- Faltam cinco para as cinco - disse o Sr. Malderton consultando o relógio. - Espero que ele não nos desiluda.
- Ei-lo! - exclamou a Senhorita Teresa ao ouvir duas fortes pancadas à porta.
Todos procuraram assumir o ar de quem nem suspeitava a chegada de quem quer que fosse, como costumam fazer as pessoas que esperam ansiosas uma visita.
A porta da sala abriu-se.
- O Sr. Barton - anunciou a criada.
- Raios o partam! - murmurou Malderton - Ah, meu querido, como vai você? Que há de novo?
- De novo mesmo - retrucou o comerciante na sua habitual maneira rude - não há nada. Nada que eu saiba. Como vamos, meninas e rapazes? Sr. Flamwell, prazer em vê-lo!
- Eis o Sr. Sparkins - disse Tom, que estava olhando pela janela - num formidável cavalo preto!
Lá vinha Horácio, bem seguro, montando um grande cavalo preto que curveteava e cabriolava como um surpanumerário de bufar, de empinar-se, de escoicear, o animal consentiu parar a umas cem jardas da porta. O Sr. Sparkins apeou-se e o confiou aos cuidados do cavalariço do Sr. Malderton. A cerimônia de introdução realizou-se com as devidas formalidades. O Sr. Flamwell fitou Horácio por trás de seus óculos verdes com ar misterioso e importante ao mesmo tempo, e o galante Horácio olhou para Teresa com uma expressão indizível.
- É o nobre Sr. Augustus como-se-chama-mesmo? - perguntou baixinho o Sr. Malderton a Flamwell, que o escoltava para a sala de jantar.
- Bem, não é ele... pelo menos não precisamente - volveu a grande autoridade - , não precisamente.
- Quem é, então?
- Psiu! - disse Flamwell abanando a cabeça com gravidade como para mostrar que o sabia bem, mas se achava impedido por alguma grave razão de revelar o notável segredo.
Podia ser um ministro que procurava inteirar-se das opiniões do povo.
- Sr. Sparkins - disse a encantadora Sra. Malderton - queira dividir as senhoras. João, ponha uma cadeira para o cavalheiro entre as senhoritas.
Estas palavras foram dirigidas a um homem que, em condições normais, acumulava as funções de criado e jardineiro mas, como era necessário impressionar o Sr. Sparkins, fora forçado a calçar sapatos e pôr um lenço branco no pescoço, e havia sido retocado e escovado até assemelhar-se a um segundo lacaio.
O jantar era excelente. Horácio dava a maior atenção à Senhorita Teresa e todos estavam de bom humor, exceto o Sr. Malderton, o qual, conhecendo as propensões de seu cunhado, sofreu a espécie de agonia que, segundo as informações dos jornais, experimenta a vizinhança quando um servente de taverna se enforca num depósito de feno, agonia "mais fácil de ser imaginada que descrita".
- Flamwell, tem visto ultimamente o seu amigo sir Thomas Noland? - perguntou o Sr. Malderton, lançando a Horácio um olhar oblíquo para ver o efeito que sobre ele exercia o nome de tamanho homem.
- Bem, não muito... quer dizer, não ultimamente. Mas vi Lorde Gubbleton há três dias.
- Ah espero que S. Exa. esteja passando bem - disse Malderton num tom de profundo interesse.
Desnecessário declarar que, até aquele momento, ignorava de todo a existência da personalidade em apreço.
- bem, estava passando bem... muito bem até. É um ótimo camarada. Encontrei-o na City, e tivemos uma longa prosa. Damo-nos muito. Mas não pude conversar com ele todo o tempo que queria, porque ele ia à casa de um banqueiro, um homem rico e membro do Parlamento, com o qual também me dou bastante... poderia até dizer - intimamente.
- Sei a quem você está se referindo - retrucou o hospedeiro, que o sabia tão pouco, na realidade, quanto o próprio Flamwell. - Ele tem um negócio formidável.
Era tocar em assunto perigoso.
- Por falar em negócios - interveio o Sr. Barton, do centro da mesa - um cavalheiro que você conhecia muito bem, Malderton, antes de você ter dado aquele primeiro golpe feliz, passou outro dia na nossa loja e...
- Barton, permite-me que lhe peça uma batata? - interrompeu o infeliz dono da casa, na esperança de cortar a história pela raiz.
- Pois não! - respondeu o comerciante, insensível de todo ao objetivo de seu cunhado - E ele me disse sem rodeios...
- Mais farinhenta, por favor, - interrompeu Malderton outra vez, temendo o fim da anedota e a repetição da palavra loja.
- Ele me disse assim - continuou o culpado depois de passar a batata: - "Como vão os negócios?" Entoa eu lhe disse brincando - você conhece a minha maneira - , sim, eu lhe disse: "Eu nunca estou acima dos meus negócios, e espero que eles também nunca estejam acima de mim" Ah! Ah!
- Sr. Sparkins - disse o dono da casa, debalde procurando disfarçar a sua consternação - um copo de vinho?
- Com o maior prazer, meu senhor.
- O prazer é todo meu.
- Obrigado.
- Uma dessas noites - resumiu o hospedeiro dirigindo-se a Horácio, em parte com a intenção de ostentar os dotes de conversador de seu novo conhecido, em parte com a esperança de abafar as histórias do cunhado - uma destas noites conversamos sobre a natureza do homem. Sua argumentação me impressionou muito fortemente.
- E a mim também - disse o Sr. Frederico.
Horácio inclinou a cabeça graciosamente.
- Por favor, Sr. Sparkins, qual a sua opinião a respeito da mulher? - indagou a Sra. Malderton.
As moças sorriam tolamente.
- O homem - respondeu Horácio - , o homem, quer quando erra nos campos luminosos, alegres e floridos de um segundo Éden, quer quando percorre as regiões estéreis, áridas e, por assim dizer, vulgares a que somos forçados a nos habituar em tempos como estes; o homem, em qualquer circunstância ou em qualquer lugar, vergado sob as mortíferas rajadas da zona frígida ou comburido pelos raios de um sol vertical - , o homem sem a mulher, estaria sozinho.
- Estou muito contente de verificar que o senhor tem opiniões tão respeitáveis - declarou a Sra. Malderton.
- Eu também - acrescentou a Senhorita Teresa.
Horácio fitou-a com olhar encantado, e a jovem corou.
- Pois bem, na minha opinião... - disse o Sr. Barton.
- Eu sei o que é que você quer dizer - interveio Malderton, determinado a não dar oportunidade a seu parente - e discordo de você.
- Como? - perguntou o comerciante, espantado.
- Sinto não estar de acordo com você, Barton - lançou o hospedeiro de modo tão positivo como quem deveras contradiz uma asserção feita por seu interlocutor - mas não posso aprovar o que eu considero uma afirmação monstruosa.
- Mas eu queria dizer...
- Você nunca poderá me convencer - afirmou o Sr. Malderton com obstinada determinação - Nunca.
- Pois eu - disse o Sr. Frederico, a auxiliar o ataque de seu pai - não posso subscrever integralmente a argumentação do Sr. Sparkins.
- Como! - exclamou Horácio, que se tornara mais metafísico e argumentador ao ver a parte feminina da família ouvi-lo com enlevada atenção. - Como! É o efeito conseqüência da causa? É a causa precursora do efeito?
- Aí está - disse Flamwell.
- Sem dúvida - concordou o Sr. Malderton.
- Porque se o efeito é a conseqüência da causa e se a causa precede o efeito, parece que o senhor se engana - prosseguiu Horácio.
- Sem sombra de dúvida - acudiu o sicofanta Flamwell.
- Pelo menos esta dedução me parece lógica e justa.
- Sem dúvida alguma - repercutiu Flamwell - Com isso a questão está liquidada.
- Talvez esteja - disse o Sr. Frederico. - Não o percebi logo.
- Eu nem agora o percebo - opinou o comerciante - , mas suponho que tudo esteja certo.
- Que inteligência maravilhosa! - segredou a Sra. Malderton às filhas quando se retiraram para o salão.
- É um amor! - disseram juntas as duas moças. - fala como um oráculo. Ele deve ter visto coisas.
Ficando a sós os cavalheiros, produziu-se uma pausa, durante a qual todos olharam com suma gravidade, como se exaustos com a profundidade da discussão. Flamwell, que resolvera elucidar quem era e o que era o Sr. Horácio Sparkins, foi o primeiro a quebrar o silêncio.
- Desculpe-me, senhor - disse aquela distinta personalidade - suponho que estudou para advogado, não? Eu mesmo já tive o desejo de adotar essa profissão... pois estou em relações bastante íntimas com algumas das glórias do nosso foro.
- N... não... - respondeu Horácio depois de hesitar um pouco. - Precisamente, não.
- Mas, ou muito me engano, ou o senhor tem tido contato com as becas de seda, - disse Flamwell com deferência.
- Quase toda a minha vida - replicou Sparkins.
Assim, a questão estava resolvida no espírito do Sr. Flamwell. Tratava-se de um moço que entraria a advogar dentro em pouco.
- Eu não gostaria de ser advogado - disse Tom, falando pela primeira vez e olhando para todos a ver se alguém lhe prestava atenção.
Ninguém respondeu.
- Não gostaria de usar cabeleira postiça - insistiu o rapaz.
- Tom, peço que não se torne ridículo, - observou-lhe o pai. - Peço-lhe que preste atenção ao que está ouvindo, para aproveitá-lo, sem fazer a cada momento essas declarações absurdas.
- Está certo, papai, - respondeu o infeliz Tom, que não pronunciara nem uma palavra sequer depois que pedira outro bife, às cinco e um quarto; agora já eram oito.
- Bem, Tom - disse o tio bondoso - , não se aflija. Eu estou de acordo com você. Não gostaria de usar cabeleira postiça; prefiro um avental.
O Sr. Malderton tossiu com violência. O Sr. Barton quis concluir:
- Pois se um homem está acima dos seus negócios...
A tosse voltou com decuplicada violência, e não cessou antes que o seu infeliz motivo, de tão alarmado, houvesse de todo esquecido o que pretendia dizer.
- Sr. Sparkins - interrogou Flamwell, voltando a carga - conheceu por acaso o Sr. Delafontaine, de Bedford Square?
- Trocamos os nossos cartões, e desde então já tive a oportunidade de servi-lo bastante, - replicou Horácio, corando um pouco, sem dúvida por haver sido forçado a fazer essa confissão.
- O senhor pode considerar-se feliz por haver tido ocasião de ser útil a esse grande homem - observou Flamwell com profundo respeito.
Depois, murmurou confidencialmente ao Sr. Malderton, quando acompanhavam Horácio ao salão:
- Não sei quem é. Mas é certo que ele pertence à justiça e que é alguém de grande importância, com relações das mais altas.
- Não há dúvida.
O resto da noite decorreu de modo mais agradável. Aliviado de suas apreensões por haver o Sr. Barton caído em sono profundo, o Sr. Malderton ficou tão amável e gentil quanto possível.
A Senhorita Teresa tocou A queda de Paris de maneira magistral, conforme declarou o Sr. Sparkins, e ambos, assistidos pelo Sr. Frederico, ensaiaram um sem número de canções e trios do começo ao fim, chegando à agradável evidência de que suas vozes se harmonizavam à perfeição. Por via das dúvidas, cantaram todos a primeira parte. Horácio, além da leve desvantagem de não ter ouvido, estava na mais perfeita ignorância de qualquer nota musical. Contudo, passaram o tempo deliciosamente. Era mais de meia-noite quando o Sr. Sparkins pediu que lhe trouxessem o seu corcel com ar de cavalo de coche fúnebre, pedido esse que só foi satisfeito com a condição expressa de que ele repetiria a visita no domingo seguinte.
Quem sabe se o Sr. Sparkins não deseja fazer parte do nosso grupo amanhã de noite? - sugeriu a Sra. Malderton - O Sr. Malderton quer levar as meninas a verem o pantomimo.
O Sr. Sparkins inclinou-se e prometeu ir ter com elas no decorrer da noite, no camarote 48.
- Não o requisitamos para a parte da manhã - disse a Senhorita Teresa num tom fascinante - porque mamãe nos leva a uma porção de lojas a fazer comprar. Sei que os cavalheiros têm horror a essa espécie de passatempo.
O Sr. Sparkins inclinou-se outra vez e declarou que ficaria encantado, mas negócios de grande monta ocupavam-no durante a manhã. Flamwell olhou significativamente para o Sr. Malderton.
- É dia de vencimento - sussurrou.
No dia seguinte a carruagem encontrava-se às doze horas na porta de Oak Lodge a fim de levar a Sra. Malderton e as filhas para a sua expedição. Deviam elas jantar e vestir-se para o espetáculo na casa de um amigo. Primeiro, carregadas de caixas de chapéus, tinham de fazer uma excursão à loja dos Srs. Jones, Spruggins & Smith, em Tottenham Court Road; depois, outra, à Casa Redmayne, em Bond Street; depois outras, a inumeráveis lugares de que nunca ninguém tinha ouvido falar. As meninas procuravam diminuir o tédio da viagem elogiando o Sr. Horácio Sparkins, censurando a própria mãe por conduzi-las tão longe só para economizar um xelim, e perguntando se jamais chegariam a seu destino. Por fim o veículo parou em frente à loja de um fanqueiro, de aspecto sujo, com toda espécie de mercadoria e letreiros de todos os tamanhos na vitrina. Havia ali enormes setas com minúsculos "três quartos de pêni" ao lado, perfeitamente invisíveis a olho nu; "cinqüenta mil e trezentos estolas de senhoras, desde um xelim até um pêni e meio; sapatos franceses de legítima pele de cabrito, dois xelins e nove pence o par; sombrinhas verdes, a preço não menos módico; e toda espécie de mercadorias a cinqüenta por cento abaixo do custo", como diziam os donos, que o deviam saber melhor do que ninguém.
- Por Deus, mamãe, a que lugar a senhora nos trouxe! - exclamou a Senhorita Teresa. - Que diria o Sr. Sparkins se nos visse?
- Com efeito, que diria! - concordou a Senhorita Mariana, horrorizada com a idéia.
- Sentem-se, minhas senhoras. Qual é o primeiro artigo? - perguntou o obsequioso mestre de cerimônias do estabelecimento, o qual, com seu grande lenço branco no pescoço e sua gravata solene, parecia um mau "retrato de um cavalheiro" numa exposição de Somerset House.
- Gostaria de ver sedas - respondeu a Sra. Malderton.
- Pois não, minha senhora! Sr. Smith! Onde está o Sr. Smith?
- Estou aqui, senhor! - gritou uma voz do fundo da loja.
- Tenha a bondade de apressar-se, Sr. Smith, - disse o mestre-de-cerimônias. - O senhor nunca está onde a sua presença é necessária.
Convidado assim a desenvolver a maior rapidez possível, o Sr. Smith pulou o balcão com grande agilidade e plantou-se diante das freguesas. A Sra. Malderton deu um grito abafado. A Senhorita Teresa, que se tinha curvado para falar à irmã, levou a cabeça e viu - Horácio Sparkins!
"Encobriremos com um véu", como dizem os romancistas, a cena subseqüente. O misterioso, filosófico, romântico e metafísico Sparkins - aquele que, aos olhos da interessante Teresa, parecia encarnar o ideal dos jovens duques e dos tafuis poéticos que vestiam chambre de seda azul e chinelos idem idem, os quais ela conhecia dos livros e com os quais sonhava, mas que nunca esperava ver - transformara-se de repente no Sr. Samuel Smith, auxiliar de uma loja barata, o caixeiro mais moço de uma firma incerta, de três semanas de existência. O desaparecimento honroso do herói de Oak Lodge, em seguida a esse reconhecimento inesperado, não pôde senão ser comparado ao furtivo esgueirar-se de um cachorro com uma enorme chaleira presa ao rabo. Todas as esperanças dos Maldertons se derreteram de vez, como sorvetes de limão num banquete; Almacks era para eles mais distantes que o Pólo Norte.
- Ei-lo! - exclamou a Senhorita Teresa ao ouvir duas fortes pancadas à porta.
Todos procuraram assumir o ar de quem nem suspeitava a chegada de quem quer que fosse, como costumam fazer as pessoas que esperam ansiosas uma visita.
A porta da sala abriu-se.
- O Sr. Barton - anunciou a criada.
- Raios o partam! - murmurou Malderton - Ah, meu querido, como vai você? Que há de novo?
- De novo mesmo - retrucou o comerciante na sua habitual maneira rude - não há nada. Nada que eu saiba. Como vamos, meninas e rapazes? Sr. Flamwell, prazer em vê-lo!
- Eis o Sr. Sparkins - disse Tom, que estava olhando pela janela - num formidável cavalo preto!
Lá vinha Horácio, bem seguro, montando um grande cavalo preto que curveteava e cabriolava como um surpanumerário de bufar, de empinar-se, de escoicear, o animal consentiu parar a umas cem jardas da porta. O Sr. Sparkins apeou-se e o confiou aos cuidados do cavalariço do Sr. Malderton. A cerimônia de introdução realizou-se com as devidas formalidades. O Sr. Flamwell fitou Horácio por trás de seus óculos verdes com ar misterioso e importante ao mesmo tempo, e o galante Horácio olhou para Teresa com uma expressão indizível.
- É o nobre Sr. Augustus como-se-chama-mesmo? - perguntou baixinho o Sr. Malderton a Flamwell, que o escoltava para a sala de jantar.
- Bem, não é ele... pelo menos não precisamente - volveu a grande autoridade - , não precisamente.
- Quem é, então?
- Psiu! - disse Flamwell abanando a cabeça com gravidade como para mostrar que o sabia bem, mas se achava impedido por alguma grave razão de revelar o notável segredo.
Podia ser um ministro que procurava inteirar-se das opiniões do povo.
- Sr. Sparkins - disse a encantadora Sra. Malderton - queira dividir as senhoras. João, ponha uma cadeira para o cavalheiro entre as senhoritas.
Estas palavras foram dirigidas a um homem que, em condições normais, acumulava as funções de criado e jardineiro mas, como era necessário impressionar o Sr. Sparkins, fora forçado a calçar sapatos e pôr um lenço branco no pescoço, e havia sido retocado e escovado até assemelhar-se a um segundo lacaio.
O jantar era excelente. Horácio dava a maior atenção à Senhorita Teresa e todos estavam de bom humor, exceto o Sr. Malderton, o qual, conhecendo as propensões de seu cunhado, sofreu a espécie de agonia que, segundo as informações dos jornais, experimenta a vizinhança quando um servente de taverna se enforca num depósito de feno, agonia "mais fácil de ser imaginada que descrita".
- Flamwell, tem visto ultimamente o seu amigo sir Thomas Noland? - perguntou o Sr. Malderton, lançando a Horácio um olhar oblíquo para ver o efeito que sobre ele exercia o nome de tamanho homem.
- Bem, não muito... quer dizer, não ultimamente. Mas vi Lorde Gubbleton há três dias.
- Ah espero que S. Exa. esteja passando bem - disse Malderton num tom de profundo interesse.
Desnecessário declarar que, até aquele momento, ignorava de todo a existência da personalidade em apreço.
- bem, estava passando bem... muito bem até. É um ótimo camarada. Encontrei-o na City, e tivemos uma longa prosa. Damo-nos muito. Mas não pude conversar com ele todo o tempo que queria, porque ele ia à casa de um banqueiro, um homem rico e membro do Parlamento, com o qual também me dou bastante... poderia até dizer - intimamente.
- Sei a quem você está se referindo - retrucou o hospedeiro, que o sabia tão pouco, na realidade, quanto o próprio Flamwell. - Ele tem um negócio formidável.
Era tocar em assunto perigoso.
- Por falar em negócios - interveio o Sr. Barton, do centro da mesa - um cavalheiro que você conhecia muito bem, Malderton, antes de você ter dado aquele primeiro golpe feliz, passou outro dia na nossa loja e...
- Barton, permite-me que lhe peça uma batata? - interrompeu o infeliz dono da casa, na esperança de cortar a história pela raiz.
- Pois não! - respondeu o comerciante, insensível de todo ao objetivo de seu cunhado - E ele me disse sem rodeios...
- Mais farinhenta, por favor, - interrompeu Malderton outra vez, temendo o fim da anedota e a repetição da palavra loja.
- Ele me disse assim - continuou o culpado depois de passar a batata: - "Como vão os negócios?" Entoa eu lhe disse brincando - você conhece a minha maneira - , sim, eu lhe disse: "Eu nunca estou acima dos meus negócios, e espero que eles também nunca estejam acima de mim" Ah! Ah!
- Sr. Sparkins - disse o dono da casa, debalde procurando disfarçar a sua consternação - um copo de vinho?
- Com o maior prazer, meu senhor.
- O prazer é todo meu.
- Obrigado.
- Uma dessas noites - resumiu o hospedeiro dirigindo-se a Horácio, em parte com a intenção de ostentar os dotes de conversador de seu novo conhecido, em parte com a esperança de abafar as histórias do cunhado - uma destas noites conversamos sobre a natureza do homem. Sua argumentação me impressionou muito fortemente.
- E a mim também - disse o Sr. Frederico.
Horácio inclinou a cabeça graciosamente.
- Por favor, Sr. Sparkins, qual a sua opinião a respeito da mulher? - indagou a Sra. Malderton.
As moças sorriam tolamente.
- O homem - respondeu Horácio - , o homem, quer quando erra nos campos luminosos, alegres e floridos de um segundo Éden, quer quando percorre as regiões estéreis, áridas e, por assim dizer, vulgares a que somos forçados a nos habituar em tempos como estes; o homem, em qualquer circunstância ou em qualquer lugar, vergado sob as mortíferas rajadas da zona frígida ou comburido pelos raios de um sol vertical - , o homem sem a mulher, estaria sozinho.
- Estou muito contente de verificar que o senhor tem opiniões tão respeitáveis - declarou a Sra. Malderton.
- Eu também - acrescentou a Senhorita Teresa.
Horácio fitou-a com olhar encantado, e a jovem corou.
- Pois bem, na minha opinião... - disse o Sr. Barton.
- Eu sei o que é que você quer dizer - interveio Malderton, determinado a não dar oportunidade a seu parente - e discordo de você.
- Como? - perguntou o comerciante, espantado.
- Sinto não estar de acordo com você, Barton - lançou o hospedeiro de modo tão positivo como quem deveras contradiz uma asserção feita por seu interlocutor - mas não posso aprovar o que eu considero uma afirmação monstruosa.
- Mas eu queria dizer...
- Você nunca poderá me convencer - afirmou o Sr. Malderton com obstinada determinação - Nunca.
- Pois eu - disse o Sr. Frederico, a auxiliar o ataque de seu pai - não posso subscrever integralmente a argumentação do Sr. Sparkins.
- Como! - exclamou Horácio, que se tornara mais metafísico e argumentador ao ver a parte feminina da família ouvi-lo com enlevada atenção. - Como! É o efeito conseqüência da causa? É a causa precursora do efeito?
- Aí está - disse Flamwell.
- Sem dúvida - concordou o Sr. Malderton.
- Porque se o efeito é a conseqüência da causa e se a causa precede o efeito, parece que o senhor se engana - prosseguiu Horácio.
- Sem sombra de dúvida - acudiu o sicofanta Flamwell.
- Pelo menos esta dedução me parece lógica e justa.
- Sem dúvida alguma - repercutiu Flamwell - Com isso a questão está liquidada.
- Talvez esteja - disse o Sr. Frederico. - Não o percebi logo.
- Eu nem agora o percebo - opinou o comerciante - , mas suponho que tudo esteja certo.
- Que inteligência maravilhosa! - segredou a Sra. Malderton às filhas quando se retiraram para o salão.
- É um amor! - disseram juntas as duas moças. - fala como um oráculo. Ele deve ter visto coisas.
Ficando a sós os cavalheiros, produziu-se uma pausa, durante a qual todos olharam com suma gravidade, como se exaustos com a profundidade da discussão. Flamwell, que resolvera elucidar quem era e o que era o Sr. Horácio Sparkins, foi o primeiro a quebrar o silêncio.
- Desculpe-me, senhor - disse aquela distinta personalidade - suponho que estudou para advogado, não? Eu mesmo já tive o desejo de adotar essa profissão... pois estou em relações bastante íntimas com algumas das glórias do nosso foro.
- N... não... - respondeu Horácio depois de hesitar um pouco. - Precisamente, não.
- Mas, ou muito me engano, ou o senhor tem tido contato com as becas de seda, - disse Flamwell com deferência.
- Quase toda a minha vida - replicou Sparkins.
Assim, a questão estava resolvida no espírito do Sr. Flamwell. Tratava-se de um moço que entraria a advogar dentro em pouco.
- Eu não gostaria de ser advogado - disse Tom, falando pela primeira vez e olhando para todos a ver se alguém lhe prestava atenção.
Ninguém respondeu.
- Não gostaria de usar cabeleira postiça - insistiu o rapaz.
- Tom, peço que não se torne ridículo, - observou-lhe o pai. - Peço-lhe que preste atenção ao que está ouvindo, para aproveitá-lo, sem fazer a cada momento essas declarações absurdas.
- Está certo, papai, - respondeu o infeliz Tom, que não pronunciara nem uma palavra sequer depois que pedira outro bife, às cinco e um quarto; agora já eram oito.
- Bem, Tom - disse o tio bondoso - , não se aflija. Eu estou de acordo com você. Não gostaria de usar cabeleira postiça; prefiro um avental.
O Sr. Malderton tossiu com violência. O Sr. Barton quis concluir:
- Pois se um homem está acima dos seus negócios...
A tosse voltou com decuplicada violência, e não cessou antes que o seu infeliz motivo, de tão alarmado, houvesse de todo esquecido o que pretendia dizer.
- Sr. Sparkins - interrogou Flamwell, voltando a carga - conheceu por acaso o Sr. Delafontaine, de Bedford Square?
- Trocamos os nossos cartões, e desde então já tive a oportunidade de servi-lo bastante, - replicou Horácio, corando um pouco, sem dúvida por haver sido forçado a fazer essa confissão.
- O senhor pode considerar-se feliz por haver tido ocasião de ser útil a esse grande homem - observou Flamwell com profundo respeito.
Depois, murmurou confidencialmente ao Sr. Malderton, quando acompanhavam Horácio ao salão:
- Não sei quem é. Mas é certo que ele pertence à justiça e que é alguém de grande importância, com relações das mais altas.
- Não há dúvida.
O resto da noite decorreu de modo mais agradável. Aliviado de suas apreensões por haver o Sr. Barton caído em sono profundo, o Sr. Malderton ficou tão amável e gentil quanto possível.
A Senhorita Teresa tocou A queda de Paris de maneira magistral, conforme declarou o Sr. Sparkins, e ambos, assistidos pelo Sr. Frederico, ensaiaram um sem número de canções e trios do começo ao fim, chegando à agradável evidência de que suas vozes se harmonizavam à perfeição. Por via das dúvidas, cantaram todos a primeira parte. Horácio, além da leve desvantagem de não ter ouvido, estava na mais perfeita ignorância de qualquer nota musical. Contudo, passaram o tempo deliciosamente. Era mais de meia-noite quando o Sr. Sparkins pediu que lhe trouxessem o seu corcel com ar de cavalo de coche fúnebre, pedido esse que só foi satisfeito com a condição expressa de que ele repetiria a visita no domingo seguinte.
Quem sabe se o Sr. Sparkins não deseja fazer parte do nosso grupo amanhã de noite? - sugeriu a Sra. Malderton - O Sr. Malderton quer levar as meninas a verem o pantomimo.
O Sr. Sparkins inclinou-se e prometeu ir ter com elas no decorrer da noite, no camarote 48.
- Não o requisitamos para a parte da manhã - disse a Senhorita Teresa num tom fascinante - porque mamãe nos leva a uma porção de lojas a fazer comprar. Sei que os cavalheiros têm horror a essa espécie de passatempo.
O Sr. Sparkins inclinou-se outra vez e declarou que ficaria encantado, mas negócios de grande monta ocupavam-no durante a manhã. Flamwell olhou significativamente para o Sr. Malderton.
- É dia de vencimento - sussurrou.
No dia seguinte a carruagem encontrava-se às doze horas na porta de Oak Lodge a fim de levar a Sra. Malderton e as filhas para a sua expedição. Deviam elas jantar e vestir-se para o espetáculo na casa de um amigo. Primeiro, carregadas de caixas de chapéus, tinham de fazer uma excursão à loja dos Srs. Jones, Spruggins & Smith, em Tottenham Court Road; depois, outra, à Casa Redmayne, em Bond Street; depois outras, a inumeráveis lugares de que nunca ninguém tinha ouvido falar. As meninas procuravam diminuir o tédio da viagem elogiando o Sr. Horácio Sparkins, censurando a própria mãe por conduzi-las tão longe só para economizar um xelim, e perguntando se jamais chegariam a seu destino. Por fim o veículo parou em frente à loja de um fanqueiro, de aspecto sujo, com toda espécie de mercadoria e letreiros de todos os tamanhos na vitrina. Havia ali enormes setas com minúsculos "três quartos de pêni" ao lado, perfeitamente invisíveis a olho nu; "cinqüenta mil e trezentos estolas de senhoras, desde um xelim até um pêni e meio; sapatos franceses de legítima pele de cabrito, dois xelins e nove pence o par; sombrinhas verdes, a preço não menos módico; e toda espécie de mercadorias a cinqüenta por cento abaixo do custo", como diziam os donos, que o deviam saber melhor do que ninguém.
- Por Deus, mamãe, a que lugar a senhora nos trouxe! - exclamou a Senhorita Teresa. - Que diria o Sr. Sparkins se nos visse?
- Com efeito, que diria! - concordou a Senhorita Mariana, horrorizada com a idéia.
- Sentem-se, minhas senhoras. Qual é o primeiro artigo? - perguntou o obsequioso mestre de cerimônias do estabelecimento, o qual, com seu grande lenço branco no pescoço e sua gravata solene, parecia um mau "retrato de um cavalheiro" numa exposição de Somerset House.
- Gostaria de ver sedas - respondeu a Sra. Malderton.
- Pois não, minha senhora! Sr. Smith! Onde está o Sr. Smith?
- Estou aqui, senhor! - gritou uma voz do fundo da loja.
- Tenha a bondade de apressar-se, Sr. Smith, - disse o mestre-de-cerimônias. - O senhor nunca está onde a sua presença é necessária.
Convidado assim a desenvolver a maior rapidez possível, o Sr. Smith pulou o balcão com grande agilidade e plantou-se diante das freguesas. A Sra. Malderton deu um grito abafado. A Senhorita Teresa, que se tinha curvado para falar à irmã, levou a cabeça e viu - Horácio Sparkins!
"Encobriremos com um véu", como dizem os romancistas, a cena subseqüente. O misterioso, filosófico, romântico e metafísico Sparkins - aquele que, aos olhos da interessante Teresa, parecia encarnar o ideal dos jovens duques e dos tafuis poéticos que vestiam chambre de seda azul e chinelos idem idem, os quais ela conhecia dos livros e com os quais sonhava, mas que nunca esperava ver - transformara-se de repente no Sr. Samuel Smith, auxiliar de uma loja barata, o caixeiro mais moço de uma firma incerta, de três semanas de existência. O desaparecimento honroso do herói de Oak Lodge, em seguida a esse reconhecimento inesperado, não pôde senão ser comparado ao furtivo esgueirar-se de um cachorro com uma enorme chaleira presa ao rabo. Todas as esperanças dos Maldertons se derreteram de vez, como sorvetes de limão num banquete; Almacks era para eles mais distantes que o Pólo Norte.
FIM
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