segunda-feira, 13 de maio de 2013

Charles Dickens (Horácio Sparkins) Parte II, final

- Faltam cinco para as cinco - disse o Sr. Malderton consultando o relógio. - Espero que ele não nos desiluda.

 - Ei-lo! - exclamou a Senhorita Teresa ao ouvir duas fortes pancadas à porta.

 Todos procuraram assumir o ar de quem nem suspeitava a chegada de quem quer que fosse, como costumam fazer as pessoas que esperam ansiosas uma visita.

 A porta da sala abriu-se.

 - O Sr. Barton - anunciou a criada.

 - Raios o partam! - murmurou Malderton - Ah, meu querido, como vai você? Que há de novo?

 - De novo mesmo - retrucou o comerciante na sua habitual maneira rude - não há nada. Nada que eu saiba. Como vamos, meninas e rapazes? Sr. Flamwell, prazer em vê-lo!

 - Eis o Sr. Sparkins - disse Tom, que estava olhando pela janela - num formidável cavalo preto!

 Lá vinha Horácio, bem seguro, montando um grande cavalo preto que curveteava e cabriolava como um surpanumerário de bufar, de empinar-se, de escoicear, o animal consentiu parar a umas cem jardas da porta. O Sr. Sparkins apeou-se e o confiou aos cuidados do cavalariço do Sr. Malderton. A cerimônia de introdução realizou-se com as devidas formalidades. O Sr. Flamwell fitou Horácio por trás de seus óculos verdes com ar misterioso e importante ao mesmo tempo, e o galante Horácio olhou para Teresa com uma expressão indizível.

 - É o nobre Sr. Augustus como-se-chama-mesmo? - perguntou baixinho o Sr. Malderton a Flamwell, que o escoltava para a sala de jantar.

 - Bem, não é ele... pelo menos não precisamente - volveu a grande autoridade - , não precisamente.

 - Quem é, então?

 - Psiu! - disse Flamwell abanando a cabeça com gravidade como para mostrar que o sabia bem, mas se achava impedido por alguma grave razão de revelar o notável segredo.

 Podia ser um ministro que procurava inteirar-se das opiniões do povo.

 - Sr. Sparkins - disse a encantadora Sra. Malderton - queira dividir as senhoras. João, ponha uma cadeira para o cavalheiro entre as senhoritas.

 Estas palavras foram dirigidas a um homem que, em condições normais, acumulava as funções de criado e jardineiro mas, como era necessário impressionar o Sr. Sparkins, fora forçado a calçar sapatos e pôr um lenço branco no pescoço, e havia sido retocado e escovado até assemelhar-se a um segundo lacaio.

 O jantar era excelente. Horácio dava a maior atenção à Senhorita Teresa e todos estavam de bom humor, exceto o Sr. Malderton, o qual, conhecendo as propensões de seu cunhado, sofreu a espécie de agonia que, segundo as informações dos jornais, experimenta a vizinhança quando um servente de taverna se enforca num depósito de feno, agonia "mais fácil de ser imaginada que descrita".

 - Flamwell, tem visto ultimamente o seu amigo sir Thomas Noland? - perguntou o Sr. Malderton, lançando a Horácio um olhar oblíquo para ver o efeito que sobre ele exercia o nome de tamanho homem.

 - Bem, não muito... quer dizer, não ultimamente. Mas vi Lorde Gubbleton há três dias.

 - Ah espero que S. Exa. esteja passando bem - disse Malderton num tom de profundo interesse.

 Desnecessário declarar que, até aquele momento, ignorava de todo a existência da personalidade em apreço.

 - bem, estava passando bem... muito bem até. É um ótimo camarada. Encontrei-o na City, e tivemos uma longa prosa. Damo-nos muito. Mas não pude conversar com ele todo o tempo que queria, porque ele ia à casa de um banqueiro, um homem rico e membro do Parlamento, com o qual também me dou bastante... poderia até dizer - intimamente.

 - Sei a quem você está se referindo - retrucou o hospedeiro, que o sabia tão pouco, na realidade, quanto o próprio Flamwell. - Ele tem um negócio formidável.

 Era tocar em assunto perigoso.

 - Por falar em negócios - interveio o Sr. Barton, do centro da mesa - um cavalheiro que você conhecia muito bem, Malderton, antes de você ter dado aquele primeiro golpe feliz, passou outro dia na nossa loja e...

 - Barton, permite-me que lhe peça uma batata? - interrompeu o infeliz dono da casa, na esperança de cortar a história pela raiz.

 - Pois não! - respondeu o comerciante, insensível de todo ao objetivo de seu cunhado - E ele me disse sem rodeios...

 - Mais farinhenta, por favor, - interrompeu Malderton outra vez, temendo o fim da anedota e a repetição da palavra loja.

 - Ele me disse assim - continuou o culpado depois de passar a batata: - "Como vão os negócios?" Entoa eu lhe disse brincando - você conhece a minha maneira - , sim, eu lhe disse: "Eu nunca estou acima dos meus negócios, e espero que eles também nunca estejam acima de mim" Ah! Ah!

 - Sr. Sparkins - disse o dono da casa, debalde procurando disfarçar a sua consternação - um copo de vinho?

 - Com o maior prazer, meu senhor.

 - O prazer é todo meu.

 - Obrigado.

 - Uma dessas noites - resumiu o hospedeiro dirigindo-se a Horácio, em parte com a intenção de ostentar os dotes de conversador de seu novo conhecido, em parte com a esperança de abafar as histórias do cunhado - uma destas noites conversamos sobre a natureza do homem. Sua argumentação me impressionou muito fortemente.

 - E a mim também - disse o Sr. Frederico.

 Horácio inclinou a cabeça graciosamente.

 - Por favor, Sr. Sparkins, qual a sua opinião a respeito da mulher? - indagou a Sra. Malderton.

 As moças sorriam tolamente.

 - O homem - respondeu Horácio - , o homem, quer quando erra nos campos luminosos, alegres e floridos de um segundo Éden, quer quando percorre as regiões estéreis, áridas e, por assim dizer, vulgares a que somos forçados a nos habituar em tempos como estes; o homem, em qualquer circunstância ou em qualquer lugar, vergado sob as mortíferas rajadas da zona frígida ou comburido pelos raios de um sol vertical - , o homem sem a mulher, estaria sozinho.

 - Estou muito contente de verificar que o senhor tem opiniões tão respeitáveis - declarou a Sra. Malderton.

 - Eu também - acrescentou a Senhorita Teresa.

 Horácio fitou-a com olhar encantado, e a jovem corou.

 - Pois bem, na minha opinião... - disse o Sr. Barton.

 - Eu sei o que é que você quer dizer - interveio Malderton, determinado a não dar oportunidade a seu parente - e discordo de você.

 - Como? - perguntou o comerciante, espantado.

 - Sinto não estar de acordo com você, Barton - lançou o hospedeiro de modo tão positivo como quem deveras contradiz uma asserção feita por seu interlocutor - mas não posso aprovar o que eu considero uma afirmação monstruosa.

 - Mas eu queria dizer...

 - Você nunca poderá me convencer - afirmou o Sr. Malderton com obstinada determinação - Nunca.

 - Pois eu - disse o Sr. Frederico, a auxiliar o ataque de seu pai - não posso subscrever integralmente a argumentação do Sr. Sparkins.

 - Como! - exclamou Horácio, que se tornara mais metafísico e argumentador ao ver a parte feminina da família ouvi-lo com enlevada atenção. - Como! É o efeito conseqüência da causa? É a causa precursora do efeito?

 - Aí está - disse Flamwell.

 - Sem dúvida - concordou o Sr. Malderton.

 - Porque se o efeito é a conseqüência da causa e se a causa precede o efeito, parece que o senhor se engana - prosseguiu Horácio.

 - Sem sombra de dúvida - acudiu o sicofanta Flamwell.

 - Pelo menos esta dedução me parece lógica e justa.

 - Sem dúvida alguma - repercutiu Flamwell - Com isso a questão está liquidada.

 - Talvez esteja - disse o Sr. Frederico. - Não o percebi logo.

 - Eu nem agora o percebo - opinou o comerciante - , mas suponho que tudo esteja certo.

 - Que inteligência maravilhosa! - segredou a Sra. Malderton às filhas quando se retiraram para o salão.

 - É um amor! - disseram juntas as duas moças. - fala como um oráculo. Ele deve ter visto coisas.

 Ficando a sós os cavalheiros, produziu-se uma pausa, durante a qual todos olharam com suma gravidade, como se exaustos com a profundidade da discussão. Flamwell, que resolvera elucidar quem era e o que era o Sr. Horácio Sparkins, foi o primeiro a quebrar o silêncio.

 - Desculpe-me, senhor - disse aquela distinta personalidade - suponho que estudou para advogado, não? Eu mesmo já tive o desejo de adotar essa profissão... pois estou em relações bastante íntimas com algumas das glórias do nosso foro.

 - N... não... - respondeu Horácio depois de hesitar um pouco. - Precisamente, não.

 - Mas, ou muito me engano, ou o senhor tem tido contato com as becas de seda, - disse Flamwell com deferência.

 - Quase toda a minha vida - replicou Sparkins.

 Assim, a questão estava resolvida no espírito do Sr. Flamwell. Tratava-se de um moço que entraria a advogar dentro em pouco.

 - Eu não gostaria de ser advogado - disse Tom, falando pela primeira vez e olhando para todos a ver se alguém lhe prestava atenção.

 Ninguém respondeu.

 - Não gostaria de usar cabeleira postiça - insistiu o rapaz.

 - Tom, peço que não se torne ridículo, - observou-lhe o pai. - Peço-lhe que preste atenção ao que está ouvindo, para aproveitá-lo, sem fazer a cada momento essas declarações absurdas.

 - Está certo, papai, - respondeu o infeliz Tom, que não pronunciara nem uma palavra sequer depois que pedira outro bife, às cinco e um quarto; agora já eram oito.

 - Bem, Tom - disse o tio bondoso - , não se aflija. Eu estou de acordo com você. Não gostaria de usar cabeleira postiça; prefiro um avental.

 O Sr. Malderton tossiu com violência. O Sr. Barton quis concluir:

 - Pois se um homem está acima dos seus negócios...

 A tosse voltou com decuplicada violência, e não cessou antes que o seu infeliz motivo, de tão alarmado, houvesse de todo esquecido o que pretendia dizer.

 - Sr. Sparkins - interrogou Flamwell, voltando a carga - conheceu por acaso o Sr. Delafontaine, de Bedford Square?

 - Trocamos os nossos cartões, e desde então já tive a oportunidade de servi-lo bastante, - replicou Horácio, corando um pouco, sem dúvida por haver sido forçado a fazer essa confissão.

 - O senhor pode considerar-se feliz por haver tido ocasião de ser útil a esse grande homem - observou Flamwell com profundo respeito.

 Depois, murmurou confidencialmente ao Sr. Malderton, quando acompanhavam Horácio ao salão:

 - Não sei quem é. Mas é certo que ele pertence à justiça e que é alguém de grande importância, com relações das mais altas.

 - Não há dúvida.

 O resto da noite decorreu de modo mais agradável. Aliviado de suas apreensões por haver o Sr. Barton caído em sono profundo, o Sr. Malderton ficou tão amável e gentil quanto possível.

 A Senhorita Teresa tocou A queda de Paris de maneira magistral, conforme declarou o Sr. Sparkins, e ambos, assistidos pelo Sr. Frederico, ensaiaram um sem número de canções e trios do começo ao fim, chegando à agradável evidência de que suas vozes se harmonizavam à perfeição. Por via das dúvidas, cantaram todos a primeira parte. Horácio, além da leve desvantagem de não ter ouvido, estava na mais perfeita ignorância de qualquer nota musical. Contudo, passaram o tempo deliciosamente. Era mais de meia-noite quando o Sr. Sparkins pediu que lhe trouxessem o seu corcel com ar de cavalo de coche fúnebre, pedido esse que só foi satisfeito com a condição expressa de que ele repetiria a visita no domingo seguinte.

 Quem sabe se o Sr. Sparkins não deseja fazer parte do nosso grupo amanhã de noite? - sugeriu a Sra. Malderton - O Sr. Malderton quer levar as meninas a verem o pantomimo.

 O Sr. Sparkins inclinou-se e prometeu ir ter com elas no decorrer da noite, no camarote 48.

 - Não o requisitamos para a parte da manhã - disse a Senhorita Teresa num tom fascinante - porque mamãe nos leva a uma porção de lojas a fazer comprar. Sei que os cavalheiros têm horror a essa espécie de passatempo.

 O Sr. Sparkins inclinou-se outra vez e declarou que ficaria encantado, mas negócios de grande monta ocupavam-no durante a manhã. Flamwell olhou significativamente para o Sr. Malderton.

 - É dia de vencimento - sussurrou.

 No dia seguinte a carruagem encontrava-se às doze horas na porta de Oak Lodge a fim de levar a Sra. Malderton e as filhas para a sua expedição. Deviam elas jantar e vestir-se para o espetáculo na casa de um amigo. Primeiro, carregadas de caixas de chapéus, tinham de fazer uma excursão à loja dos Srs. Jones, Spruggins & Smith, em Tottenham Court Road; depois, outra, à Casa Redmayne, em Bond Street; depois outras, a inumeráveis lugares de que nunca ninguém tinha ouvido falar. As meninas procuravam diminuir o tédio da viagem elogiando o Sr. Horácio Sparkins, censurando a própria mãe por conduzi-las tão longe só para economizar um xelim, e perguntando se jamais chegariam a seu destino. Por fim o veículo parou em frente à loja de um fanqueiro, de aspecto sujo, com toda espécie de mercadoria e letreiros de todos os tamanhos na vitrina. Havia ali enormes setas com minúsculos "três quartos de pêni" ao lado, perfeitamente invisíveis a olho nu; "cinqüenta mil e trezentos estolas de senhoras, desde um xelim até um pêni e meio; sapatos franceses de legítima pele de cabrito, dois xelins e nove pence o par; sombrinhas verdes, a preço não menos módico; e toda espécie de mercadorias a cinqüenta por cento abaixo do custo", como diziam os donos, que o deviam saber melhor do que ninguém.

 - Por Deus, mamãe, a que lugar a senhora nos trouxe! - exclamou a Senhorita Teresa. - Que diria o Sr. Sparkins se nos visse?

 - Com efeito, que diria! - concordou a Senhorita Mariana, horrorizada com a idéia.

 - Sentem-se, minhas senhoras. Qual é o primeiro artigo? - perguntou o obsequioso mestre de cerimônias do estabelecimento, o qual, com seu grande lenço branco no pescoço e sua gravata solene, parecia um mau "retrato de um cavalheiro" numa exposição de Somerset House.

 - Gostaria de ver sedas - respondeu a Sra. Malderton.

 - Pois não, minha senhora! Sr. Smith! Onde está o Sr. Smith?

 - Estou aqui, senhor! - gritou uma voz do fundo da loja.

 - Tenha a bondade de apressar-se, Sr. Smith, - disse o mestre-de-cerimônias. - O senhor nunca está onde a sua presença é necessária.

 Convidado assim a desenvolver a maior rapidez possível, o Sr. Smith pulou o balcão com grande agilidade e plantou-se diante das freguesas. A Sra. Malderton deu um grito abafado. A Senhorita Teresa, que se tinha curvado para falar à irmã, levou a cabeça e viu - Horácio Sparkins!

 "Encobriremos com um véu", como dizem os romancistas, a cena subseqüente. O misterioso, filosófico, romântico e metafísico Sparkins - aquele que, aos olhos da interessante Teresa, parecia encarnar o ideal dos jovens duques e dos tafuis poéticos que vestiam chambre de seda azul e chinelos idem idem, os quais ela conhecia dos livros e com os quais sonhava, mas que nunca esperava ver - transformara-se de repente no Sr. Samuel Smith, auxiliar de uma loja barata, o caixeiro mais moço de uma firma incerta, de três semanas de existência. O desaparecimento honroso do herói de Oak Lodge, em seguida a esse reconhecimento inesperado, não pôde senão ser comparado ao furtivo esgueirar-se de um cachorro com uma enorme chaleira presa ao rabo. Todas as esperanças dos Maldertons se derreteram de vez, como sorvetes de limão num banquete; Almacks era para eles mais distantes que o Pólo Norte.
FIM

Nenhum comentário: