje poderia ser içada inteirinha para bordo do transatlântico “Normandie”, sem perturbar em absoluto a vida dos passageiros ou o trabalho da tripulação...)
Dessa vez o alvo dos conquistadores foi Recife, cuja defesa era comandada por Matias de Albuquerque. Em breve chegaram a meus ouvidos os ruídos da batalha. Os patriotas resistiram, mas cinquenta navios, 1100 canhões e 8000 homens treinados na arte da guerra não são brincadeira de criança. Recife e Olinda foram tomados em fevereiro de 1630 e Matias de Albuquerque, com os homens que lhe restavam, fundou uma praça de guerra — o Arraial do Bom Jesus — entre os Rios Beberibe e Capibaribe.
Ora, por esse tempo eu tinha algumas economias. Comprei um burro, montei nele e fui para o Recife. A viagem foi dura O burro morreu no caminho, vítima de uma onça. Mas a onça também ficou estendida na estrada, porque Tibicuera não tinha esquecido suas artimanhas de caçador.
Mais morto que vivo cheguei ao Arraial do Bom Jesus e me apresentei a Matias de Albuquerque. Ganhei um facão, um arcabuz e uma espada.
28 — GUERRA DE EMBOSCADAS
Que podia fazer um grupo de homens mal-armados contra oito mil soldados profissionais? A única esperança nossa estava na guerra de emboscadas. Uma noite fui escolhido para comandar um grupo que saiu na direção do Recife. A escuridão era grande, pois no céu não havia lua e as estrelas
estavam quase apagadas. Caminhavam em silêncio, às vezes nos arrastando como lagartos. À margem do Beberibe encontramos uma patrulha holandesa. Seriam uns vinte soldados. Vinham cantando e falando alto. Como achei estranha e pitoresca a língua deles! Ficamos acocorados atrás de arbustos, esperando.
Quando os inimigos se aproximaram, soltei um berro: “Agora!” Nossos homens se precipitaram. Foi uma luta corpo a corpo. Procurávamos evitar que os inimigos gritassem por socorro. O mais terrível de tudo era o silêncio. Um dos holandeses deitou a correr na direção da cidade. Agarrei-me às pernas dele. Derrubei-o e caí-lhe em cima, dominando-o. Quinze minutos depois, cansados, empoeirados, feridos, voltamos para o arraial. Levávamos arcabuzes, espadas, elmos, couraças e munições frescas.
E assim era a nossa guerra. Os holandeses um dia nos atacaram. Mas Matias de Albuquerque era astuto. Ideou e pôs em prática um plano tão hábil, que, com sua pouca gente posta de tocaia em diversos pontos, conseguiu envolver e vencer os invasores.
A minha maior proeza na guerra contra os holandeses foi a que vou contar agora. Uma noite tive uma ideia maluca Resolvi prender fogo na frota que estava fundeada diante da cidade de Recife.
Fonte:
Érico Veríssimo. As aventuras de Tibicuera, que são também do Brasil. (Texto revisto conforme Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa em vigor em 2009). Porto Alegre: Edição da Livraria do Globo, 1937.
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