José Lins do Rego é um dos escritores mais importantes do chamado Neo-Realismo Regionalista Nordestino, que integra a segunda fase do Modernismo brasileiro, ao lado de nomes como Graciliano Ramos, na prosa, e Drummond, na poesia.
O romance modernista dos anos 30 recebeu muitas sugestões da sociologia de Gilberto Freire, um dos organizadores do Congresso Regionalista do Recife, que, em 1926, apresentou um amplo projeto de estudo e compreensão da sociedade local. O livro mais importante de Gilberto Freire é Casa Grande e Senzala (1933).
Fogo Morto (1943) é a obra-prima de José Lins do Rego. Como romance de feição realista, esse livro procura penetrar a superfície das coisas e revelar o processo de mudanças sociais por que passa o Nordeste brasileiro, num largo período que vai desde o Segundo Reinado, incluindo a Revolução Praieira e a Abolição, até as primeiras décadas do século XX.
O tema central de Fogo Morto é o desajuste das pessoas com a realidade resultante do declínio do escravismo nos engenhos nordestinos, nas primeiras décadas do século XX. O romance conta a história de um poderoso engenho, o Santa Fé, desde sua fundação até o declínio, quando se transforma em "fogo morto", expressão com que, no Nordeste, designam-se os engenhos inativos. Retomando o espírito de observação realista, o autor produz um minucioso levantamento da vida social e psicológica dos engenhos da Paraíba. Em virtude do apego ao cotidiano da região, Fogo Morto apresenta não apenas valor estético, mas também interesse documental.
Fogo Morto não se esgota na classificação de romance regionalista, embora essa seja uma noção correta. Há outros componentes importantes na obra, a partir dos quais se pode enquadrá-la numa tipologia consagrada. Talvez o mais ilustre antecedente de Fogo Morto na literatura brasileira seja O Cortiço (1890), de Aluísio Azevedo. Em que sentido? No sentido de tomar uma personagem coletiva como objeto de análise. Assim como Aluísio investiga o nascimento, vida e morte de um cortiço do Rio de Janeiro, José Lins penetra no surgimento, plenitude e declínio do Engenho Santa Fé, localizado na zona da mata da Paraíba. Com efeito, o engenho parece possuir vida própria, embora suas células sejam as pessoas que o formam. Como análise quer dizer decomposição, o autor decompõe as pessoas como forma de expor a constituição do todo. Por essa perspectiva, Fogo Morto tanto pode ser entendido como um romance social quanto psicológico. Em rigor, uma categoria não existe sem a outra. O livro é forte em ambas as dimensões.
Embora Fogo Morto apresente uma estória muito movimentada, não se trata de um romance de ação: pretende atrair pela problematização social e existencial, e não pela surpresa dos acontecimentos. O estilo da obra é modernista, pois baseia-se na linguagem cotidiana, revestindo-se de oralidade espontânea, isto é, o autor procura escrever como se fala. Resulta daí a impressão de vivacidade e dinamismo. Possui força dramática e senso do real. Poucas vezes um autor obteve tanto êxito na manipulação da frase curta e elementar, com palavras extraídas do uso diário. Seu ritmo sintático e narrativo é nervoso, quase frenético, imitando o vaivém das pessoas pelas estradas do engenho. Pertence ao Regionalismo Nordestino, porque aborda a paisagem específica dessa região, mas as questões abordadas transcendem os limites regionais, o que é comum nas obras bem realizadas.
Em Fogo Morto, o autor soube transformar em ficção a vida real dos engenhos nordestinos. Trata-se de uma sociedade decadente, marcada pelo ressentimento, pelo desajuste e pela revolta. Domina em tudo uma atmosfera de ruína social e depauperamento psicológico, embora persistam aqui e ali sinais de uma felicidade antiga, restrita aos habitantes da casa-grande. Sem pertencer propriamente ao famoso Ciclo da Cana-de-Açúcar, Fogo Morto é uma retomada mais densa da matéria dos romances que o compõem: Menino de Engenho (1932), Doidinho (1933), Bangüê (1934), e Usina (1936). Neste último romance, José Lins retrata a decadência dos engenhos por força do processo industrial das usinas, que suplantam a produção artesanal. Todavia, em Fogo Morto, ainda não há sinais de industrialização na produção de açúcar. Quanto a José Amaro, sim, sua decadência decorre em parte do processo de industrialização das selas, que já ocorre nos centros urbanos.
A fábula do livro não apresenta rigorosa unidade, isto é, não conta apenas uma estória, mas diversas, porque o propósito do romance é investigar e revelar o variado tecido social de um engenho típico da Paraíba. Assim, o livro divide-se em três partes: "O Mestre José Amaro", "O Engenho de Seu Lula" e "Capitão Vitorino Carneiro da Cunha".
Na primeira parte domina a figura do seleiro Zé Amaro, morador revoltado do Engenho Santa Fé, que enfrenta enorme problema de inadaptação com o mundo. Na verdade, está praticamente se despedindo da vida. Em aguda crise existencial, pressente a morte nos mínimos detalhes. Permanece sentado na tenda de trabalho em frente de casa, à beira da estrada, por onde passam os diversos moradores do engenho.
A segunda parte de Fogo Morto traça os antecedentes da situação de José Amaro, que é semelhante à de seu compadre Capitão Vitorino Carneiro da Cunha, cujo destino também se confunde com a vida do engenho. Nesta parte, há um longo flashback ou retrospectiva da formação do latifúndio, em que se evocam as lutas do fundador, Capitão Tomás Cabral, para o estabelecimento daquela unidade econômica.
A terceira parte concentra-se nas aventuras do Capitão Vitorino, cujas ações se pautam pelo desejo de justiça. Nesse particular, irmana-se a José Amaro. Mas é radicalmente contra a alternativa oferecida pelo cangaço. É também contra o governo, mas não admite a subversão da lei. Em rigor, é um aventureiro do sonho. Estabelece o elo entre ricos e pobres, fracos e fortes. Para ele, o homem mais valente do mundo é ele mesmo. Não obstante, empregava a valentia apenas no auxílio do próximo. Trata-se de uma paródia muito convincente de Dom Quixote. Por isso, sua figura resulta numa mescla de momentos sublimes com momentos ridículos. Apesar dos percalços, surras e prisões, é a única personagem gloriosa no romance.
Personagens que não sofrem alteração são consideradas sem profundidade psicológica. Por isso são chamadas planas, das quais os tipos são uma variação. José Passarinho é personagem plana, pois mantém sempre o mesmo estatuto, do princípio ao fim do romance. Por outro lado, trata-se de personagem secundária, cuja função é apoiar a existência das demais. Assim são o pintor Laurentino, o aguardenteiro Alípio, o negro Floripes e outros coadjuvantes.
Tipo é a personagem que se confunde com o estereótipo, no qual se condensam características genéricas de uma certa categoria de pessoas. Capitão Antônio Silvino é um tipo revestido de significação alegórica. Funciona como uma espécie de emblema, representando a força da subversão, o poder de uma justiça ilegal porém legítima. Tira dos ricos para dar aos pobres. O Tenente Maurício é semelhante ao cangaceiro, pois também representa uma instituição, a força legal do governo, manchada de mando ilegítimo.
As personagens que sofrem mudança substancial possuem mais densidade psicológica, sendo por isso chamadas de esféricas. As três personagens principais de Fogo Morto são esféricas, pois toda a trama do romance decorre das transformações de seu estado psicossocial. Quanto mais ambígua a personagem, mais rico o seu significado. Num certo sentido, essas três personagens podem ser consideradas loucas, embora em diferentes graus e com sintomas diversos.
A eficiência das situações e personagens de Fogo Morto decorre também do fato de o autor escrever em tom memorialístico, como se fizesse uma crônica sobre o que vivenciou em sua experiência com a realidade do povo da Paraíba, sua terra natal. Sendo um neo-realista, só poderia escrever sobre fatos observados empiricamente.
Fogo Morto é uma obra caracterizada pela captação da vida interior das personagens. Nela, a paisagem externa é importante, mas as vivências interiores recebem mais atenção do artista. Há muita ruminação psicológica no livro. Tal investigação do universo mental processa-se sobretudo através do discurso indireto livre, pelo qual se chega a densos monólogos interiores, que se confundem com o fluxo de consciência.
Fonte:
www.seruniversitario.com.br
O romance modernista dos anos 30 recebeu muitas sugestões da sociologia de Gilberto Freire, um dos organizadores do Congresso Regionalista do Recife, que, em 1926, apresentou um amplo projeto de estudo e compreensão da sociedade local. O livro mais importante de Gilberto Freire é Casa Grande e Senzala (1933).
Fogo Morto (1943) é a obra-prima de José Lins do Rego. Como romance de feição realista, esse livro procura penetrar a superfície das coisas e revelar o processo de mudanças sociais por que passa o Nordeste brasileiro, num largo período que vai desde o Segundo Reinado, incluindo a Revolução Praieira e a Abolição, até as primeiras décadas do século XX.
O tema central de Fogo Morto é o desajuste das pessoas com a realidade resultante do declínio do escravismo nos engenhos nordestinos, nas primeiras décadas do século XX. O romance conta a história de um poderoso engenho, o Santa Fé, desde sua fundação até o declínio, quando se transforma em "fogo morto", expressão com que, no Nordeste, designam-se os engenhos inativos. Retomando o espírito de observação realista, o autor produz um minucioso levantamento da vida social e psicológica dos engenhos da Paraíba. Em virtude do apego ao cotidiano da região, Fogo Morto apresenta não apenas valor estético, mas também interesse documental.
Fogo Morto não se esgota na classificação de romance regionalista, embora essa seja uma noção correta. Há outros componentes importantes na obra, a partir dos quais se pode enquadrá-la numa tipologia consagrada. Talvez o mais ilustre antecedente de Fogo Morto na literatura brasileira seja O Cortiço (1890), de Aluísio Azevedo. Em que sentido? No sentido de tomar uma personagem coletiva como objeto de análise. Assim como Aluísio investiga o nascimento, vida e morte de um cortiço do Rio de Janeiro, José Lins penetra no surgimento, plenitude e declínio do Engenho Santa Fé, localizado na zona da mata da Paraíba. Com efeito, o engenho parece possuir vida própria, embora suas células sejam as pessoas que o formam. Como análise quer dizer decomposição, o autor decompõe as pessoas como forma de expor a constituição do todo. Por essa perspectiva, Fogo Morto tanto pode ser entendido como um romance social quanto psicológico. Em rigor, uma categoria não existe sem a outra. O livro é forte em ambas as dimensões.
Embora Fogo Morto apresente uma estória muito movimentada, não se trata de um romance de ação: pretende atrair pela problematização social e existencial, e não pela surpresa dos acontecimentos. O estilo da obra é modernista, pois baseia-se na linguagem cotidiana, revestindo-se de oralidade espontânea, isto é, o autor procura escrever como se fala. Resulta daí a impressão de vivacidade e dinamismo. Possui força dramática e senso do real. Poucas vezes um autor obteve tanto êxito na manipulação da frase curta e elementar, com palavras extraídas do uso diário. Seu ritmo sintático e narrativo é nervoso, quase frenético, imitando o vaivém das pessoas pelas estradas do engenho. Pertence ao Regionalismo Nordestino, porque aborda a paisagem específica dessa região, mas as questões abordadas transcendem os limites regionais, o que é comum nas obras bem realizadas.
Em Fogo Morto, o autor soube transformar em ficção a vida real dos engenhos nordestinos. Trata-se de uma sociedade decadente, marcada pelo ressentimento, pelo desajuste e pela revolta. Domina em tudo uma atmosfera de ruína social e depauperamento psicológico, embora persistam aqui e ali sinais de uma felicidade antiga, restrita aos habitantes da casa-grande. Sem pertencer propriamente ao famoso Ciclo da Cana-de-Açúcar, Fogo Morto é uma retomada mais densa da matéria dos romances que o compõem: Menino de Engenho (1932), Doidinho (1933), Bangüê (1934), e Usina (1936). Neste último romance, José Lins retrata a decadência dos engenhos por força do processo industrial das usinas, que suplantam a produção artesanal. Todavia, em Fogo Morto, ainda não há sinais de industrialização na produção de açúcar. Quanto a José Amaro, sim, sua decadência decorre em parte do processo de industrialização das selas, que já ocorre nos centros urbanos.
A fábula do livro não apresenta rigorosa unidade, isto é, não conta apenas uma estória, mas diversas, porque o propósito do romance é investigar e revelar o variado tecido social de um engenho típico da Paraíba. Assim, o livro divide-se em três partes: "O Mestre José Amaro", "O Engenho de Seu Lula" e "Capitão Vitorino Carneiro da Cunha".
Na primeira parte domina a figura do seleiro Zé Amaro, morador revoltado do Engenho Santa Fé, que enfrenta enorme problema de inadaptação com o mundo. Na verdade, está praticamente se despedindo da vida. Em aguda crise existencial, pressente a morte nos mínimos detalhes. Permanece sentado na tenda de trabalho em frente de casa, à beira da estrada, por onde passam os diversos moradores do engenho.
A segunda parte de Fogo Morto traça os antecedentes da situação de José Amaro, que é semelhante à de seu compadre Capitão Vitorino Carneiro da Cunha, cujo destino também se confunde com a vida do engenho. Nesta parte, há um longo flashback ou retrospectiva da formação do latifúndio, em que se evocam as lutas do fundador, Capitão Tomás Cabral, para o estabelecimento daquela unidade econômica.
A terceira parte concentra-se nas aventuras do Capitão Vitorino, cujas ações se pautam pelo desejo de justiça. Nesse particular, irmana-se a José Amaro. Mas é radicalmente contra a alternativa oferecida pelo cangaço. É também contra o governo, mas não admite a subversão da lei. Em rigor, é um aventureiro do sonho. Estabelece o elo entre ricos e pobres, fracos e fortes. Para ele, o homem mais valente do mundo é ele mesmo. Não obstante, empregava a valentia apenas no auxílio do próximo. Trata-se de uma paródia muito convincente de Dom Quixote. Por isso, sua figura resulta numa mescla de momentos sublimes com momentos ridículos. Apesar dos percalços, surras e prisões, é a única personagem gloriosa no romance.
Personagens que não sofrem alteração são consideradas sem profundidade psicológica. Por isso são chamadas planas, das quais os tipos são uma variação. José Passarinho é personagem plana, pois mantém sempre o mesmo estatuto, do princípio ao fim do romance. Por outro lado, trata-se de personagem secundária, cuja função é apoiar a existência das demais. Assim são o pintor Laurentino, o aguardenteiro Alípio, o negro Floripes e outros coadjuvantes.
Tipo é a personagem que se confunde com o estereótipo, no qual se condensam características genéricas de uma certa categoria de pessoas. Capitão Antônio Silvino é um tipo revestido de significação alegórica. Funciona como uma espécie de emblema, representando a força da subversão, o poder de uma justiça ilegal porém legítima. Tira dos ricos para dar aos pobres. O Tenente Maurício é semelhante ao cangaceiro, pois também representa uma instituição, a força legal do governo, manchada de mando ilegítimo.
As personagens que sofrem mudança substancial possuem mais densidade psicológica, sendo por isso chamadas de esféricas. As três personagens principais de Fogo Morto são esféricas, pois toda a trama do romance decorre das transformações de seu estado psicossocial. Quanto mais ambígua a personagem, mais rico o seu significado. Num certo sentido, essas três personagens podem ser consideradas loucas, embora em diferentes graus e com sintomas diversos.
A eficiência das situações e personagens de Fogo Morto decorre também do fato de o autor escrever em tom memorialístico, como se fizesse uma crônica sobre o que vivenciou em sua experiência com a realidade do povo da Paraíba, sua terra natal. Sendo um neo-realista, só poderia escrever sobre fatos observados empiricamente.
Fogo Morto é uma obra caracterizada pela captação da vida interior das personagens. Nela, a paisagem externa é importante, mas as vivências interiores recebem mais atenção do artista. Há muita ruminação psicológica no livro. Tal investigação do universo mental processa-se sobretudo através do discurso indireto livre, pelo qual se chega a densos monólogos interiores, que se confundem com o fluxo de consciência.
Fonte:
www.seruniversitario.com.br
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