A rosa que o meu amigo velho me dera anteontem ainda estava hoje bem passável. Olhei-a, pela manhã, quando lavava o rosto, e achei-lhe um encanto dorido de mulher bonita que, em pleno solstício de encantos, de repente se vê marcada pelos primeiros gorgulhos do tempo.
Esborrifei-lhe um pouco de água, e disse-lhe: "Que será de si amanhã, minha rosa?" As rosas sabem falar, e para ouvir e entender o que elas dizem não é preciso amar alguma senhora, como, segundo o poeta, se requer de quem deseje ouvir as estrelas. E a rosa, com soberba indiferença, respondeu: "Que será de mim? Olha esse grosseiro antropomorfismo, néscio animal! Então tu julgas que nós outras somos feitas da tua massa? Para mim e minhas irmãs todas as voltas do mundo são as mesmas. Eu, amanhã, não serei nada que tu aprecies, mas aí ficam infinidades de rosas desabrochadas e por desabrochar. E todas elas são eu mesma, porque eu sou todas, e não desapareço, nem sucumbo".
Muito bem, muito bem. Em todo caso, como rosa individual, a minha durava bastante. Malherbe assinou a esta flor, como prazo fixo de vida l'espace d'un matin, e entretanto é geralmente sabido que ela pode durar dois ou três dias, e mais. Mas também está geralmente convencionado que, para os efeitos poéticos, há de durar uma só manhã.
Verdades duplas, assim, há muitas, há tantas que o mundo está cheio delas.
A borboleta, símbolo da volubilidade na poesia, é com efeito uma excelente imagem da
constância, porque só faz indefinidamente a mesma coisa.
A abelha, essa dizem que é o tipo do ecletismo intelectual ou sentimental que saqueia a corola de todas as flores; na verdade, é a representação mais fiel da inflexibilidade de princípios, pois que não visita senão as flores que lhe forneçam matéria-prima, e delas não quer senão a pequenina dose de matéria-prima que possam dar.
O gato considerado como um animal de caráter independente, vive de fato na estreita dependência própria dos parasitas, não sabendo senão estar nas cozinhas e nos telhados; gravitando em redor da paparoca preparada.
À palmeira, chamam-lhe esbelta e soberba, ou altiva, ou senhoril. Não há o que se lhe oponha, porque, realmente, a gente pode dar às coisas os adjetivos que quiser, não havendo contrariedade declarada; mas é muito de notar que, assim como a palmeira é esbelta e senhoril, também poderia ser senhoril e esbelto um espanador de cabo comprido, ou uma vassoura do tipo antigo, trastes estes havidos como sumamente prosaicos.
O boi, símbolo da força, é um colosso tão frágil que passa da mocidade à decrepitude em meia dúzia de anos, e possui muitíssimo menos energia ativa do que uma formiga ou uma pulga. E a águia, emblema do gênio, porque tem asas e vive nas alturas, é menos inteligente do que uma galinha e nem sofre comparação com o castor, que passa a existência no fundo dos vales e no lamaçal dos rios.
Enfim, não se contam as verdades, duplas que todo o mundo enxerga, ou poderia enxergar, mas deliberadamente separa e torna reciprocamente estanques. E não só no que respeita ao mundo objetivo, mas também no que se refere ao próprio domínio subjetivo da experiência moral.
A economia é uma virtude, quando se põem sobre ela os óculos simpáticos da generalização poética; a economia, em seus casos concretos, é sempre uma indecenciazinha de que nos envergonhamos e que satirizamos nos mais.
"O amor é a mais bela e a mais santa das coisas desta vida": mas ninguém torne esse conceito como preceito porque se arrisca a ser apedrejado na praça.
"A calúnia é o fel das almas ignóbeis": na realidade, a calúnia é um vício tão generalizado e tão familiar como o do cigarro; e quem não o cultivar está no perpétuo risco de passar por idiota ou por "jesuíta".
Mas, afinal de contas, esses desdobramentos da verdade são úteis, porque correspondem a duas tendências fundamentais do espírito humano: a que visa a adaptação deste à natureza, e a que procura a sua adaptação à sociedade.
A primeira procede por via de indagações meticulosas e serenas; a segunda marcha por meio de conceituações imediatas e sínteses arrojadas.
A primeira é lenta, dificultosa e fatigante; a segunda é rápida, leve e encantadora.
A primeira fornece exercício a uma minoria de cabeças, especializa e desmembra funções, e como que pulveriza a continuidade e a fluência do real numa infinidade de corpúsculos gelados; a segunda comunica impulsos a toda a sorte de mentes, aproxima-as, harmoniza-as, estimula a imaginação e a simpatia, dando a todas a mesma concepção aproximativa das coisas, deformante mas agradavelmente fácil, ampla e satisfatória.
A primeira prepara o viveiro das verdades exatas e necessárias de amanhã; a segunda alarga o domínio das verdades agradáveis e convencionais provisórias para uns, perpétuas para a maior parte.
Instinto de saber, instinto de poesia. Dois irmãos inimigos, que não podem viver um sem o outro.
Posta de parte essa parlenda, o fato é que a resposta da rosa mais me enamorou dela. Enfiei-a na botoeira, apesar de já meio fanada. -Precisei, para tanto, de um pouco de decisão e atrevimento, pois nunca uso flores comigo, nem mesmo frescas. Audácia de carneiro. Atrevimento de cágado.
Instalado no bonde, semicerrados os olhos, e sentindo na face a carícia de uma pétala pendente, instiguei a minha interessante companheira a falar ainda, antes que algum golpe de vento ou algum encontrão a despojasse da sua voz feita de cor e perfume. Não se fez de rogada.
"Não sabes, amigo? Tal como aqui me vês, sou filho do conúbio do homem e da natureza... Tanto devo o ser ao solo, ao sol, ao ar, como ao espírito, à arte e à mão humana.
Sou um produto da terra e da civilização: duplamente flor de cultura.
Sou ao mesmo tempo a glória de Flora e a mais perfeita das flores artificiais. Tendo o viço hereditário das rosas selváticas e a aura humana das rosas de papel e de tecido, armadas por magras mãos de operárias tristes, mãos febris de moças namoradas.
O homem faz-me, cheio de suas vaidades, seus desejos, suas ambições, seus sobejos de carinhos, seu saber, seu gosto amável, paciente e caprichoso. Assim, uma infinidade de forças diversas vêm-se coordenando e vêm colaborando, através dos séculos, na seleção das minhas formas, dos meus tons e dos meus olores - florindo e reflorindo em mim.
De mim, pois, aprende, homem tolo e ingrato! a olhar a tua humanidade não tanto na sombria confusão dos seus galhos e ramas, como na vária e fugitiva permanência das suas flores, ou no perpétuo esplendor das suas graças transitórias.
Ama-a com todos os seus vícios e brutezas, com todos os seus primores e pulcritudes.
Não há vícios, não há primores, há só o homem. O homem e nada mais. O homem inumerável, incomportável e indefinível. O homem que te ultrapassa no espaço e no tempo, e cujos últimos limites partem do centro da terra e vão perder-se nas constelações.
Perdoa-lhe tudo, tudo. Perdoa-lhe simplesmente. Sem gestos e sem frases. Perdoa-lhe mesmo na cólera e na angústia. Reserva-lhe ao menos uma promessa de perdão no infinito, até para o que não possas, até para o que não devas perdoar.
Se tudo, nele, coopera na produção destes milagres de melindroso e incorruptível prestigio!
Milagres em que o fugitivo se confunde com o permanente, e o encanto de uma hora é um sorriso dos séculos.
Passam as catedrais, esfarelam-se os granitos e os bronzes, desagregam-se os impérios, e as nações dissolvem-se, mas eu permaneço na minha deliciosa insignificância, Como a última confidência de ternura e de beleza que as gerações legam umas as outras através dos abismos do tempo.
Sou a obra mais duradoura do homem. Não há ferrugem nem verme, nem guerras nem sinistros que me atinjam.
Vê como uma coisa assim pequenina e branda vem a ser o único triunfo comum das energias contraditórias derramadas pela face da terra!
Eis-me aqui, doce como um afago, leve como uma asa, breve como um sonho, mas forte como o que permanece e perdura, imorredoura e essencial como a lágrima e como o sorriso, esses dois resumos humanos da infinita comédia, e da infinita alegria do universo...
Serve-me com os olhos, aspira-me, grava-me na alma. E sabe que nunca faltarei ao pé de ti, se o quiseres. Busca-me, achar-me-ás. Eu só desapareço de teus olhos para que em ti se renove a ânsia pela minha presença.
Toda a perene agitação do mundo parece não ter outro fim que produzir uma espuma de rosas. Nada tão ao alcance da tua mão.
Colhe, beija e sorri.
Nesse minuto estarás num pináculo da vida e num ponto luminoso da eternidade.
Eu sou a Rosa, eu sou a Rosa, a beleza e a graça fugentes, a doce filha da terra vil e do homem desgraçado..."
Fonte:
Domínio Público
Esborrifei-lhe um pouco de água, e disse-lhe: "Que será de si amanhã, minha rosa?" As rosas sabem falar, e para ouvir e entender o que elas dizem não é preciso amar alguma senhora, como, segundo o poeta, se requer de quem deseje ouvir as estrelas. E a rosa, com soberba indiferença, respondeu: "Que será de mim? Olha esse grosseiro antropomorfismo, néscio animal! Então tu julgas que nós outras somos feitas da tua massa? Para mim e minhas irmãs todas as voltas do mundo são as mesmas. Eu, amanhã, não serei nada que tu aprecies, mas aí ficam infinidades de rosas desabrochadas e por desabrochar. E todas elas são eu mesma, porque eu sou todas, e não desapareço, nem sucumbo".
Muito bem, muito bem. Em todo caso, como rosa individual, a minha durava bastante. Malherbe assinou a esta flor, como prazo fixo de vida l'espace d'un matin, e entretanto é geralmente sabido que ela pode durar dois ou três dias, e mais. Mas também está geralmente convencionado que, para os efeitos poéticos, há de durar uma só manhã.
Verdades duplas, assim, há muitas, há tantas que o mundo está cheio delas.
A borboleta, símbolo da volubilidade na poesia, é com efeito uma excelente imagem da
constância, porque só faz indefinidamente a mesma coisa.
A abelha, essa dizem que é o tipo do ecletismo intelectual ou sentimental que saqueia a corola de todas as flores; na verdade, é a representação mais fiel da inflexibilidade de princípios, pois que não visita senão as flores que lhe forneçam matéria-prima, e delas não quer senão a pequenina dose de matéria-prima que possam dar.
O gato considerado como um animal de caráter independente, vive de fato na estreita dependência própria dos parasitas, não sabendo senão estar nas cozinhas e nos telhados; gravitando em redor da paparoca preparada.
À palmeira, chamam-lhe esbelta e soberba, ou altiva, ou senhoril. Não há o que se lhe oponha, porque, realmente, a gente pode dar às coisas os adjetivos que quiser, não havendo contrariedade declarada; mas é muito de notar que, assim como a palmeira é esbelta e senhoril, também poderia ser senhoril e esbelto um espanador de cabo comprido, ou uma vassoura do tipo antigo, trastes estes havidos como sumamente prosaicos.
O boi, símbolo da força, é um colosso tão frágil que passa da mocidade à decrepitude em meia dúzia de anos, e possui muitíssimo menos energia ativa do que uma formiga ou uma pulga. E a águia, emblema do gênio, porque tem asas e vive nas alturas, é menos inteligente do que uma galinha e nem sofre comparação com o castor, que passa a existência no fundo dos vales e no lamaçal dos rios.
Enfim, não se contam as verdades, duplas que todo o mundo enxerga, ou poderia enxergar, mas deliberadamente separa e torna reciprocamente estanques. E não só no que respeita ao mundo objetivo, mas também no que se refere ao próprio domínio subjetivo da experiência moral.
A economia é uma virtude, quando se põem sobre ela os óculos simpáticos da generalização poética; a economia, em seus casos concretos, é sempre uma indecenciazinha de que nos envergonhamos e que satirizamos nos mais.
"O amor é a mais bela e a mais santa das coisas desta vida": mas ninguém torne esse conceito como preceito porque se arrisca a ser apedrejado na praça.
"A calúnia é o fel das almas ignóbeis": na realidade, a calúnia é um vício tão generalizado e tão familiar como o do cigarro; e quem não o cultivar está no perpétuo risco de passar por idiota ou por "jesuíta".
Mas, afinal de contas, esses desdobramentos da verdade são úteis, porque correspondem a duas tendências fundamentais do espírito humano: a que visa a adaptação deste à natureza, e a que procura a sua adaptação à sociedade.
A primeira procede por via de indagações meticulosas e serenas; a segunda marcha por meio de conceituações imediatas e sínteses arrojadas.
A primeira é lenta, dificultosa e fatigante; a segunda é rápida, leve e encantadora.
A primeira fornece exercício a uma minoria de cabeças, especializa e desmembra funções, e como que pulveriza a continuidade e a fluência do real numa infinidade de corpúsculos gelados; a segunda comunica impulsos a toda a sorte de mentes, aproxima-as, harmoniza-as, estimula a imaginação e a simpatia, dando a todas a mesma concepção aproximativa das coisas, deformante mas agradavelmente fácil, ampla e satisfatória.
A primeira prepara o viveiro das verdades exatas e necessárias de amanhã; a segunda alarga o domínio das verdades agradáveis e convencionais provisórias para uns, perpétuas para a maior parte.
Instinto de saber, instinto de poesia. Dois irmãos inimigos, que não podem viver um sem o outro.
Posta de parte essa parlenda, o fato é que a resposta da rosa mais me enamorou dela. Enfiei-a na botoeira, apesar de já meio fanada. -Precisei, para tanto, de um pouco de decisão e atrevimento, pois nunca uso flores comigo, nem mesmo frescas. Audácia de carneiro. Atrevimento de cágado.
Instalado no bonde, semicerrados os olhos, e sentindo na face a carícia de uma pétala pendente, instiguei a minha interessante companheira a falar ainda, antes que algum golpe de vento ou algum encontrão a despojasse da sua voz feita de cor e perfume. Não se fez de rogada.
"Não sabes, amigo? Tal como aqui me vês, sou filho do conúbio do homem e da natureza... Tanto devo o ser ao solo, ao sol, ao ar, como ao espírito, à arte e à mão humana.
Sou um produto da terra e da civilização: duplamente flor de cultura.
Sou ao mesmo tempo a glória de Flora e a mais perfeita das flores artificiais. Tendo o viço hereditário das rosas selváticas e a aura humana das rosas de papel e de tecido, armadas por magras mãos de operárias tristes, mãos febris de moças namoradas.
O homem faz-me, cheio de suas vaidades, seus desejos, suas ambições, seus sobejos de carinhos, seu saber, seu gosto amável, paciente e caprichoso. Assim, uma infinidade de forças diversas vêm-se coordenando e vêm colaborando, através dos séculos, na seleção das minhas formas, dos meus tons e dos meus olores - florindo e reflorindo em mim.
De mim, pois, aprende, homem tolo e ingrato! a olhar a tua humanidade não tanto na sombria confusão dos seus galhos e ramas, como na vária e fugitiva permanência das suas flores, ou no perpétuo esplendor das suas graças transitórias.
Ama-a com todos os seus vícios e brutezas, com todos os seus primores e pulcritudes.
Não há vícios, não há primores, há só o homem. O homem e nada mais. O homem inumerável, incomportável e indefinível. O homem que te ultrapassa no espaço e no tempo, e cujos últimos limites partem do centro da terra e vão perder-se nas constelações.
Perdoa-lhe tudo, tudo. Perdoa-lhe simplesmente. Sem gestos e sem frases. Perdoa-lhe mesmo na cólera e na angústia. Reserva-lhe ao menos uma promessa de perdão no infinito, até para o que não possas, até para o que não devas perdoar.
Se tudo, nele, coopera na produção destes milagres de melindroso e incorruptível prestigio!
Milagres em que o fugitivo se confunde com o permanente, e o encanto de uma hora é um sorriso dos séculos.
Passam as catedrais, esfarelam-se os granitos e os bronzes, desagregam-se os impérios, e as nações dissolvem-se, mas eu permaneço na minha deliciosa insignificância, Como a última confidência de ternura e de beleza que as gerações legam umas as outras através dos abismos do tempo.
Sou a obra mais duradoura do homem. Não há ferrugem nem verme, nem guerras nem sinistros que me atinjam.
Vê como uma coisa assim pequenina e branda vem a ser o único triunfo comum das energias contraditórias derramadas pela face da terra!
Eis-me aqui, doce como um afago, leve como uma asa, breve como um sonho, mas forte como o que permanece e perdura, imorredoura e essencial como a lágrima e como o sorriso, esses dois resumos humanos da infinita comédia, e da infinita alegria do universo...
Serve-me com os olhos, aspira-me, grava-me na alma. E sabe que nunca faltarei ao pé de ti, se o quiseres. Busca-me, achar-me-ás. Eu só desapareço de teus olhos para que em ti se renove a ânsia pela minha presença.
Toda a perene agitação do mundo parece não ter outro fim que produzir uma espuma de rosas. Nada tão ao alcance da tua mão.
Colhe, beija e sorri.
Nesse minuto estarás num pináculo da vida e num ponto luminoso da eternidade.
Eu sou a Rosa, eu sou a Rosa, a beleza e a graça fugentes, a doce filha da terra vil e do homem desgraçado..."
Fonte:
Domínio Público
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