Biblioteca Manuel Antonio Pina |
À SOMBRA DE EVA
I
Era um tempo de trevas
e de brumas sobre o meu corpo.
Um tempo de pesadas vestes:
uma única janela para o meu rosto.
Um cavalo avassalava
minhas planícies e vales,
me punha bridas e loros,
depois um cinto de castidade.
Eu não falava: minha língua
guardava-se em ostra
e o estro silenciava-se
numa lira que dormia.
Meu amo determinava:
eu só ouvia.
Meu amo vociferava:
eu encolhia.
II
Com a roca e o fuso
e um cesto da mais pura lã,
adestrava meus dedos
para tecer a manhã.
Sozinha no burgo,
(ah! bem longe era o meu Senhor)
embalava no berço
a balada que eu compus.
E meu canto se alçava
e com ele também eu,
enquanto durava a paz
que a guerra me podia dar.
Eu não lia nem soletrava
sobre uma távola redonda;
só adestrava meus dedos
para tecer a manhã.
E num bosque bem fundo,
numa grota dentro de mim,
meu estro se formava
numa lira eólia
que acordava.
E eu enredava no fuso
(horário) outra manhã.
III
Quantos séculos dormiu meu canto?
Quem estrangulou minha garganta
afiada para solar, meu canto?
Era um pássaro mudo
engolindo a cascata
aérea de seu canto.
Um pássaro na gaiola
ferindo as asas —
sonata a debater-se.
Um pássaro preso
a olhar o céu (arquiteto)
e seu aceno de poesia.
PROCURA-SE
Quero um amigo verdadeiro
a quem possa vomitar
a alma e o coração inteiro.
Que me ouça sem interromper,
sem condenar nem defender,
que apenas me ouça o mais profundo.
E depois, sem nada cobrar,
seja terno, seja puro, só amigo,
bebendo comigo, sem dividir nem multiplicar,
a grande solidão de meus segredos.
O RISCO DAS PALAVRAS
(Para Moema de C. e Silva Olival)
Ah! a miséria da oficina das palavras!
Onde pescar a que melhor convém?
Maiakovski
Diante de você sempre emudeço.
Tenho as palavras batendo, ba-ten-do
ao peito mais que à garganta.
Mas é tão grande o risco das palavras
que, delas, finjo que me esqueço.
Ah, as palavras, se não houvesse o risco,
eu diria todas, tropeçando em pedras
como algumas cachoeiras, mas jorrando
sem parar a urgência de suas águas.
Mas as palavras acordam até mesmo
os deuses mais adormecidos
e é melhor não dizê-las, guardá-las
como pedras, mesmo ferindo o peito.
Se eu não as disse algum dia,
alguém lhe dirá sem medo do risco,
porque há os que abrem as comportas
e extravasem sem reservas suas águas.
Mas eu sou dessas barragens
que não se entregam nem extravasam,
mesmo com a maior das enchentes.
LIÇÃO
Embaixo, a rede.
Em cima, a lição
de um caramanchão.
Um trançado de cipós
camadas secas sobrepostas
nenhum sinal de vida
havida.
Sobre lianas mortas
outra explosão de verde
outra explosão em flor.
E um pássaro em concerto.
POEMA DA DOR SEM NOME
Essa mágoa
ói tão fundo
como se houvesse
perfurado o abismo
interior de meu mundo.
Dela, não serei vassala
só quero lançá-la
como um fio infinito
que se joga no abismo
até vomitar de vez
o início da ponta.
Depois, chegar
à íntima alegria
sem sentir a broca
perfurando a rocha
de meu poço artesiano.
À alegria de alcançar
as águas tranquilas
minhas mais profundas
reservas humanas.
E ouvir o íntimo silêncio
águas entre rochas calcárias
sem nenhuma pressa
águas que não estremecem
nem trincam
o espelho da alma.
ÍNVIO LADO
Tell all the truth but tell it slant -
Success in circuit lies.
Emily Dickinson
Há um lado da flor
que não penetramos:
talvez a reserva sitiada
onde guarda seu aroma.
Quase sempre esbarramos
em seus ferrões de defesa
e sangramos nossa dor
pela ponta dos espinhos.
E aí então paramos
e olhamos só por fora
a beleza que se entrega
com sua quota de reserva.
É do outro lado
(do mistério)
que não alcançamos
que a flor explode
em toda sua grandeza.
É lá que se contorceu
e guardou a sua história
e sangrou as suas gotas
e a solidão que (sobre)carrega.
Quem olha uma flor
ou um ser desabrochado
vê um prisma (feio ou lindo)
jamais o seu lado
inviolado.
ESCAPE
A raça humana
não pode suportar muita realidade.
T.S. ELIOT
Conheço a distância
que vai entre o sonho
e a dura realidade.
E conheço a fórmula
de amortecer o susto
e a queda do último piso.
Olhar sem crer lá fora
esse vidro que corta
e fechar, atrás de si, a porta.
Plantar, como sempre faço,
essas flores no paredão do muro
para deslumbrarem os meus olhos.
E, nessa lente distorcida,
em que capto a beleza,
mesmo aquela que não existe,
ficar musgo sobre a rocha
— véu veludoso verde veludo —,
cobrindo essa faca que cega o corte.
OS PEIXES DE MEU RIO
Não, não é fácil escrever. É duro como
quebrar rochas.
Clarice Lispector
Eu me desnudo e me visto
neste duro ofício de entrega.
Se as vestes revelam o corpo,
há o pudor e a dissimulação
no trançado desse tecido
que é teia e tato antes de tudo.
Eu me desnudo e me visto.
e nem assim eu me preservo.
Sob o vestido há sempre a pele
que transpira e se revela;
há outra dimensão do signo
que corcoveia e se rebela.
Sob o tecido há sempre um corpo
que se amotina e se entrega.
POEMA
No reverso, a história de meus versos.
No avesso, a pura canção de gesso,
que se sustenta no azul da lenda,
no equilíbrio do fio que (entre)teço.
Na superfície, a frauta noturna
de sustenidos ais e bemóis.
Na superfície, a fraude fria
e a neblina sobre mil lençóis.
E no fundo d'água, nos peraus,
que moram os peixes de meu rio.
É no remanso que alguma iara
sempre se esquiva solitária.
De repente, o susto da cilada,
um anzol recurvo — aço e isca —
mas os meus peixes não se entregam,
apenas provam de leve, triscam.
PONTO FINAL
Se não há mais nada a fazer
é isto mesmo - em frente.
Não importa a direção
a que se ande (já disseram)
desde que seja para frente.
Se a última palavra
já foi pronunciada
não cabe vírgula
nem outros sinais de pontuação
a não ser o ponto final
A VERDADE DENTRO
Se não houvesse
esse pacto secreto
de silêncio de chumbo
ou essa oclusão completa
de um travo-de-ferro
na grota da garganta,
a verdade fluiria fluida
do flanco da montanha
ou do poço da garganta.
Mas esse silêncio
foi fabricado, dentro,
não por mim ou você,
mas por oceanos de mãos,
segurando bridas e freios,
esmagando goelas e anseios,
desde a mais remota manhã
em que o potro selvagem
ensaiou sua disparada na planície.
Fonte:
Antonio Miranda
I
Era um tempo de trevas
e de brumas sobre o meu corpo.
Um tempo de pesadas vestes:
uma única janela para o meu rosto.
Um cavalo avassalava
minhas planícies e vales,
me punha bridas e loros,
depois um cinto de castidade.
Eu não falava: minha língua
guardava-se em ostra
e o estro silenciava-se
numa lira que dormia.
Meu amo determinava:
eu só ouvia.
Meu amo vociferava:
eu encolhia.
II
Com a roca e o fuso
e um cesto da mais pura lã,
adestrava meus dedos
para tecer a manhã.
Sozinha no burgo,
(ah! bem longe era o meu Senhor)
embalava no berço
a balada que eu compus.
E meu canto se alçava
e com ele também eu,
enquanto durava a paz
que a guerra me podia dar.
Eu não lia nem soletrava
sobre uma távola redonda;
só adestrava meus dedos
para tecer a manhã.
E num bosque bem fundo,
numa grota dentro de mim,
meu estro se formava
numa lira eólia
que acordava.
E eu enredava no fuso
(horário) outra manhã.
III
Quantos séculos dormiu meu canto?
Quem estrangulou minha garganta
afiada para solar, meu canto?
Era um pássaro mudo
engolindo a cascata
aérea de seu canto.
Um pássaro na gaiola
ferindo as asas —
sonata a debater-se.
Um pássaro preso
a olhar o céu (arquiteto)
e seu aceno de poesia.
PROCURA-SE
Quero um amigo verdadeiro
a quem possa vomitar
a alma e o coração inteiro.
Que me ouça sem interromper,
sem condenar nem defender,
que apenas me ouça o mais profundo.
E depois, sem nada cobrar,
seja terno, seja puro, só amigo,
bebendo comigo, sem dividir nem multiplicar,
a grande solidão de meus segredos.
O RISCO DAS PALAVRAS
(Para Moema de C. e Silva Olival)
Ah! a miséria da oficina das palavras!
Onde pescar a que melhor convém?
Maiakovski
Diante de você sempre emudeço.
Tenho as palavras batendo, ba-ten-do
ao peito mais que à garganta.
Mas é tão grande o risco das palavras
que, delas, finjo que me esqueço.
Ah, as palavras, se não houvesse o risco,
eu diria todas, tropeçando em pedras
como algumas cachoeiras, mas jorrando
sem parar a urgência de suas águas.
Mas as palavras acordam até mesmo
os deuses mais adormecidos
e é melhor não dizê-las, guardá-las
como pedras, mesmo ferindo o peito.
Se eu não as disse algum dia,
alguém lhe dirá sem medo do risco,
porque há os que abrem as comportas
e extravasem sem reservas suas águas.
Mas eu sou dessas barragens
que não se entregam nem extravasam,
mesmo com a maior das enchentes.
LIÇÃO
Embaixo, a rede.
Em cima, a lição
de um caramanchão.
Um trançado de cipós
camadas secas sobrepostas
nenhum sinal de vida
havida.
Sobre lianas mortas
outra explosão de verde
outra explosão em flor.
E um pássaro em concerto.
POEMA DA DOR SEM NOME
Essa mágoa
ói tão fundo
como se houvesse
perfurado o abismo
interior de meu mundo.
Dela, não serei vassala
só quero lançá-la
como um fio infinito
que se joga no abismo
até vomitar de vez
o início da ponta.
Depois, chegar
à íntima alegria
sem sentir a broca
perfurando a rocha
de meu poço artesiano.
À alegria de alcançar
as águas tranquilas
minhas mais profundas
reservas humanas.
E ouvir o íntimo silêncio
águas entre rochas calcárias
sem nenhuma pressa
águas que não estremecem
nem trincam
o espelho da alma.
ÍNVIO LADO
Tell all the truth but tell it slant -
Success in circuit lies.
Emily Dickinson
Há um lado da flor
que não penetramos:
talvez a reserva sitiada
onde guarda seu aroma.
Quase sempre esbarramos
em seus ferrões de defesa
e sangramos nossa dor
pela ponta dos espinhos.
E aí então paramos
e olhamos só por fora
a beleza que se entrega
com sua quota de reserva.
É do outro lado
(do mistério)
que não alcançamos
que a flor explode
em toda sua grandeza.
É lá que se contorceu
e guardou a sua história
e sangrou as suas gotas
e a solidão que (sobre)carrega.
Quem olha uma flor
ou um ser desabrochado
vê um prisma (feio ou lindo)
jamais o seu lado
inviolado.
ESCAPE
A raça humana
não pode suportar muita realidade.
T.S. ELIOT
Conheço a distância
que vai entre o sonho
e a dura realidade.
E conheço a fórmula
de amortecer o susto
e a queda do último piso.
Olhar sem crer lá fora
esse vidro que corta
e fechar, atrás de si, a porta.
Plantar, como sempre faço,
essas flores no paredão do muro
para deslumbrarem os meus olhos.
E, nessa lente distorcida,
em que capto a beleza,
mesmo aquela que não existe,
ficar musgo sobre a rocha
— véu veludoso verde veludo —,
cobrindo essa faca que cega o corte.
OS PEIXES DE MEU RIO
Não, não é fácil escrever. É duro como
quebrar rochas.
Clarice Lispector
Eu me desnudo e me visto
neste duro ofício de entrega.
Se as vestes revelam o corpo,
há o pudor e a dissimulação
no trançado desse tecido
que é teia e tato antes de tudo.
Eu me desnudo e me visto.
e nem assim eu me preservo.
Sob o vestido há sempre a pele
que transpira e se revela;
há outra dimensão do signo
que corcoveia e se rebela.
Sob o tecido há sempre um corpo
que se amotina e se entrega.
POEMA
No reverso, a história de meus versos.
No avesso, a pura canção de gesso,
que se sustenta no azul da lenda,
no equilíbrio do fio que (entre)teço.
Na superfície, a frauta noturna
de sustenidos ais e bemóis.
Na superfície, a fraude fria
e a neblina sobre mil lençóis.
E no fundo d'água, nos peraus,
que moram os peixes de meu rio.
É no remanso que alguma iara
sempre se esquiva solitária.
De repente, o susto da cilada,
um anzol recurvo — aço e isca —
mas os meus peixes não se entregam,
apenas provam de leve, triscam.
PONTO FINAL
Se não há mais nada a fazer
é isto mesmo - em frente.
Não importa a direção
a que se ande (já disseram)
desde que seja para frente.
Se a última palavra
já foi pronunciada
não cabe vírgula
nem outros sinais de pontuação
a não ser o ponto final
A VERDADE DENTRO
Se não houvesse
esse pacto secreto
de silêncio de chumbo
ou essa oclusão completa
de um travo-de-ferro
na grota da garganta,
a verdade fluiria fluida
do flanco da montanha
ou do poço da garganta.
Mas esse silêncio
foi fabricado, dentro,
não por mim ou você,
mas por oceanos de mãos,
segurando bridas e freios,
esmagando goelas e anseios,
desde a mais remota manhã
em que o potro selvagem
ensaiou sua disparada na planície.
Fonte:
Antonio Miranda
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