segunda-feira, 13 de maio de 2013

Amadeu Amaral (Memorial de Um Passageiro de Bonde) 31. Um Fio de Cabelo

Aquela moça espigada que entrou no bonde com o ímpeto ágil de um gafanhoto e ficou sentada ao meu lado, nunca imaginaria que fosse causa possível de uma pequena tragédia.

Entrou, sentou-se, tão isenta, como diria o Camões, tão longe de mim que sentia a irradiação das suas calorias! Viçosa, inocente e jocunda como um cacho de flores de resedá arrancado ao galho pela manhã, tinha a afilada silhueta de uma girl esportiva e a despachada simplicidade de um rapaz. Tirou a espécie de boina que trazia na cabeça, agitou o nevoeiro de fogo do cabelo, ajeitou-o com as mãos, de leve, como se lhas queimasse, e minutos depois, repondo o gorro, partia, num outro salto de gafanhotinho brincalhão.

Jeunesse de visage et jeunesse de coeur!

Quando cheguei a casa, tinha no ombro um fio de cabelo, um fio de chama. Descobriu-o a criada, com um sorriso ingênuo e perverso. Pegou nele, de intrometida, examinou-o à luz da janela, e ia deixá-lo cair quando eu, não me podendo conter, exclamei: "Deus a faça careca, Manuela!" Manuela olhou-me com cara de surpresa e desapontamento, como a pedir explicação. Não lha dei, limitando-me a assoviar uns compassos da Marcha de Cádis, para não lhe deixar a impressão de estar zangado, e retirei-me para o meu quarto.

Na verdade, estava zangado. Aquele ato da pobre mulher apertara a mola ao mecanismo das minhas melancolias. Pus-me a considerar os frutos de suspicácia, de bisbilhotice e de malignidade que a moral produz nas almas simples; e de reflexão em reflexão achei-me de repente imerso, mal sustendo a cabeça de fora, na imensurável e irremediável miséria da bicharia humana.

E aí está como aquela menina, inocente como o é a Lua, dos raios que deixa cair, não esteve longe de ser causa de um desaguisado doméstico. Ao mesmo tempo que alisava o cabelo, num movimento de mãos e numa dança de dedos leve e aérea como um gorjeio, poderia estar agitando a corrente de dois destinos ignorados e preparando uma pororoca longínqua.

Ai! por muito pobre que seja a imaginação dos malfazejos, os distúrbios que ela consegue promover são pequena coisa diante do mal que todos fazemos uns aos outros pelo simples fato de existir.

Não há pior acidente do que ocupar um lugar no espaço. Um simples fio de cabelo caindo de uma cabeça pode ser para alguém como o raio destruidor partindo do punho de Arimã. Vivemos assim uma eterna e terrível mitologia. Participamos da natureza dos deuses, ao menos para o mal. Só para o mal. A vida é a angústia do terror difuso e permanente.

Fonte:
Domínio Público

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