terça-feira, 12 de maio de 2020

Cornélio Pires (Água Virtuosa...)


Nhô Thomé está bem disposto. Hoje deu para bulir com os pretos, agradando os piazinhos que rodeiam o fogo em suas tripeças.

- Dito! – perguntou ele a um dos crioulinhos de seus doze anos – ocê sabe porque é que os home e as muié não tem a mesma cor?

- Nha - não.

- Puis eu vô contá; botem bem o sentido...

No escuro, deitado na rede, descanço, a ver as sombras bailando nas paredes, ao labaredear do fogo aos estalos, escutando a "história".

- Puis é. Nosso Sinhô, despois de criá tudas as coisa, garrô num pelote de barro e garrô damninhá, por não ter o que fazê. Damninhô, damninhô, e feis um home chamado Adão; deu um assopro e ele virô gente.

Despois Adão garrô a ficar esquisito: hora tava triste, ora tava assanhado, cantadô divirtido e contente. Deus pensô: "Tudas as coisa tem muié... Chamô Adão:

- Venha aqui!

Grudô e rancô u’a costela dele e feis Eva p’ra casá co’ele. Ante de Adão e Eva já tinha gente, mais não erum fios de Deus, porque eles não forum assoprado co Esprito Santo e quem soprô eles foi o Cuzarruim – e é purisso que hai gente rúim na terra; são os tar que não recebero o Esprito-Bão. – Mais isso ocês num intende.

Adão casô cum Eva e nascero os fio e crescero e acharo muié e casaro e o mundo umentô in quistan de pocos anno. Moravum tudo no mesmo sítio, um lugá como num hai de havê otro iguá; só no céo. O sítio chamava Paraízo. Naquele tempo tudos os home e muié erum preto...

Neste ponto Nhô Thomé descreveu a vida de então. Adão, depois do casamento, perdeu a alegria: tornou-se ajuizado, pois entendia que ser alegre e brincalhão como em solteiro não era próprio de homem casado... É um descrédito ser divertido e alegre.

A vida era fácil: frutas por toda a parte sazonavam o ano inteiro, ora esta, ora aquela, sem ser preciso plantar e tudo era "reiuno", não pertencendo a ninguém e a todos pertencendo.

- Ocês num vê que ninguém prantô fruitêra no mato? E otras fruita? Ponhema, guabiroba, pitanga, jaracatiá, arixicú, vapacary, amora, cambucy, joá, jovéva, cabeça-de-negro, castanha-de-ioçá, figo-manso, caju, banana, coquinho...

- Mandioca tamém é fruita ? – interroga um dos pequenos.

- É... – responde bonachão e sossegado o velho.

- I batata-doce? – perguntou outro.

- Tamêm...

- I batata-roxa?

- Tamem... tamêm... Mais iscuitem!...

Despois o Cuzarruim botô veneno nu’a proção de culidade de fruita, p’ra judiá de nóis; mas Deus, que é muito bão, deferençô u’a das ôtra e criô os passarinho p’ra insiná nóis a quar que não fais mar. O Cuzarruim intãoce inxeu a cabeça de uns home e de u’as muié, insinô p’re’eles os venenoso e eles viraro fiticêro, esses praga que custumum a botá as coisa-feita nos ôtro.

Eu, na rede, espero ansioso a explicação sobre as diversidades de cores nos homens, mas Nhô Thomé, como todos os contadores de histórias para crianças, parece "não ter fim".

- Mais, cumo ia dizeno, Nosso Sinhô garrô a repará: puis sa as fror, as arve, os alimar, os passarinho, a terra, o céo, tudo tinha cor deferente um dos ôtro, mórde o quê que os home e as muié só havéra de sê preto, tudo preto, sem graça, iguá, pareio, que inté injuava a vista?

Intãoce Deus mandô pubricá p’ro mundo intero, que era o Sítio, que quem fosse se lavá nu’a lagoa, ficava branco. Aquilo foi um corre-corre que Deus nos acuda!

Animou-se o pé-do-fogo! Curiosos os pretos arregalam os olhos e os mulatinhos ficam de "olhos compridos" no velho.

- Os mais ligêro, mais vivo, mais ladino, avuaro p’ra lá. Um bando de homes e muié, na correria, da desparada, p’ra chegá premêro, machucava e matava os que ascançava:

- Os premêro chegado ficaro arvo – são os alamão.

- Os seguinte acharo aua meio sujo – são os branco.

- Os ôtro acharo aua turva – são os moreno.

- Ôtros acharo aua escura, a lagoa tava secano – são os triguêro.

- Ôtros acharo um fiapico d’aua vermeia misturada cum táuá – são os cabocro.

- E os turco? – interrompeu o Dito.

- Isso mêmo... Isso... Eles garraro a brigá e gritá tudo no mermo tempo e é purisso que eles faum tudo trapaiado.

Não me seguro... Solto uma gargalhada gostosa!

- Uéi! Pensei que mecê tava drumino... Tô contano aqui u’as patacuada p’ros crioulinho...

- Continue, Nhô Thomé: estou gostando.

- Intãoce os turco sujaro demais o restico d’aua e levantô um tijuco mais escuro e a aua garrô minguá tanto, que os ôtro que chegaro naquele mingau, sahiro mulato, cumo ocês tão sahino.

- E os ôtro?

- Os ôtro, os priguiçoso, os bobo, os durminhoco que vivia cuchilano no pé-do-fogo e no sór e arguns que num tivero jeito de chegá mórde os da frente, esses quano chegaro acharo sú um tiquinho de umidade, que mar deu p’ra moiarem as sola dos pé e as parma da mão... Arreparem nas mão de Tia Pulicena e de suas mãe...

E os pequenos, de boca aberta, assustados, exclamam uns em seguida aos outros, olhando para as mãos de Tia Polycena que, bondosa e sorridente, as mostra.

- É meeeeemo!!!

- Os que ficaro preto num desanimaro e é purisso que preto num póde vê biquinha d’aua nem tornera, nem reberão, que não vá ligêro lavá as mão, a cara, o pescoço e os pé, que dão sempre na vista.

Depois, Nhô Thomé, chegando o "isqueiro" ao cigarro, tosse e termina, malicioso:

- Ocêis sabe mórde o que que ocês tão sahino tudo mulatinho? É que Chica, Zabé e Chistina custumum lavá rôpa lá no reberão craco do Manéco Portuguêis...

P’ra mim aquela aua é virtuosa...

- Aá... Maria credo! Sinhô tem cada lembrança! – bradou Tia Polycena, rindo, enquanto a Chica, a Zabé e a Christina correm para a cozinha. E, daqui da rede, depois de esplêndidas gargalhadas, ouço-as comentando:

- Sinhô tem cada uma! O moço tá lá na rede que num pode mais de tanto sirri...

Fonte:
Cornélio Pires. Conversas ao pé do fogo. SP: Imprensa Oficial do Estado IMESP, 1987.

segunda-feira, 11 de maio de 2020

Aparecido Raimundo de Souza (Distância de Resgate)


EU TINHA LIGADO PARA todos os números das amigas que ela me passara para saber a respeito dos seus empregos anteriores e, claro, da sua vida pessoal e nada. Ninguém retornou as minhas ligações. Em razão disso, eu estava brabo, invocado, pê da vida, enfurecido, colérico, tudo porque além de não haver encontrado ninguém que me desse um feedback de suas ocupações, nunca a tinha visto pessoalmente. Como dispunha do endereço resolvi ir pessoalmente ter com a criatura em sua residência. Todavia, embora indagasse daqui, dali, percebi quase final do dia, andara às escuras, às apalpadelas, tentando achar a bendita rua de sua casa e o ponto indicado como referência. Qual o quê! Nenhuma coisa nem outra. Me estapeei por gastar sapato e tempo para cima e para baixo, marchando a esmo, como se tivesse preso dentro de uma combinação intrincada de passagens e corredores que desembocavam sempre em lugar nenhum. 

Cansado, chateado, dei meia volta, decidido a ir embora. Sumir de vez. Apagar da minha cabeça o nome da infeliz e tudo o mais que estivesse ligado àquela filha de uma égua. Esquecer, pois, que ela nunca existiu no meu agora. Foi quando estanquei os passos e resolvi jogar a última carta que me restava na manga. A derradeira. Se essa falhasse, se eu voltasse a bater com os burros n’água, ela que se danasse. O celular dela. Meu Deus, o celular da jovem! Eu não havia ligado para ele. Quem sabe... Com esse pensamento aflorado, se também esse recurso longínquo falhasse, então sim, definitivamente jogaria tudo fora, atiraria meu ódio na primeira lata de lixo que encontrasse pela frente e junto, seu currículo vitae com tudo de bom que eu havia lido nele. “Menina difícil -, pensei com meu umbigo -, Tinha que ser Brunela”. Para meu espanto, para meu estarrecimento, a garota atendeu na hora.

Finalmente! Ao ouvir a sua voz, num “alô” melodioso e insinuante, acalmei a alma, abrandei o coração. Pedi que viesse sem mais delongas ao meu encontro. “Passei o dia todo à sua cata – gritei, de repente. Estava quase desistindo”. Lembro que um pouco antes de me conscientizar que não havia ligado para o telefone celular dela, retornei à loja de uma das pessoas que a indicara a mim. A Míriam. Pelo adiantado das horas a tal Míriam havia saído mais cedo e encerrado o expediente. Nem sinal da sujeita. Só me restou à rua, ou melhor, a esquina e o nome de um barzinho que ela alternativou.  O dito estabelecimento ficava perto do seu logradouro, encostado ao seu bairro. Segui para o local. Fiquei em pé, feito um poste inanimado, como um menino bobo, à espera da chegada da donzela. Pelo fato de estar quieto e estático, certamente não demoraria um cachorro passaria e me batizaria os pés com seu xixi. Achei melhor deixar o xixi e o cachorro de lado e me ater a adivinhar de onde ela surgiria. “De que banda, de que lado, de que buraco? Meu Pai, como seria essa encantada?”.

Branca, preta, loira, morena, alta, baixa, feia, bonita, desdentada, simpática, antipática, chata, meiga, nojenta, dócil, pegajosa, faladeira, bem feita de rosto, a boca talhada na medida de um sorriso indescritível, dentes perfeitos, gorda, magra, as pernas tipo Camila Queirós, ou Giovanna Lancellotti, enfim, um tremendo docinho de coco ou um tribufu de dar medo até em defunto? Na aspereza do aguardamento, passei a desenhar a Brunela com pinceladas rápidas e objetivas, no alvoroçado de obter uma imagem do seu misterioso arquétipo. Nessa doideira, viajei em moldes pagãos, atropelando os pensamentos que iam e vinham numa velocidade voraz. Seria essa desconhecida mais uma, ou uma a mais, a pleitear o cargo de secretária, que chegaria aqui, bateria um papo informal e depois viraria as costas e iria cada um com seus martírios para nossos cantos de origem carregando os fardos das desilusões e desencantos?

Não! Dessa vez algo me dizia, aqui dentro do peito, que esse encontro não seria como os anteriores. Sob o signo da esperança, Brunela chegaria triunfal. Simplesmente não se esbarraria comigo como manequins desfilando etiquetas diante de uma vitrina repleta de luzes de néon. Enquanto isso, meu olhar buscava a sua silhueta em todos os cantos da quase noite que se avizinhava, em cada rosto, em cada ser que cruzava indo ou vindo, e alimentava uma sensação dentro de meu ser, como o de uma agonia pesada, anunciada, um incômodo estranho que machucava de forma traumática. Uma dor forte que se fechava e traçava rumos indomados na multidão que me ignorava. Em paralelo, meu subconsciente, como que tentando decifrar uma imagem real e palpável, aproveitava a deixa e criava expectativas, ou melhor, desenhava abrigos de cores vivas onde agasalhar a sua presença tão desejada. Esse particular se assemelhava a vislumbrar diante do inusitado, um quadro raro de Picasso.

Para deleite de meus olhos, para encanto de minha alma, Brunela chegou num carro branco. O motorista do Uber a deixou na esquina e ela veio de encontro a mim. Havíamos dado dicas de como estaríamos vestidos para não haverem mais contratempos. Ela olhou, meio que temerosa, e então abriu a porta do banco traseiro e se pôs a andar em minha direção. Veio vindo, veio vindo, meio amedrontada, meio “será que devo?”. Quando chegou perto, fiz a pergunta que sabia óbvia: “Brunela?!”. Um sim vibrou como o som de um teclado ensaiando uma melodia suave, impregnada de quimeras desconhecidas, famintas de muitas palavras. No instante seguinte, meu coração se ajoelhou diante da sua beleza. Estarrecido, eu homem vivido, de muitos anos nas costas, me desmoronei num labirinto sem volta para alcançar o tamanho do seu esplendor. A satisfação que corria ligeira, dentro de mim aflorou.

De roldão, saltou, pulou, e encheu de variadas matizes os meus olhos esbugalhados por conta da sua meiguice. Ali estava finalmente a Brunela, ou as muitas Brunelas por mim desenhadas: Brunela menina, Brunela flor, Brunela, rainha, Brunela esperança, Brunela encanto. Igualmente a deusa se transformou em tenro botão de rosa se abrindo cheio de efeitos especiais, como passarinho inventado, com penas vermelhas e amarelas, voando no azul do meu infinito e fazendo refletir no cristal do meu espelho, o fascínio de viajar por sendas nunca pisadas em busca de horizontes desconhecidos e jamais imaginados. E assim foi. Tudo aconteceu depois disso, num abrir e piscar de olhos. Ela passou a trabalhar para mim. Nos meses subsequentes, entre um almoço e outro, uma viagem aqui, outra acolá, fomos passar a noite num motel. Do quarto desse motel como minha secretária, para a minha cama, como minha mulher.

Ainda hoje, depois de tantos anos, ainda vislumbro Brunela como a enxerguei na primeira vez. Apesar do tempo corrido, eu a sinto como naquele dia, formosa dentro do carro branco, sentada e tímida, meio que assustada, antes de abrir a porta. Consigo, ainda nesse instante, trazer à tona, como num desses filmes de curta metragem, o encanto, o mesmo bálsamo da animação poética que nasceu quando a vi pela primeira vez. Na verdade, Brunela continua com o toque certo que me agitou a base, a nota musical que harmonizou a minha alma, o recheio perfeito que guardei a sete chaves, para que ninguém ousasse imaginá-la como eu a mentalizei assim que lhe coloquei os meus sentidos em alerta. Ela segue inimitável.  Diria, sem medo de errar, perfeitinha. O vácuo da nossa disparidade de idade é enorme, porém, a minha Brunela, enlaça o irradiar da juventude no êxtase dos trinta, em contraste com os meus sessenta e seis, lembrando, outrossim, que a diferença  entre nós, passa, e muito, dos degraus íngremes dos anos que não retroagem.

Entretanto, busquei essa lacuna enorme, a sua áurea de brilho intenso transpira num boom de pratos orquestrais ao tempo em que cria em derredor de nossas vidas um instante bucólico e único, um prazer pastoril, repleto de expectativas prontas para explodirem ao menor toque da sua voz. Brunela é como o sol que se espalha, diria sem medo de errar, se faz vivificante como o alimento divino que estanca a minha fome. É essa moça de olhar sereno o porvir repleto de sensações nunca sentidas, de emoções nunca vividas. É poesia de arrebol, uma raríssima espécie de elo plural ligando o hoje ao super amanhã. É ainda, um clipe de apetite sentido, meu horizonte bordado por asas aladas à essencialidade do meu agora dentro de um ontem imperecedouro e perfeito, juntos, colados, grudados, como o côncavo e o convexo da canção interpretada pelo Roberto. Brunela não é só Brunela. É mais que um nome ao acaso. É o licor das harpas, o gosto de tudo temperando vontades.

É a minha amada, sem dúvida alguma, os sons de enfeites melodiando noites e dias, dias e noites, sonhos de voos distantes e inesquecíveis. É um Domaine  de la Romanée quebrando o próprio mimo da garrafa ao ser aberto. É Fernando Pessoa declamando poesias corpóreas. É a Mariza cantando “Quem me dera” numa distância sempre pujante do meu resgate memorável, bem ainda, no pé do ouvido, no gostoso do nosso cantinho a vitalidade que me mantém a todo vapor. É Brunela a mulher, a criança grande, a estrela guia das minhas brincadeiras.  Brunela é ainda como os meus natais inesquecíveis. Os meus vinte e cinco de dezembro passados presentes e futuros... Todos eles recheados com flocos de neve, e mais que tudo: Brunela é o meu agora, o meu hoje, o meu amanhã. A minha estrada, a minha razão de querer continuar de mãos dadas, olhando na mesma direção a ser vivenciada. Sobretudo, Brunela é o eco do meu berro desesperado na garganta clamando indubitavelmente por seu amor.        

Fonte:
Texto enviado pelo autor.

Luís Vaz de Camões (Sonetos) 2


SONETO 038

Árvore, cujo pomo, belo e brando,
natureza de leite e sangue pinta,
onde a pureza, de vergonha tinta,
está virgíneas faces imitando;

nunca da ira e do vento, que arrancando
os troncos vão, o teu injúria sinta;
nem por malícia de ar te seja extinta
a cor, que está teu fruto debuxando;

que, pois me emprestas doce e idôneo abrigo
a meu contentamento, e favoreces
com teu suave cheiro minha glória,

se não te celebrar como mereces,
cantando te, sequer farei contigo
doce, nos casos tristes, a memória
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SONETO 091


Fermosos olhos que na idade nossa
mostrais do Céu certíssimos sinais,
se quereis conhecer quanto possais,
olhai me a mim, que sou feitura vossa.

Vereis que de viver me desapossa
aquele riso com que a vida dais;
vereis como de Amor não quero mais,
por mais que o tempo corra e o dano possa.

E se dentro nest'alma ver quiserdes,
como num claro espelho, ali vereis
também a vossa, angélica e serena.

Mas eu cuido que só por não me verdes,
ver vos em mim, Senhora, não quereis:
tanto gosto levais de minha pena!
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SONETO 096


Bem sei, Amor, que é certo o que receio;
mas tu, porque com isso mais te apuras,
de manhoso mo negas, e mo juras
no teu dourado arco; e eu to creio.

A mão tenho metida no teu seio,
e não vejo meus danos às escuras;
e tu contudo tanto me asseguras,
que me digo que minto, e que me enleio.

Não somente consinto neste engano,
mas inda to agradeço, e a mim me nego
tudo o que vejo e sinto de meu dano.

Oh! poderoso mal a que me entrego!
Que, no meio do justo desengano,
me possa inda cegar um Moço cego!
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SONETO 103


Cantando estava um dia bem seguro quando,
passando, Sílvio me dizia
(Sílvio, pastor antigo, que sabia
pelo canto das aves o futuro):

—Méris, quando quiser o fado escuro,
oprimir-te virão em um só dia
dois lobos; logo a voz e a melodia
te fugirão, e o som suave e puro.

Bem foi assi: porque um me degolou
quanto gado vacum pastava e tinha,
de que grandes soldadas esperava;

E outro por meu dano me matou
a cordeira gentil que eu tanto amava,
perpétua saudade da alma minha!
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SONETO 116


Aqueles claros olhos que chorando
ficavam quando deles me partia,
agora que farão? Quem mo diria?
Se porventura estarão em mim cuidando?

Se terão na memória, como ou quando
deles me vim tão longe de alegria?
Ou s'estarão aquele alegre dia
que torne a vê-los, n'alma figurando?

Se contarão as horas e os momentos?
Se acharão num momento muitos anos?
Se falarão co as aves e cos ventos?

Oh! bem-aventurados fingimentos,
que, nesta ausência, tão doces enganos
sabeis fazer aos tristes pensamentos!
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SONETO 120


Cá nesta Babilônia, donde mana
matéria a quanto mal o mundo cria;
cá onde o puro Amor não tem valia,
que a Mãe, que manda mais, tudo profana;

cá, onde o mal se afina, e o bem se dana,
e pode mais que a honra a tirania;
cá, onde a errada e cega Monarquia
cuida que um nome vão a desengana;

cá, neste labirinto, onde a nobreza
com esforço e saber pedindo vão
às portas da cobiça e da vileza;

cá neste escuro caos de confusão,
cumprindo o curso estou da natureza.
Vê se me esquecerei de ti, Sião!

Fonte:
Luís Vaz de Camões. Sonetos. Biblioteca Virtual do Estudante Brasileiro.

Monteiro Lobato (A “Cruz de Ouro”)



— Entre, quem é.

— O Feroz não está solto?

— Viva, compadre! Suba!...

Um barbaças* de óculos e cachenê* de lã ringiu o portão de ferro e galgou a passos trôpegos a escadinha que levava ao alpendre de ipomeias*. Lá o aguardava, de cara amável, um segundo barbaças, o coronel Liberato, vestido duma farda consentânea* com a sua belicosidade: chambre de palha de seda, chinelo cara de gato e gorro de veludo negro com cercadura de ponto russo.

O que subia também era coronel. Coronel Antônio Leão Carneiro Lobo de Souza Guerra, ou simplesmente Nhô Gué. Chegaram ambos àquele alto posto militar pela razão estratégica de colherem para mais de dez mil arrobas de café. Se em vez de dez colhessem apenas cinco mil, seriam majores ou capitães. Este inteligentíssimo critério econômico do nosso militarismo é garantia de paz muito mais segura do que a Liga das Nações.

— Que milagre foi esse? — disse o de cima, abraçando o velho amigo.

— Quem é vivo sempre aparece e eu ainda não morri, apesar desta sufocação que me escangalha o peito.

— Você é o peito, eu a enxaqueca. Não valemos mais nada, compadre. Mas como vão todos? A comadre?

— Boa, todos bons, isto é, a Chiquinha... Ui!

— A cutucada?

— Não, este ventinho encanado...

— Pois vamos entrar.

E os dois urumbevas penetraram na sala de fora. A sala de fora do coronel Liberato merece relatório para que a posteridade se deleite em conhecer como era uma sala de visitas de coronel brasileiro no século XX. Cadeiras austríacas, sofá e cadeiras de balanço, tudo enfeitado com os crochezinhos das filhas. Mesinha central de cipó com embrechados, obra de um “curioso” do lugar. Duas almofadas no sofá, uma tendo um gato estufado, de lã, com olhos de vidro; outra, um papagaio de miçanga verde — maravilhas feitas por certa afilhada prendadíssima. Dois aparadores com vasos para flores artificiais, figurinhas de louça — “bibelotes”, como lá dizia o dono, e várias curiosidades naturais — caramujos, conchas, um ninho de joão-de-barro, um mico seco e duas famílias de içás vestidos. Nas paredes, espelho oval, dois retratos grandes a carvão e fotografias em porta-cartões de talagarça*, bordados pelas meninas. Pendurado do lampião belga suspenso ao teto, grande abacaxi de papel de seda. Piano de armário. Tapete com grande onça. Que mais? Iam-me esquecendo as duas “escarradeiras de sobrado”, com caraças* de leões... Viva o naturalismo!

Entrados que foram, os dois coronéis refestelaram-se nas cadeiras de balanço, o do “ui!” com cautelas, gemidos e caretas ao dobrar as juntas. Liberato puxou o cigarro de palha e, enquanto afrouxava o fumo na palma da mão, reatou a conversa.

— Ahn! Com que então a dona Chiquinha...

— Compadre, entre nós não há segredos; a doença dela são amores. Quer casar, ora aí tem.

— Não vejo mal nisso. Está na idade. Só se...

— Mas adivinhe lá com quem a tolinha emberrinchou de casar?

— ?

— Com o José de Paula!

— O filho da Nhá Vé?

— Esse mesmo. Um moço sem vintém de seu, gente do Chicão de Paula... Sair do nicho de filha única, onde vive como uma Nossa Senhorinha, para ligar-se a um lorpa de marido, ser criada, escrava dele! Se pudéssemos, nós que temos experiência da vida, abrir os olhos dessas mariposinhas tontas... Mas é inútil. Encasqueta-se-lhes na cabeça que o amor, o amoor, o amooor é tudo na vida, e adeus. O que nos vale é que o rapaz é pobre mas direitinho — quanto ao moral.

Liberato interveio com cara purgativa.

— Homem, não sei. Não é por falar, mas não me cheira bem aquele sujeitinho. Você o acha moralizado. Será. Mas a família dele é droga e a prudência manda atentar não só nas qualidades do galho como também nas do tronco. Olhe o que sucedeu outro dia com o primo dele, o Chiquinho...

— Não soube de nada, compadre. Que foi?

— Você anda no mundo da lua, homem! Refiro-me ao escândalo da Recreativa.

À palavra “escândalo” Nhô Gué esqueceu o reumatismo e arrastou a cadeira para mais perto.

— Escândalo?

O coronel Liberato, gozoso de contar uma novidade, limpou o pigarro e disse:

— Foi no último domingo, na festa anual da Recreativa. Discursos, recitativos e uma peça — aquela endrômina* de sempre. A sociedade mandou convite a toda gente, aos jornais, aos grêmios e dentre estes à Camélia Branca, da qual é secretário o Chiquinho de Paula, primo lá do teu. Por sinal que para a Camélia foi um camarote, o 7, justamente aquele donde assistimos ao Poder do ouro, lembra-se?

— Se me lembro! Pois uma representação daquela é lá de esquecer? Montepin! e inda mais pelo Furtado Coelho! Noitão! Hoje é que não há mais disso. São umas comediazinhas indecentes, e cinemas, e drogas.

— A Lucinda Simões, hein? Mulherão!

Este “mulherão” foi dito com um arregalar de olho em que toda a concupiscência* retrospectiva se espojava arreitada.

— Nem fale! — disse o outro num tom de inexprimível saudade.

— Pois muito bem: o teatro encheu-se. Estava lá o coronel Totó Fernandes com a família; a família do doutor Izidoro; o major Gonçalves com a mulher — e por falar, como está acabada a dona Elisa!

— É verdade! Quem a viu e quem a vê! A Elisinha do Rincão, como lhe chamávamos, menina sapeca, da pá-virada, semostradeira até ali... Os anos, compadre, os anos...

— Só não vi lá a gente da oposição. Isso, nenhum, nem o Zé Penetra, aquele caradura.

Riram ambos, gostosamente, à lembrança da ausência dos adversários. (Esqueceu-me dizer que estes coronéis faziam parte do diretório situacionista, colunas fortíssimas que eram da força governamental no distrito.)

— Era ali entre nove e dez — continuou Liberato —, quando, de repente, adivinhe, se for capaz, compadre, quem surge pelo camarote número 7 adentro. Nhô Gué aparvalhou a cara com ar de quem não é capaz.

— A “Cruz de Ouro”! — concluiu o Liberato, de pé, chupando uma, duas, três baforadas do cigarro apagado, num triunfo.

Nhô Gué pasmou.

— Não me diga!...

— Pois é o que digo: a “Cruz de Ouro”.

Liberato riscou triunfalmente um fósforo e prosseguiu:

— O rebuliço foi grande. Toda gente se pôs a murmurar, olhando uns para os outros. A família do Totó quis retirar-se. A mulher do Gonçalves virou bicha, abanava-se com frenesi, indignada com a pouca-vergonha. O doutor Izidoro, presidente da Recreativa, que no palco já se preparava para deitar o verbo, espia pelo buraco do pano, percebe o negócio, fica possesso e berra lá dentro, de ouvir se cá na plateia, que processava, que partia a cara, que mais isto e mais aquilo — um fim do mundo! Houve pedidos de informação à bilheteria. Era preciso desagravar a moralidade pública ofendida com a execrável presença da “coisa à toa” em festa puramente familiar. Afinal a polícia interveio. O delegado foi com a descarada e com muito bons modos fê-la sair. Só então, onze horas, começou o espetáculo. No primeiro intervalo, porém, soube-se tudo: o Chiquinho de Paula, secretário da Camélia, recebera o convite para a festa, mas em vez de organizar uma comissão que dignamente representasse o grêmio, pega do camarote e o dá à “jereba”, de quem é...

Aqui o coronel Liberato, para remate da frase, fez uma cara de supremo nojo:

— ... o queridinho!

Voltando em seguida à cara anterior, disse, grave e pundonorosamente*, bamboleando a cabeça:

— Veja você que refinadíssimo tranca!

E concluiu com desalentada severidade:

— E é com o primo de semelhante crápula que dona Chiquinha quer casar-se!

Na noite desse dia, altas horas, Liberato deixou em casa a enxaqueca e foi sorrateiramente bater à porta da “Cruz de Ouro”. Apareceu a criada. Confabularam baixinho.

— Não pode ser — disse a Libéria —, está cá seu coronel Nhô Gué.

Liberato fez uma careta.

— E amanhã? — perguntou.

— Amanhã é a vez do doutor Izidoro.

— E depois de amanhã?

— Quarta-feira? Deixe ver — fez cálculos nos dedos e disse: — Quarta-feira é o dia de seu Gonçalves.

— E quinta?

— Pois não sabe que as quintas são de seu Totó?

Liberato não desanimou.

— E domingo?

A Libéria despejou uma gargalhada sonorosa.

— Os “home”! Pois então sinhazinha não há de ter um descansinho na “somana”?

E fechou-lhe a porta na cara.
______________________
* Vocabulário:

Barbaças – aqueles que têm barbas grandes.
Cachenê – Espécie de gravata comprida, de lã, seda ou fio sintético, que envolve o pescoço e parte inferior do rosto, para protegê-los do frio.
Caraças – carão, cara grande.
Concupiscência – cobiça.
Consentânea – adequada, apropriada.
Endrômina – ardil, artimanha.
Ipomeias – designação comum às ervas trepadeiras ou arbustos.
Pundonorosamente – altivamente.
Talagarça – Tecido de fios ralos, onde se borda.
Urumbevas – simplórios.

Fonte:
Monteiro Lobato. Cidades Mortas.

domingo, 10 de maio de 2020

Poemas às Mães

Pintura de William-Adolphe Bouguereau
CAROLINA RAMOS
Santos/SP

CONSELHOS DE MÃE


 Meu filho, a vida é dura e fere… e nos magoa…
 mas, trata-a com respeito e guarda a dignidade.
 Ainda que a alma inteira sem clemência doa,
 não permitas que o mal altere o que é verdade!

 Sonha bem alto e segue o voo do teu sonho,
 sem pressa de alcança-lo e tendo-o sempre à vista!
 Cada dia que passa é um dia mais risonho,
 quando o amanhã promete as glórias da conquista!

 “Segura a mão de Deus!” Segue o rumo sem medo.
 Os caminhos, verás, se abrirão à medida
 que teu passo provar firmeza e, sem segredo,
 revelar o sentido e o Ideal da tua vida!

 Não temas opressões nem quedas. Persevera!
 Se achares que ao final o saldo não convence,
 reage, continua… a vida tens à espera!
 Confia em teu valor! Trabalha! Luta! E vence!
****************************************

IALMAR PIO SCHNEIDER
Porto Alegre/RS

SONETO PARA A MÃE


Mãe!… Palavra sublime, amor inexprimível,
que a gente pronuncia em ritmo de oração…
É tão cálido o afeto e quase que impossível
externá-lo, pois vive em nosso coração !

Se alguma coisa existe, além do que é infalível,
e seja só no mundo e morra em solidão;
creia-me, não verá jamais tão acessível,
de quem nos deu a vida, aceitar a afeição !…

Ela é generosa e sem maldade alguma…
Seus filhos são a maior riqueza que possui,
seu aconchego tem toda a maciez da pluma…

Porém, nunca haverá poeta, cujo verso
descreva o amor de mãe, pois tudo se dilui
ao saber que ela é a dona do Universo!
****************************************

PAULO WALBACH PRESTES
Curitiba/PR

MÃE


MÃE é presente e eternidade
Que amarra a prole e a família
Por laços de verdade,
No mais nobre sentimento e magia.

MÃE é futuro da mulher…
Que DEUS faz no seu corpo crescer
A semente da mais bela flor,
Pelo filho que um dia há de nascer.

MÃE é passado de glória, agonia e ventura…
É esplendor e saudade pura
Num perene estado espiritual.

MÃE é um ser tão singular,
Da mais forte e fiel expressão
Dos verbos sofrer e amar!
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HUMBERTO RODRIGUES NETO
São Paulo/SP

MÃE!


Tu foste, mãe, na treva a claridade,
 na dor meu riso e na tormenta o norte,
 a doce companheira e a consorte
 das minhas horas de infelicidade!

 Que anjo não foste, toda vez que a sorte
 não me sorriu! E com que imensidade
 de amor, desvelo e angelical bondade
 tu me ensinaste a ser paciente e forte!

 E hoje a alegria anda a sorrir nos ares…
 é o “Dia das Mães” numa porção de lares
 e eu vou fingindo que inda o comemoro!

 Finjo, mãezinha, até que em doce jeito
 vens doer tão tristemente no meu peito,
 que eu cerro os olhos, pendo a fronte… E choro!
****************************************

MARIA NASCIMENTO SANTOS CARVALHO
Rio de Janeiro/RJ

MÃE MARINA


MAMÃE, quando retorno ao meu passado
tão rico de pobreza e de esperança,
imagino que estou ainda ao teu lado,
e volte a me sentir em segurança…

E projetando tudo na lembrança
vejo que, se houve sonho malogrado,
o amor que recebi desde criança
evitou que eu tivesse fracassado.

És milagrosa, Santa MÃE MARINA,
uma estrela radiosa, a luz divina
que enfeita meus caminhos, e me guia,

pois quando fico triste, em pensamento,
chego aonde estás e abrandas meu tormento,
minha Nossa Senhora da Alegria !
****************************************

PEDRO APARECIDO DE PAULO
Maringá/PR

MÃE, O MUNDO ENCANTADO


Sua doutrina Bendita
faz a vida mais bonita
mesmo na dificuldade.
Seu olhar tão meigo e puro
traz o seu filho seguro,
irradia felicidade.

Sua face tão serena,
de uma coisa tão pequena
faz transformação total.
A primeira frase do filho
faz-se seu nome estribilho
e o transforma em festival.

Suas mãos acariciam
seus afagos contagiam
trazendo tranquila paz.
Atrai a felicidade
amor e sinceridade
vejam, do que ela é capaz.

Seu coração envolvente
faz do seu filho inocente
um mar de sabedoria.
Ensina-o a cada passo
defendendo-o do fracasso
com prazer e alegria.

Pode ser uma rainha
ou uma mãe pobrezinha
não importa a diferença.
Se ela não tem riqueza
não sabe o que por na mesa
a Deus pede providência
****************************************

MARIA GRANZOTO
Arapongas/PR

MINHA MÃE

 
 Em teu colo
 Repouso a minha dor…
 Forte é o poema que cresce
 Por amor
 ao teu amor
 Neste solo tão agreste
 Da tua ternura…
 Daquele olhar tão cândido
 Os meus olhos a procurar
 Como em busca do alívio
 Para a dor luarizar…
 Foste para as alturas,
 Deixaste o nosso convívio para sempre!
 Eu, às penas duras,
 Confesso que o tempo não resolve,
 Pois ele também não cicatriza
 As chagas da tua ausência,
 Não enfraquece a saudade,
 Não suaviza a demência
 Que a tua falta me faz!
 Só provoca a imensa vontade
 Que eu sinto de te abraçar!
 Neste mundo, nada, ninguém,
 Há de apagar a imagem
 Do branco
 da tua tez
 E dos teus pequeninos olhos
 A olhar-me
 pela última vez…
****************************************

ANTONIO MANOEL ABREU SARDENBERG
São Fidélis/RJ

AMOR DE MÃE


Seu ventre é solo fecundo
Que gera e abriga a vida,
É paixão sem ter medida
De um sonho realizado,
É aconchego do ninho
Que acolhe com carinho
O amor tão esperado.

Com sua voz acalenta
Com um canto delicado…
No seu peito amamenta
E com amor alimenta
O filho tão desejado!

Com a mão acaricia
Em toque meigo e sublime…
Seu brilhante olhar exprime
Na mais ardente paixão
O amor que também pulsa
No pequeno coração.

A sua boca tem beijo
Mais doce do que o mel,
Em sua prece o desejo
De dar para seu rebento
Um pedacinho do céu.

Na alma toda esperança
De um futuro promissor
Para o filho que gerou
De quem tanto quer o bem:
Que em sua caminhada
Consiga vencer também.

Que os anjos digam amém
E em coro com os arcanjos,
No mais harmonioso arranjo,
Cantem com todo fervor
Um hino de puro amor
Para a santa e amada MÃE!
****************************************

CARLOS DRUMMOND DE ANDRADE
Itabira/MG, 1902 - 1987, Rio de Janeiro/RJ

PARA SEMPRE


Por que Deus permite
que as mães vão-se embora?
Mãe não tem limite,
é tempo sem hora,
luz que não apaga
quando sopra o vento
e chuva desaba,
veludo escondido
na pele enrugada,
água pura, ar puro,
puro pensamento.

Morrer acontece
com o que é breve e passa
sem deixar vestígio.
Mãe, na sua graça,
é eternidade.
Por que Deus se lembra
– mistério profundo –
de tirá-la um dia?
Fosse eu Rei do Mundo,
baixava uma lei:
Mãe não morre nunca,
mãe ficará sempre
junto de seu filho
e ele, velho embora,
será pequenino
feito grão de milho.
****************************************

EUGÉNIO DE ANDRADE
Fundão/Portugal, 1923 – 2005, Porto/Portugal

POEMA À MÃE


No mais fundo de ti,
eu sei que traí, mãe!

Tudo porque já não sou
o retrato adormecido
no fundo dos teus olhos!

Tudo porque tu ignoras
que há leitos onde o frio não se demora
e noites rumorosas de águas matinais!

Por isso, às vezes, as palavras que te digo
são duras, mãe,
e o nosso amor é infeliz.

Tudo porque perdi as rosas brancas
que apertava junto ao coração
no retrato da moldura!

Se soubesses como ainda amo as rosas,
talvez não enchesses as horas de pesadelos…

Mas tu esqueceste muita coisa!
Esqueceste que as minhas pernas cresceram,
que todo o meu corpo cresceu,
e até o meu coração
ficou enorme, mãe!

Olha – queres ouvir-me? -,
às vezes ainda sou o menino
que adormeceu nos teus olhos;

ainda aperto contra o coração
rosas tão brancas
como as que tens na moldura;

ainda oiço a tua voz:
“Era uma vez uma princesa
no meio de um laranjal…”

Mas – tu sabes! – a noite é enorme
e todo o meu corpo cresceu…

Eu saí da moldura,
dei às aves os meus olhos a beber.

Não me esqueci de nada, mãe.
Guardo a tua voz dentro de mim.
E deixo-te as rosas…

Boa noite. Eu vou com as aves!
****************************************

JACINTA  PASSOS
Cruz das Almas, BA, 1914 – 1973, Aracaju/SE

CANTIGA DAS MÃES
(Para minha mãe)


“Fruto quando amadurece
cai. das árvores no chão,
e filho depois que cresce
não é mais da gente, não.
Eu tive cinco filhinhos
e hoje sozinha estou.
Não foi a morte, não foi,
Oi!.
foi a vida que roubou.

Tão lindos, tão pequeninos,
como cresceram depressa,
antes ficassem meninos
os filhos do sangue meu,
que meu ventre concebeu,
que meu leite alimentou,
Não foi a morte, não foi,
Oi!.
Foi a vida que roubou.

Muitas vidas a mãe vive.
Os cinco filhos que tive
multiplicaram por cinco
minha dor, minha alegria.
Viver de novo eu queria
pois já hoje mãe não sou.
Não foi a morte, não foi,
Oi!
foi a vida que roubou.

 Foram viver seus destinos,
 sempre, sempre foi assim.
 Filhos juntinho de mim,
 berço, riso, coisas puras,
 briga, estudos, travessuras,
 tudo isso já passou.

Não foi a morte, não foi,
 oi!
 foi a vida que roubou.
****************************************
ISABEL PASSOS
Lisboa/Portugal

MÃE


A mulher foi por Deus escolhida
pra na maternidade gerar vida;
Com amor trazer filhos ao mundo;
O dom mais sublime e profundo.

Pode ter dor quando um filho parir
mas logo esquece, ficando a sorrir
assim que escuta o doce vagido,
e acaricía o recém-nascido.

Em suas entranhas vida semeou,
deu à luz o filho e tudo suportou.
Com altruísmo dá aquilo que tem…

Abnegação, apanágio de mãe,
é produto da Obra do Criador
que tudo planeou com muito Amor.
****************************************

JOSÉ ERNESTO FERRARESSO
Serra Negra/SP

ÉS TU MÃE!


Determinada, irreverente e persistente,
De iniciativas constantes.
Punhos fortes, nunca errante,
Mulher linda, estonteante.

Mãe, Rainha do lar,
Mostra sua resistência e sabe lutar.
Ensina coisas boas, sabe os filhos educar,
Por isso a denominamos “Dona do Lar”.

Cumpridora, fiel aos filhos e esposo,
Em todas as horas e instantes dolorosos,
É ela a grande guerreira .

Essa mãe verdadeira,
Em cada momento presente.
Divina simplesmente.
****************************************

AMILTON MACIEL MONTEIRO
São José dos Campos/SP

EXEMPLO DE MÃE


Não me admiro de sentir saudade
De meus longínquos tempos de criança,
Vividos na escassez, é bem verdade,
Mas com imenso amor e esperança.

A gente era pobre e a cidade
Nem possuía luz ou segurança
De algum Doutor. Mas nessa qualidade
Aquilo é um sonho em minha lembrança…

Pois o importante é que então vivendo
De modo simples, “remendando o pano”,
só de carinho a gente ia crescendo…

A grande fé em Deus nos consolava,
Mudava em alegria o desengano…
Tal o exemplo que mamãe nos dava!
****************************************

DIVANILDE VITORIA CAMPOS(DIVA)
Mirassol/SP

MAMÃE MAMÃEZINHA


Ciranda cirandinha,
mamãe hoje vamos cantar
embora já tão velhinha
jamais deixou de me amar!

Como toda jovem, sonhou,
lindos sonhos não realizados
mas nunca desanimou
de ter-me tanto amado!

Seus cabelos branquinhos
como um punhado de neve
a pele enrugadinha
mãos trêmulas, passos trôpegos
corpo franzino, encurvadinha!

Dizer que te amo não é preciso
sabes que sempre te amei
nos teus braços sempre feliz
enquanto me embalava
uma linda cantiga cantava!

Hoje é teu dia, Dia das Mães.
Nesta tua longa caminhada
me ensinou os bons caminhos
não me deixou me afastar do teu ninho
por isso sou muito abençoada!!!
****************************************

LENIR MOURA
Rio de Janeiro

TRIBUTO À MINHA MÃE


E um dia Deus a chamou.
e você foi indo,
sem pressa, bem devagar.
foi obedecendo àquele chamado calmamente.
Você sabia que a dor seria grande demais,
e então sem querer nos fazer sofrer,
fez assim:
preferiu nos acostumar com a idéia
de não mais ter você,
e aos poucos,
foi se afastando.
Foi nos ensinando a sentir
que não a tínhamos mais,
mesmo estando ao nosso lado.
E com isso,
a dor não doeu tanto,
e mais uma vez,
mesmo na hora final,
poupou-nos um sofrimento maior.
Dignidade na vida, altivez na morte!
atitude digna de você,
que sempre foi mãe,
em toda sua magnitude.
Descansa minha mãe
e ilumina com a sua luz,
o pedaço de céu que a você foi reservado.
Encanta com o seu amor
e embala com a sua canção de paz
a missão que, com certeza,
Deus lhe destinou:
a de ser no céu
mais uma estrela a brilhar.
****************************************

MARIA DA FONSECA
Lisboa/ Portugal

A MINHA MÃE


Ao observar-me no espelho
Vejo os teus traços, Mãezinha,
Ouço ainda o teu conselho,
Tua alma junto à minha.

Da minha face, o oval
Lembra-me teu rosto lindo,
Teu sorriso maternal
Os teus olhos colorindo.

Enquanto os meus são castanhos,
Os teus eram ‘sverdeados,
Mas meu cabelo que apanho
Teve cachos ondeados.

De ti herdei as feições
Que recordo tão saudosa.
Sei que viveste aflições
E mas poupaste, ansiosa.

Ao teu coração bondoso
Presto singela homenagem.
“Doou-me amor precioso
E deu-me sempre coragem”.
****************************************

DÁRIA FARION
Pinhais/PR

SER MÃE


É extasiar-se:
– Meu Deus! A mim confiaste,
a maravilha de Tua criação.

É abrigar-se:
– Debaixo da Graça Divina,
em seus eflúvios haurir
alento, coragem e fé.

É expor-se:
– Na sua Luz se energizar
e por caminhos iluminados
seus filhos conduzir.

Ser mãe é amar,
tanto, tanto. Vida própria não ter,
de tristeza e alegria sorrir,
de alegria e tristeza chorar.

Ser mãe,
é orar pedindo,
é orar agradecendo,
é orar abençoando.

Feliz é o filho que tem
uma mãe orando.
Benditos os filhos que ensinam a amar.
****************************************

HILDA PERSIANI
Curitiba/PR

MINHA MÃE


Não existe palavra mais doce
Desde que se aprende a falar,
Pronunciá-la é como se fosse
O mais saboroso manjar.

Mãe, sempre pronta a me aconselhar,
Seus exemplos que sempre admirei,
Foi o espelho onde me espelhei
E na vida me ajudaram a caminhar.

Tentei escrever uma poesia
Para homenageá-la no seu dia,
Mas não consegui terminar,

Ao relembrar seu olhar de santa,
Um nó me aperta a garganta
E eu só consigo chorar …
****************************************

ADEMAR MACEDO
Santana do Matos/RN, 1951 – 2013, Natal/RN

MÃE… MULHER!


Ser mãe é negar a dor,
a dor maior que ela sente.
Ser filho é ter muito amor
para amá-la eternamente…
– Minha mãe foi meu tesouro,
meu escudo e meu troféu;
hoje, uma medalha de ouro
entre as mães que estão no céu!
Minha mãe, minha rainha,
só para o bem me conduz.
Pra ser mãe igual a minha,
só mesmo a mãe de Jesus!
Tal qual Mãe celestial,
mamãe também não tem preço!
Toda mãe é sempre igual…
muda apenas de endereço.
Toda mãe é protetora
e guarda em si, um mister;
no papel de genitora,
é simplesmente…Mulher!
****************************************

MARTINS FONTES
Santos/SP, 1884 – 1937

MINHA MÃE


Beijo-te a mão que sobre mim se espalma
Para me abençoar e proteger.
Teu puro amor o coração me acalma;
Provo a doçura do teu bem-querer.

Porque a mão te beijei, a minha palma
Olho, analiso, linha a linha, a ver
Se em mim descubro um traço de tua alma,
Se existe em mim a graça do teu ser.

E o M, gravado sobre a mão aberta,
Pela sua clareza me desperta
Um grato enlevo que jamais senti:

Quer dizer Mãe este M tão perfeito,
E, com certeza, em minha mão foi feito
Para, quando eu for bom, pensar em ti.

sábado, 9 de maio de 2020

Antonio Roberto De Paula (Maringá como Cenário)


Entre dúzias de cervejas e tijolinhos de presunto e queijo, estávamos reunidos jogando conversa fora. Ou melhor, de forma descompromissada desfilávamos um mosaico de situações cotidianas.

A eloquência advinda do álcool proporcionava temas interessantes resultando em gostosas risadas. No meu canto, ouvia mais do que falava, o que não é comum para mim numa mesa de bar. À medida que o copo esvazia, minha verve se torna mais latente.

A presença de duas pessoas que vim a conhecer naquela hora talvez tenha sido a razão do meu quase mutismo inicial. Este é o tipo de inibição que não procuro combater. Falo à vontade quando estou ao lado de amigos. A chegada de estranhos me coloca na defensiva, mas que é rompida com facilidade. E como o número de desconhecidos tem aumentado nos últimos anos em Maringá!! A gente não consegue mais identificar a maior parte das pessoas num ambiente.

Éramos sete rodeando duas mesas quadradas com enormes logomarcas vermelhas ostentando o nome da cerveja. Som alto, ar esfumaçado, poucas mesas vazias, balcão repleto e bolas rolando nas duas mesas de sinuca. Fim de mais um dia de verão numa das mais belas cidades do Brasil.

Começo de noite no Jardim Alvorada, que nos anos 70 era chamado pejorativamente de Alvoroço pelos moradores de outros bairros. Num bar lotado, perto das 8 da noite, como ocorre neste horário na maioria dos mais de cem, espalhados pela Pedro Taques, Dr. Alexandre Rasgulaeff, Lucílio de Held, Sofia Rasgulaeff e outras avenidas que cortam o maior bairro da cidade, comentávamos sobre o progresso deste lugar.

As visões diferenciadas nos ajudam a compor um quadro mais preciso de Maringá e sua gente. A partir de relatos, como os de meus seis companheiros de mesa, de dramas, vitórias e derrotas e passagens interessantes, podemos entender com mais propriedade o espírito do povo maringaense que faz pulsar esta bela paisagem, formada de largas calçadas e avenidas, tendo como testemunha o perpétuo verde.

Maringá foi planejada. Uma leva de aventureiros motivou a Companhia de Terras a esquadrinhar o povoado. Quem chega primeiro toma água limpa, mas antes tem que matar a onça. Os primeiros maringaenses fizeram as duas coisas: abriram as matas e propagaram o paraíso.

Por isto, cá estamos nós: os filhos, os filhos dos filhos, gente que chegou nos anos 80, nos 90, que nasceu aqui, que chegou ontem, que está chegando. Desde o final dos anos 30 muita gente vem batalhando nestas paragens. A soma de vitórias e derrotas pessoais teve e está tendo como consequência esta Maringá de 54 anos e de 300 mil habitantes, um orgulho para todos nós.

E cá estou, bebendo e conversando com seis cidadãos desta cidade num bar do Jardim Alvorada. Como poderia estar no Maringá Velho, Operária, Miosótis, Zonas Dois, Quatro e Cinco, Borba Gato, Ebenezer, Cidade Nova e outros tantos nas mais de 200 vilas e loteamentos, grande parte devidamente asfaltada e arborizada. Ou, quem sabe, poderia estar de cotovelos fincados num balcão do distrito de Floriano ou de Iguatemi.

Ouço meu companheiro do lado dizer que seu pai trabalhou na Casa Júpiter, ali na Brasil, perto da Raposo Tavares, onde hoje existem várias lojas, e um outro lembra que aqui, onde pisamos agora, foi no início da década de 60 uma grande fazenda de café do doutor Alexandre Rasgulaeff.

Felizmente mantiveram o mesmo traçado do centro, como fizeram em todos os bairros: calçadas, ruas e avenidas largas e árvores em profusão. Uma competente e bela uniformidade, O que me faz recordar a recente visita de uma comitiva japonesa. Depois de rodarem por quase uma hora, os japoneses cutucaram o motorista avisando-o que já haviam passado por aqueles lugares. Eles não sabiam que nossas avenidas têm a medida certa, o espaço ideal para o concreto e o verde. Uma harmonia para tirar qualquer oriental de sua decantada calma e sua comedida admiração.

Para o visitante, a Mandacaru, Pedro Taques, Teixeira Mendes, Riachuelo, Paissandú e Morangueira são as mesmas avenidas, assim como a 15 de Novembro e a Tiradentes, ou a Herval, a Duque de Caxias e São Paulo. Para nós, que passamos diariamente por elas, não tem erro. Casas, edifícios, árvores e flores nos servem como referencial, mas o menos avisado vai conseguir diferenciar somente a Colombo das demais.

Com o passar dos anos, Maringá foi ficando mais encorpada. A madeira foi dando lugar ao cimento e já não é tão fácil olhar a linha do horizonte. Portentosos edifícios cobrem o sol, tiram a cada dia um pouco da inocência desta cidade e se exibem de mãos dadas com o verde nos cartões postais. O maringaense não se engana com suas avenidas. Cada uma tem sua personalidade própria.

Quando chovia, depois da Colombo, tinha que por a bicicleta nas costas para poder chegar em casa. Colocava um saco plástico em cada pé e amarrava as canelas com barbante. Só tirava no centro, quando descia do ônibus. Ou o barro cobria todo o sapato. No sábado, tinha brincadeira dançante em muitas casas. Na nossa vila podíamos entrar em qualquer uma. Fora, o pau comia. Carnaval no ginásio do Maringá Clube era uma loucura. Quem não era associado do Olímpico ou do Country ia lá. Depois levaram a festa para o Chico Neto, mas não teve mais graça.

A turma de sete na animada mesa falava sem parar. Quase todos ao mesmo tempo. Numa mesa de bar o papo demora um pouco para engatar, mas depois flui normalmente, ainda mais quando o assunto diz respeito a todos. Maringá não foi um rio que passou em nossas vidas, como diz o poeta Paulinho da Viola. A Cidade Canção continua passando e a gente vai acompanhando até onde Deus quiser.

O Grêmio campeão de 77? Sei o time completo: Vagner, Valdir, Nilo...Quer o banco também? O Didi jogava demais. O João Paulino não usava manga comprida. Vivia nas obras dando dura nos operários. Subimos na Catedral, quando ainda estava em construção. Chamaram a polícia. Viram a gente com o uniforme do Gastão e só passaram um sabão. A Wanderléia foi cantar no Cine Horizonte com uma minissaia curtíssima. A moçada ficou babando. Em vez de mundo colorido a gente cantava fundo colorido. A gente tomava batida de vodka e saía em seis no Corcel branco do pai de um amigo, filando festas de casamento no Country, Maringá Clube e restaurantes do centro. Festamos até às 4 da manhã no Canjão. Matamos o Tiro de Guerra no sábado. Mas não teve jeito. O sargento Klein mandou nos buscar em casa. Eu levava um rádio-gravador enorme aos domingos no Parque do Ingá. Ficava deitado na grama com o som de Bee Gees nas alturas.

Mesa animadíssima. Riso geral para cada lembrança. O curioso é que quando um falava, a gente entrava junto na história como se sentisse que alguns episódios tivessem sido copiados. Um dos motivos que reforçam o companheirismo é descobrir as experiências comuns. Por isso, naquele bar, fomos mais companheiros do que nunca.

Trocamos informações, remexemos gostosamente nas histórias em que atuamos como protagonistas, coadjuvantes ou meros espectadores. Passagens que fomos catalogando mentalmente em cada dia vivido em Maringá. Situações corriqueiras que vão virando história, que adquirem intensidade com o passar do tempo. Afinal, estamos ajudando, orgulhosamente, a compor esta canção chamada Maringá.

O relógio na parede, embutido na caixa de cigarros, brinde da multinacional, colou os ponteiros no 12 fazendo com que retornássemos da viagem. As três saideiras para os sete cidadãos que nasceram em Maringá, ou que aqui chegaram nas fraldas, estão no fim. Portas vão sendo fechadas. Amanhã começa tudo de novo. Cada um vai, novamente, lutar para o sustento da família e, consequentemente, para o desenvolvimento deste lugar. A gente não pode parar. Maringá não para.

Fonte:
Antonio Roberto de Paula. Da minha janela. Maringá/PR: Gráfica Sthampa, 2003.

Rita Mourão (Trovas Premiadas) 1


Abro a porta do passado
e vejo em pleno apogeu,
um rosto alegre, animado,
teimando que o rosto é o meu.
- - - - - -
Abro a porta e a janela
do meu coração em festa
quando a manhã tagarela
põe voz na densa floresta
- - - - - -
Abro a porta, enxugo o pranto
e fico a esperar teus braços,
mas para o meu desencanto
os passos não são teus passos.
- - - - - -
Amanhece, o dia é lindo,
e o passaredo contente
faz festa ao sol, que sorrindo.
lá do céu contempla gente.
- - - - - -
A mulher que é mãe me encanta,
no lar, seja aonde for.
Pois sendo mãe ela é santa
sendo mulher é o AMOR.
- - - - - -
Ante a bandeira hasteada
revendo as lutas, conceitos,
o pobre sem pão, sem nada
pede à pátria os seus direitos.
- - - - - -
Buscando nosso poente,
vamos nós dois bem juntinhos
sem deixar que envolva a gente
a solidão dos caminhos.
- - - - - -
Busquei-O além do horizonte,
nas águas do mar sem fim,
mas curvando a minha fronte
senti Deus dentro de mim.
- - - - - -
Com as chaves da alvorada,
Deus que é poder e magia,
deixa a noite enclausurada
e abre as portas para o dia.
- - - - - -
Com ousadia me olhaste,
ousada eu correspondi.
Com loucura me abraçaste
e o resto eu juro, nem vi!
- - - - - -
Desbravando o chão mineiro,
com brio, amor e esperança,
de um pai humilde e guerreiro
me veio a maior herança!
 - - - - - -
Deus ao criar as estrelas
zeloso cumpriu a meta,
mas para alguém descrevê-las
criou também o poeta.
- - - - - -
Escrevo, mas sou discreta,
me anulo, libero a mente
e deixo solto o poeta
que só fala o que ele sente.
- - - - - -
Este meu andar sisudo,
que modela a caminhada
já retrata quase tudo
que a vida transforma em nada!
- - - - - -
Eu juro, mas com loucura,
minha emoção num relance,
abre a porta, quebra a jura
e a ti concede outra chance.
- - - - - -
É um velho lar meu legado
onde o amor gerou bonança
e pôs um filho ao meu lado
multiplicando essa herança.
- - - - - -
Faça do livro, criança,
a rota dos sonhadores.
O livro é o barco que alcança
o porto dos vencedores.
- - - - - -
Felicidade, abre a porta
vem logo ressuscitar
minha esperança já morta
cansada de te esperar.
- - - - - -
Fortuna, uma velha aldeia
onde a minha mãe querida
sob a luz de uma candeia
me dava lições de vida.
- - - - - -
Fui juiz de alheios fatos
hoje a vida com razão
me faz réu dos mesmos atos
que aos outros neguei perdão.
- - - - - -
Julguei sem pensar que um dia
os anos réu me fizessem,
sem defesa à revelia,
nos bancos dos que envelhecem.
- - - - - -
Levada por fantasia
de um desejo inconsciente,
eu beijo na cama fria
as formas de um corpo ausente.
- - - - - -
Meu pai foi um homem pobre,
mas dentro do lar garanto
que na vida nenhum nobre
pela família fez tanto.
- - - - - -
Meus retalhos de esperança,
juntei-os, pus no correio.
( Destino, velha criança,)
mas a resposta não veio.
- - - - - -
Mineira com mil louvores,
Paulista por adoção,
dois estados, dois amores,
dividindo um coração.
- - - - - -
Minha casa é pequenina,
com janelas sem vidraça,
mas tem a luz genuína
que do céu me vem de graça.
- - - - - -
Minha saudade é concreta,
tem nome, tem residência,
foi luz que me fez poeta
mas hoje se faz ausência.
- - - - - -
Minha saudade em vigília
revive os velhos Natais,
das orações em família
que os anos não trazem mais.
- - - - - -
Na humilde escola do lar,
de um saber santo e prudente,
com lições do verbo amar
meu pai me fez ser mais gente.
- - - - - -
Na minha fé hoje intensa
repasso o tempo que avança.
Foi recompondo essa crença
que ainda tenho esperança.
- - - - - -
Não condeno a caminhada
culpo sim, meus passos falhos.
Foi bem larga a minha estrada
fui eu quem buscou atalhos.
- - - - - -
Não diga adeus por favor,
me deixa assim , iludida.
Quero pensar que este amor
não tem porta de saída.
- - - - - -
Não lamento o meu outrora,
nem choro uma dor vivida,
lamento sim, a demora
em pôr Deus em minha vida.
- - - - - -
Não lamento o meu passado,
nem mesmo o tempo me ofende.
Viver é um aprendizado
quem mais vive mais aprende.
- - - - - -
Não me curvo ante o fracasso
nem lamento as busca mortas,
na coragem dos meus passos
trago as chaves de outras portas
- - - - - -
Fonte:
Site de Rita Mourão
https://versosderita.weebly.com/trovas-premiadas.html

Dorothy Jansson Moretti (Andorinhas em Desespero)


Conheço o Rio Itararé desde quando conheço a mim mesma.

Conheço-o em trechos entre a mata, manso e de águas calmas.

Conheço-o entre praias brancas e luminosas. E conheço-o melhor ainda, em razoável extensão de seu trecho subterrâneo, com suas grutas famosas e belas.

Centenas de vezes "fui à Barreira", passeio tradicional de todo itarareense, e de todo o visitante que por aqui aparece. Centenas de vezes desci as escadas que levam às grutas e sempre observei o rio naquele seu aspecto habitual; fundo, entre altos paredões escarpados, sumindo e reaparecendo, ora parado e sombrio, ora borbulhante, claro e encachoeirado.

Por tudo isso, nunca poderia imaginar (mesmo conhecendo as fotos que meu pai bateu dos estragos causados por duas de suas mais catastróficas enchentes que, em pessoa, eu iria presenciar a cena com que me deparei no sábado, ante-véspera do Ano Novo,

Chovia muito, mas mesmo assim meu filho quis mostrar à noiva essa maravilha da natureza, quem sabe a maior de nossa querida terrinha. Já de longe, vimos que a pequena queda d'água adjacente, que se avista na descida para a ponte que dá acesso às grutas, estava suja e incrivelmente aumentada em seu volume. Mas ainda assim, deixamos despreocupadamente o carro, pensando que o rio apenas estivesse mais cheio do que o habitual.

Foi um susto! As águas haviam subido até encobrir totalmente a "Gruta da Santa", submergindo também a maior parte das escadarias, e passando sob a ponte um torvelinho vermelho e bravio.
Gruta da Santa

A escada de pedras naturais que levam à margem esquerda do rio, submersa até as grades de proteção, lá embaixo, impossibilitavam o acesso até mais perto, amedrontando a gente numa sensação de horror.

O "Poço da Cruz" também estava encoberto, mal deixando entrever as aberturas cruzadas que lhe dão o nome. E os paredões verticais de granito tinham-se reduzido a uma altura quase insignificante. Em suma, as soturnas águas subterrâneas corriam agora livres, caudalosas e barrentas, quase ao nível das margens, como as de um outro rio qualquer.

Que surpresa e que espetáculo aterrador para mim, que tantas vezes desci até aquelas cavernas!

O zelador da ponte, receoso e preocupado, pediu-me que telefonasse ao Prefeito. Havia muita formicida no pequeno depósito embaixo da ponte, e toda a água ficaria envenenada se o rio continuasse a subir. O Prefeito prometeu providências.

E as andorinhas?

Pobres aves! Em penosas tentativas procuravam atingir seus ninhos nas cavernas, a essa altura já totalmente arrasados pelo turbilhão.

A tradicional revoada em nuvem negra, para a descida em flecha até os grotões, espetáculo que lhes deu nome e fama, simplesmente tornou-se em evoluções desordenadas e atônitas por sobre o que restava visível dos altivos e escarpados paredões,

Que quadro doloroso! Que tristeza imensa saber que nada, nada mesmo poderia ter sobrevivido à voragem daquelas águas turvas e descomunalmente furiosas em que se transformara o belo e misterioso Rio Itararé!

(Tribuna de Itararé— 24/01/90)

Fonte:
Dorothy Jansson Moretti. Instantâneos. São Paulo: Dialeto, 2012.
Livro enviado pela escritora.

sexta-feira, 8 de maio de 2020

Carolina Ramos (O Momento Supremo)


No momento supremo, a mulher se agiganta!
É mãe! quer num palácio ou mísera choupana,
humílima ou rainha... e pecadora ou santa,
é mãe! - quase divina e mais que nunca, humana!

Um lamento de dor aflora-lhe à garganta!
O sofrimento a abate! O medo a desengana!
Mas aquela que é mãe, a si mesma suplanta,
quando a vida de um filho a exige soberana!

O olhar materno fulge e que ternura exprime
quando a mulher abraça à vez primeira, ansiosa,
o seu fruto de amor! O seu botão de rosa!

E, a coroar-lhe a beleza, a lágrima a engrandece:
- puro orvalho a abençoar, no beijo mais sublime,
a roseira feliz, que entre espinhos floresce!

Fontes:
Poema enviado pela poetisa.
Imagem: www.homify.in

Malba Tahan (A Vida Mais Bem Vivida)


Todas as vezes que o Emir Motavakel-Billah dava audiência pública em seu luxuoso divan, acontecia algo de singular, isto é, ocorria um episódio qualquer surpreendente, digno de ser escrito e conservado nos anais do Califado. E isso, afirmavam os funcionários do palácio, sucedia sempre. Era certo, era fatal. Maktub! (1)

Quando o soberano, naquele ano, depois do último dia da Lua de Ramadã (2), marcou a chamada Sessão da Plena Justiça, uma onda de curiosidade agitou os nobres e auxiliares da corte:

— Que iria acontecer? Que novo caso surgiria, de improviso, entre os nômades, cheiques (3) , mercadores e caravaneiros?

E ficaram todos na expectativa: Aguardemos o que está para acontecer — diziam. A vida é uma sucessão de surpresas preparadas pelo Destino. Fugir ao Destino é impossível. Maktub!

Ora, naquele dia, exatamente, tudo correu com natural e decepcionante naturalidade. O Califa, seguindo a rotina enervante, ouviu as queixas (eram sempre as mesmas), atendeu aos solicitantes, socorreu várias pessoas que precisavam de auxílio urgente e determinou que fossem sanados certas irregularidades e abusos do serviço público. Já ia, afinal, o soberano árabe encerrar a sua fecunda e benemérita audiência e proferir o clássico Inch’Allah! (Assim quis Allah) quando o preclaro e prestigioso Welid ben Obeid, o vizir secretário, preveniu-o, respeitoso:

— Deveis, ainda, ó Rei!, ouvir o que deseja aquele desconhecido. Tenho a impressão de que se trata de um simples pescador que vive do outro lado do rio.

E apontou para um homem, de cara chupada, que se achava um pouco afastado, com uma cesta na mão, recostado a uma coluna. Trajava uma modesta abaya azulada.

— Sim, sim — assentiu com veemência o Califa, cofiando a barba. — Vamos ouvi-lo. Ouahyat ennébi! Que pretenderá ele, nesta sessão?

A um sinal do vizir, o solicitante aproximou-se do Rei, proferiu a saudação clássica (salam aleikoum!) e disse, a seguir, com fervoroso respeito:

— Chamo-me Kalil, ou melhor, Kalil Iamam. Sou pescador e venho da aldeia de Suan, onde vivo com minha esposa e três filhos. A minha vinda hoje, a este divan, tem, apenas, um objetivo: moveu-me o desejo de oferecer pequeno e desvalioso presente ao nosso glorioso Emir! (Que Allah vos cubra de benefícios!).

E, depois de proferir tais palavras, o pescador colocou aos pés do Rei a cesta que trouxera com peixes. Mas (coisa curiosa!) a tal cesta não estava cheia. Longe disso. Tinha peixes só até à metade. Ora, sempre que um pescador de Damasco, de Bagdad ou de qualquer outro recanto do Islã, oferece uma cesta de peixes ao Rei, esta cesta deve estar repleta, a transbordar de pescados. Assim determina a velha praxe; assim reza a tradição; assim é que é correto.

Sem se mostrar ofendido com a desatenção do ofertante, o Califa Motavakel-Billah olhou, com simpatia, para a cesta meio vazia; olhou, a seguir, também, com muita simpatia, para o pescador que se achava de pé, em atitude respeitosa, braços cruzados. Os seus trajes eram modestos, mas não se sentia nem desmazelo nem miséria; ostentava, em contraste com a abaya (longa túnica) azulada, um turbante cinzento desbotado, tracejado de pequenos remendos; tinha o rosto escanhoado denegrido pelo Sol; os olhos escuros, cor de tâmara; testa larga; em idade deveria estar rondando a casa dos quarenta e sete ou quarenta e oito anos bem vividos.

Depois de ligeira pausa, o Rei tirou de pequena bolsa (das três que trazia presas ao cinto) e entregou-a ao pescador, dizendo com voz pausada e em tom paternal:

— Acabo de receber de ti, meu bom e atencioso amigo, uma cesta meio cheia; e em troca, para retribuir a essa gentileza, a essa expressiva fineza de tua parte, ofereço-te esta bolsa meio vazia!

O pescador, de relance, percebeu a intenção, o propósito astucioso do Rei; a bolsa continha moedas, mas essas moedas mal atingiam a metade da bolsa.

E o valioso Califa, preocupado em parecer original (a corte estava reunida e assistia à audiência), repetiu com certa ironia, acentuando bem as palavras:

— Estás vendo, ó pescador Iamam!, recebi de ti esta bela cesta meio cheia; e, em troca, ofereço-te esta modesta bolsa meio vazia!

— Por Allah! — volveu o pescador, com um sorriso ladino, quase instantâneo. — Pelos sete méritos do Profeta! (4) Há um engano, ó Emir!, de vossa parte. Eu, sim, que vos ofereci uma cesta meio vazia; e recebo de vossas mãos, em troca, esta valiosa bolsa meio cheia.

E acrescentou com ênfase, vibrando a um súbito calor de emoção:

— A verdade deve ser dita e reconhecida, ó Rei! Aquele que dá, dá sempre a cesta meio vazia; aquele que recebe, recebe, sempre a bolsa meio cheia. Que valem sete ou oito peixes? Uma lembrança... e nada mais. A dádiva, porém, de um Rei generoso e justo não é um simples presente, é um elogio!

Aquelas palavras, proferidas com tanto desembaraço e clareza, pelo pescador do turbante desbotado, surpreendeu o Califa dos árabes. Disse, então, Motavakel, dirigindo-se a seus vizires e secretários, num irreprimível espanto:

— Ualahi na telabi! Estão vendo? Este bom e modesto pescador tem a alma de filósofo! É um verdadeiro filósofo!

Sorriu o pescador e replicou com certa afoiteza:

— Perdão, ó Emir dos Crentes!, é muito natural que um pescador seja filósofo, pois sei de muitos filósofos que são pescadores.

Houve um momento de silêncio no largo divan do Rei. Vizires, cheiques e secretários, homens do estudo e do saber, surpreendiam-se com as réplicas oportunas e judiciosas do modestíssimo pescador de Suan.

— Filósofos pescadores? — estranhou o Califa — Ouallah!

E, voltando-se para o seu digno vizir Welid ben Obeid, que era um sábio, um verdadeiro ulemá, interpelou-o com assombro, incrédulo:

— E tu, ó esclarecido vizir!, que conheces os Livros da Sabedoria, os escritos dos alfaquis, os comentários do Profeta, tira-me desta dúvida: Julgas que esse pescador proferiu a verdade? Há filósofos que são pescadores? Não será isso uma fantasia desatada?

Welid ben Obeid, o sábio (que Allah o tenha entre os eleitos), inclinou-se diante do Rei e assim falou (as suas palavras denunciavam certa emoção):

— A julgar por mim, ó Príncipe dos Crentes!, esse bom e honrado pescador disse a verdade. A pura verdade. Quando me sinto fatigado de ler e de ouvir os filósofos, de analisar, letra a letra, os ensinamentos dos Inspirados, as sentenças dos doutores, os hadis do Profeta, tomo de minha rede, dos meus apetrechos de pesca, e vou, com meu filho mais moço, até o rio fazer um pouco de pescaria. Procuro repouso, para o meu conturbado espírito, tornando-me pescador. A pesca é, para mim, tranquilidade e paz. Esqueço, por momentos, os problemas torturantes da alma, as inquietações da Dúvida, e ponho-me a pescar. É uma delícia pescar. A vida passa e o pescador, absorto em sua faina, não sente o passar tristonho da vida! Em cada minuto de espera vive, o incansável e paciente pescador, um ano de intensas emoções. A vida mais vivida, ó Rei do Tempo!, não é a vida do filósofo, é a vida do pescador.

O eloquente Welid ben Obeid, mestre entre os mestres, aclarou, com solene exaltação:

— Posso, pois, assegurar-vos, ó Emir!, que esse pescador disse a mais pura verdade. Há, realmente, pelos quatro cantos do mundo, filósofos que são pescadores. Volveu, então, o Califa:

— As tuas palavras, meu caro vizir, são como brincos preciosos de ouro puro para os meus ouvidos. Admito, agora, que esse pescador tenha dito a verdade. Aceito que um filósofo possa ser pescador. Sim, aceito e acredito. O que me parece estranho e inaceitável é que um pescador seja filósofo!

— Peço humildemente perdão, ó Emir! — acudiu por sua vez o pescador, com certa desenvoltura — Mas nada há, nem pode haver, de estranho no fato de um pescador ser filósofo. Muitas e muitas vezes, quando me sinto cansado de pescar, o corpo dolorido pela faina, largo a minha pesada rede, as minhas linhas, a caixa com iscas, e vou até à Mesquita Otman ouvir as lições dos ulemás que ensinam Filosofia e debatem os graves problemas do Ser e do Não-Ser. Procuro repousar para a fadiga do meu corpo, tornando-me filósofo. A Filosofia é, para mim, tranquilidade e paz. Esqueço, por um momento, os problemas e tropeços de minha vida de pobre, e ponho-me a filosofar. É uma delícia filosofar! A vida passa e o filósofo, enlevado em suas abstrações, não sente o passar inexorável da vida. Sinto aqui discordar do sábio analista Welid ben Obeid! A vida mais bem vivida, mais sentida, é a meu ver, não a vida serena do pescador, mas a vida intensa do filósofo!

— Iallah! — exclamou o Califa, esfregando as mãos, num petulante ar de inteligência. — Pela sombra da Caaba! É realmente curioso o que acabo de ouvir. O filósofo Welid ben Obeid, o sábio, descansa de seus estudos, pescando; o diligente pescador Kalil descansa de sua faina de pescador, estudando os altos problemas filosóficos!

E o Rei dos Árabes, depois de ligeira pausa, rematou com a mais afetuosa simplicidade:

— Já ouvi contar que Jesus, filho de Maria, quando quis escolher os seus primeiros discípulos foi procurá-los, não entre os filósofos, mas sim entre os pescadores. Que Allah, o glorificado, proteja os pescadores e esclareça os filósofos!

Vizires e escribas da corte comentavam:

— Já era de esperar!

No final da audiência real, eis que ocorre o imprevisível: Um pescador humilde e pobre vira filósofo; um filósofo, rico, prestigioso, sábio de renome, grão-vizir do Rei, vira pescador. Maktub! (estava escrito!) Mas, afinal, a semente da dúvida estava lançada entre os sábios e doutores bagdalis:

— Quem tem a vida mais bem vivida? O pobre Iamam, o pescador, ou o rico Welid ben Obeid, o filósofo?

Dizia o douto Sibawaihi, o analista:

— A vida mais bem vivida terá aquele que viver na Paz, no Dever e no Amor, isto é, aquele que viver na Verdade de Deus!

Uassalam!
****************************************
Notas:
1 Maktub - Estava escrito. Tinha que acontecer. Admite o fatalismo dos árabes que a nossa vida, com todas as suas peripécias, está escrita no Livro do Destino. Maktub é o particípio passado do verbo Katb, escrever.

2 Ramadã - Período da Quaresma entre os muçulmanos.

3 Cheique - Chefe. Homem de prestígio.

4 Profeta - Refere-se a Maomé, o fundador do Islamismo. Maomé nasceu em 570 e faleceu em 632. É pelos árabes chamado O Profeta.


Fonte:
Malba Tahan. O Gato do Xeique e Outras Lendas.

Ruth Guimarães (Dona Baratinha)


Dona Baratinha foi varrer a casa e achou um tostão. Na mesma hora, desatou o avental, lavou o rosto, passou pó-de-arroz nas faces, e foi fazer compras. Com o tostão achado comprou móveis, para mobiliar a casa inteira, uma geladeira, um aparelho de televisão, tapetes e cortinas, vestidos e mais vestidos, sapatos caros e enfeites. Comprou joias e espelhos de cristal. Comprou petiscos muito gostosos e fez um sortimento de doces que é coisa de que barata gosta muito. O troco pôs numa caixinha forrada de cetim vermelho, chaveou-a, amarrou um laço de fita nos cabelos e foi muito lampeira para a janela apreciar o movimento e arranjar um casório, uma vez que tinha dote.

"Quem quer casar com dona Baratinha,
Tão bonitinha
Que tem dinheiro na caixinha?"

Perguntou ela com a voz mais docinha do mundo.

Passou o boi.

- Eu quero – mugiu.

E ela:

- E como é que você muge de noite?

E o boi:

- Assim: buuuuuuuu! – abriu o focinho num berro de doer os ouvidos.

Dona Baratinha correu assustada para dentro. Lá cheirou o frasquinho de sais, e depois bem calma, voltou para a janela. O boi estava esperando a resposta.

- Ah! – Dona Baratinha se abanava toda afobadinha. – Não quero me casar com você, não. Você me assusta.

O boi foi embora, e ela fincou os cotovelos na janela outra vez, esperando que passasse outro moço bonito.

Passou o burro.

"Quem quer casar com dona Baratinha,
Tão bonitinha
Que tem dinheiro na caixinha?"

Ciciou a mocinha casadoura, esfregando de leve uma asa na outra.

O burro deu um zurro de abalar a casa:

- Eu quero.

Mas é assim que você zurra de noite? – perguntou a dona Baratinha, ainda toda trêmula do susto.

- Ah! – o burro deu um risadão. – De noite eu canto com voz muito mais forte. – E deu outro zurro, de arrebentar os tímpanos.

- Deus me livre de casar com você, burro. Você não me deixaria dormir.

O burro foi embora e a dona Baratinha se encostou outra vez romanticamente no peitoril da janela. Ora ajeitava a fita no cabelo, ora suspirava.

Passou o cavalo.

"Quem quer casar com dona Baratinha,
Tão bonitinha
Que tem dinheiro na caixinha?"

- Eu quero – relinchou o cavalo, mostrando todos os dentes, de satisfação.

- Como é que você faz, de noite?

- Eu, minha flor, cantarei de amor tão fortemente...

- Mas como?

- Assim: inoch! inoch! inoch! inoch! inoch!

- Ai! Chega! – gritou dona Baratinha tampando as mimosas orelhinhas. – Chega! Eu não me caso com cavalo de jeito nenhum. Você não me deixaria dormir direito.

O cavalo foi embora, dona Baratinha ajeitou os cotovelos em cima de uma almofada, prevendo que a espera seria longa.

Passou o cachorro.

"Quem quer casar com dona Baratinha,
Tão bonitinha
Que tem dinheiro na caixinha?"

Falou a moça, muito assanhadinha, vendo-o bonitão, de pelo lustroso, orelhas em pé, passo ligeiro.

- Eu quero. – O cachorro latiu um consentimento rápido.

- Como é que você faz de noite, cachorrinho?

- Depende.

- De quê?

- Se estou alegre é assim: au! au! au!. Se estou triste ou doente, é assim: Uaaaauauuuu! – E o cachorro uivou, de focinho para cima, caprichando nos bemóis.

- Ui! Ai! Aiaiaiai! Não me faça chorar! Você não me serve. Tanto a sua alegria como a sua tristeza me incomodam.

Dona Baratinha suspirou um pouco, pois fazia tanto tempo que estava na janela e ainda não tinha encontrado noivo que servisse.

Passou o gato.

Que belo bichano, de pelagem de seda, cinzento, macio, cara redonda, boquinha cor-de-rosa, bigodes eriçados, orelhas recortadas em triângulo isósceles.

O coração de dona Baratinha palpitava mais apressado quando ela cantou em voz emocionada, desta vez:

"Quem quer casar com dona Baratinha,
Tão bonitinha
Que tem dinheiro na caixinha?"

- Eu quero – ronronou o gato, no fundo da garganta, numa doçura de voz.

- Você ronrona assim, de noite, gatinho?

- De noite? – O gato fez um floreio com a cauda. – Não. De noite, subo ao telhado. Sou namorado da lua. E deliro miando assim: miaaau! miau! miiiiaaaau!

Dona Baratinha suspirou.

- Que pena! Você não me serve não. Não me deixaria dormir. Que pena!

Passou o bode.

"Quem quer casar com dona Baratinha,
Tão bonitinha
Que tem dinheiro na caixinha?"

O bode berrou, muito azuretado:

- Eu quero.

- Quer, coisa nenhuma! – respondeu logo dona Baratinha. – Você é muito sem modos, malcheiroso, barulhento. Com esse berro tremido vai me incomodar de noite.

Passou o galo. De crista e esporão. De barbela vermelha. Asas douradas, rabo empenachado. Bonito de se ver como um mosqueteiro do rei da França.

- Como eu gostaria que esse fosse o meu noivo – pensou dona Baratinha. E com voz muito esperançada:

"Quem quer casar com dona Baratinha,
Tão bonitinha
Que tem dinheiro na caixinha?"

- Eu quero – cocoricou o galo, riscando o chão com a aguda espora.

- Você canta de noite?

- Se canto! – blasonou ele, e a barbela ficou mais vermelha de orgulho. – Se canto! Começo à meia-noite e vou madrugada afora, cocoricóóóóóóó’!

Dona Baratinha virou a carinha bonita para o outro lado.

- Não serve! Vá andando!

E assim passaram o carneiro, o macaco, a onça, a anta, a capivara, o gambá, muitos e muitos bichos, de casa e do mato, nenhum servia, porque iria incomodar o soninho leve de dona Baratinha. Já bem tarde, quando as luzes da cidade se acenderam, passou um camundongo, quietinho, sorrateiro, dando corridinhas e paradinhas. Espiando matreiro para todos os lados. Correndo outra vez, os olhinhos espertos saltando daqui para ali. Dona Baratinha parou a espiar os seus inquietos manejos, divertida com o bichinho, e quase se esquecia de perguntar. Lembrou-se em tempo, quando o camundongo já ia longe:

"Quem quer casar com dona Baratinha,
Tão bonitinha
Que tem dinheiro na caixinha?"

- Eu quero – guinchou o ratinho, tão baixo que quase não se ouvia.

- O que é, ratinho? Você quer?

- Quero.

- Como é que você faz de noite?

O ratinho guinchou:

- Coin, coin, coin.

- Assim baixinho? – perguntou dona Baratinha, encantada. – Então serve. Você não me acorda com esse barulhinho. Como é o seu nome?

O ratinho empolou bem o peito e falou:

- Dom Ratão.

Deu outra corridinha, para longe, para perto.

Ficaram noivos.

No dia do casamento preparava-se uma festa de arromba. O troco do tostão dava para tudo. Mataram frangos, não sei quantos, leitões, bois, e fizeram doces e mais doces.

- Sabe do que eu mais gosto, Baratinha? – perguntou o noivo, no seu guincho macio.

- Do quê?

- De toucinho cozido no feijão.

E então dona Baratinha deu ordem para que se fizesse uma caldeirada de feijão com torresmo, bem temperado. O perfume da panela, logo pela manhã, recendia pela casa toda. Dom Ratão chegou, eram umas dez horas, muito elegante, de casaca e cartola, luvas brancas, bengala de castão dourado, calças listradas. Parecia um presidente em dia de recepção no palácio. Mas qualquer coisa o inquietava. Farejava, erguendo o focinho fino, dava corridinhas mais do que de costume.

- Está nervoso, querido?

- Estou.

Na hora da saída, desceu na frente dona Baratinha, arrastando a cauda do vestido de cetim, e o comprido véu de tule pela escadaria. O noivo veio a passo, atrás. A noiva já tinha entrado no automóvel, quando dom Ratão fez cara de contrariedade:

- Que maçada!

- Que foi?

- Esqueci o relógio lá em cima.

- Vou mandar alguém buscar.

- Não. Só eu sei onde o deixei. Espere um minuto.

Deu uma corridinha até o meio da escada, voltou, avisou:

- Um minutinho. Eu já venho.

Outra corridinha para cima. E a noiva ficou esperando.

Passou meia hora, dom Ratão não voltou. No relógio da sala soaram as onze. Dom Ratão não voltava. Chegou o meio-dia. Não voltara dom Ratão.

- Fugiu – gemia dona Baratinha inconsolável. – Não gosta mais de mim. Fingiu que ia buscar o relógio e fugiu para não casar. – Subiu novamente a escadaria arrastando o vestido de cauda e o véu. Por muito que fosse o desconsolo, não era caso para se fazer jejum por isso.

- Afinal, não se perdeu grande coisa – comentou uma empregada. É melhor pôr o almoço.

E lá se foram todos para a mesa.

Mas então é que foi uma dor. Ao mexerem o caldeirão de feijão encontraram o coitado do noivo, morto, cozido, misturado com os torresmos. Que horror! Dona Baratinha, depois de clamar que "Dom Ratão, coitado, era tão bom, eu sabia que ele gostava de mim, aconteceu, coitado!, de ir provar um torresmo e cair no caldeirão, podia ter pedido, a gente fazia um pratinho para ele, não quis me desgostar, coitado! tão delicado" – teve um chilique e foi um alvoroço monstro em casa de dona Baratinha, tão bonitinha. pois dom Ratão tinha morrido no caldeirão de feijão cozido, por causa de um pedaço apetitoso de toucinho.

Dona Baratinha pôs o luto, trancou todas as portas, e chorou tanto que lavou a casa com lágrimas. A cozinheira de dona Baratinha pegou o pote e foi buscar água no rio. Encheu a vasilha, mas em vez de ir para casa, começou a se lastimar:

- Como é triste esta vida. Dom Ratão morreu. Dona Baratinha, tão bonitinha, está de luto. E eu, por isso, quebro o pote.

Pam!

Bateu o pote numa pedra e foi-se embora. O rio ouviu tudo aquilo, encolheu-se e resolveu:

- Eu também seco.

Os bois vieram à tarde, nem sombra viram de água.

- Que é isso, rio? Que aconteceu?

- Dom Ratão morreu, cozido na panela de feijão com toucinho. Dona Baratinha pôs luto, a cozinheira quebrou o pote, e eu também sequei.

- Que horror!

Os dois abanaram a cabeçorra, melancólicos e declararam:

- Então nós derrubamos os chifres.

Foram pastar. O campo, quando viu os bois mochos, muito sem graça, pastando, se espantou:

- Que foi isso? Que fizeram vocês dos chifres?

- Você então não soube da grande desgraça?

- Não.

- Pois dom Ratão morreu cozido, dona Baratinha pôs luto, a cozinheira quebrou o pote, o rio secou e nós derrubamos os chifres.

- Que tristeza! Eu também vou secar.

De verdinho que estava, o campo ficou todo amarelado. Bem no meio dele estava um laranjeira e quando ela viu aquilo perguntou:

- Que é isso, campo? O que lhe deu? Está se sentindo mal?

- Não, dona Laranjeira. Eu estava muito bem até. Amarelei foi de desgosto. Não vê que dom Ratão morreu cozido na panela de feijão com toucinho, dona Baratinha pôs luto, a cozinheira quebrou o pote, o rio secou, os bois derrubaram os chifres e eu também sequei?

A laranjeira derramou uma lágrima e disse:

- Então, eu derrubo as folhas.

Choveram folhas no chão.

Os passarinhos que moravam nela, quando voltaram do trabalho à tarde, encontraram os ninhos expostos ao vento, ao sol e à chuva, na árvore nua.

- Que foi isso, dona Árvore, o que aconteceu que esta pensão está sem telhado?

- Vocês que andam voando por aí não souberam da desgraça?

- Não, senhora.

- Pois dom Ratão morreu, dona Baratinha pôs luto, a cozinheira quebrou o pote, o rio secou, os boi derrubaram os chifres, amarelou o campo e eu também derrubei as folhas.

Os passarinhos choraram, choraram.

- Que tristeza! Pois, de dó, nós também derrubaremos as penas.

E lá se foram eles, peladinhos, tremendo de frio, pelo campo, e andando em vez de voar, pois não tinham penas nem as asas.

O céu espiou aquele disparate, lá de cima, e estranhou:

- Ave Maria! Que mundo louco! O que será que deu naqueles passarinhos que perderam até a roupa?

Os passarinhos contaram:

- O senhor não sabe da grande desgraça?

- Não sei.

- Dom Ratão morreu cozido, dona Baratinha pôs luto, a cozinheira quebrou o pote, o rio secou, os bois derrubaram os chifres, o campo amarelou, a laranjeira ficou sem folhas, nós também nos depenamos.

- Que calamidade!

O céu se franziu numa carranca medonha. Começou a trovejar e a ventar. E depois urrou, com um vozeirão arrepiante:

- Pois então eu também vou despencar daqui de cima.

E desabou em cima da terra, no meio da tempestade mais horrorosa que já houve.

E foi assim que o mundo, certa vez, se acabou, só porque dom Ratão, que ia se casar com dona Baratinha, tão bonitinha, morreu cozido no feijão.

Fonte:
Ruth Guimarães. Lendas e Fábulas do Brasil. 1964.

quinta-feira, 7 de maio de 2020

Aparecido Raimundo de Souza (Microfrases) 2


31
Paixão
Te quero entre braços e abraços.

32
A Bela e a Fera

King Kong se apaixonou por Ann...

33
Gosto não se discute

Entre Matemática  e Biologia, prefiro Português.

34
Questão de gosto

Beiçola, meu cachorro, ama uma cadela.

35
Harmonia

Teu cheiro me embriaga de paixão.

36
Sonhador

O por do sol me encanta.

37
Sintonia

De pegada em pegada, pego você.

38
Melodia

Simplesmente você é minha canção favorita.

39
Definitivo

Seu adeus levou meu sorriso embora

40
Cotidiano

Caminhadas na praia me deixam disposto.

41
Devaneio

A esperança secou as minhas lágrimas.

42
Momento

Amo estar com você. Sou feliz!

43
Fatal

A tristeza deixou minha esperança perdida.

44
Do nada

A velha cadeira de balanço desbalançou.

45
Letal

O machado chegou derrubando várias árvores.

46
Sonho realizado

Feliz, o passarinho fugiu da gaiola.

47
Amor bandido

Ao te ver, caí de quatro.

48
Natureza

Os pássaros não gostam de gaiolas.

49
Dia a dia

Um gole de café me anima.

50
História em quadrinho

O fantasma se casou com Diana.

51
Futurista

Passado não importa. Já o presente!...

52
Avassalador

Teus beijos me embriagam de amor.

53
Parquinho infantil

Sou como uma enorme roda gigante.

54
Abissal

O vento toca suavemente meus cabelos.

55
Em literatura...

Livro bom não lemos. Todavia, devoramos.

56
Gesto natural

Me livrei do cobertor. Sentia calor.

57
Era só o que me faltava

A quarentena me prendeu em casa.

58
Sem dúvida

Descobri: meu medo vem da solidão.

59
Que azar!

Saltei de paraquedas. Ele não abriu.

Fonte:
Frases enviadas pelo autor.

Silmar Böhrer (Lampejos Poéticos) XXIX