segunda-feira, 6 de maio de 2013

Conde de Ficalho (A Caçada do Malhadeiro)

 Tínhamos ido — o mestre Domingos ferreiro, o malhadeiro(1) do Valfundo e eu — em busca de um porco-do-mato, que o malhadeiro atalaiara na véspera. Tencionávamos fazer apenas uma mancha(2) pequena, próximo da qual o porco fora visto, e voltar à tarde ao monte das Pedras Alvas, onde ficara o nosso rancho.

O malhadeiro foi com os cães bater, enquanto o mestre Domingos e eu esperávamos nas portas. O porco não estava na mancha. Batemos segunda, onde também não estava; mas aí os cães pegaram com força no rasto, e embaixo do vale achamos-lhe as saídas frescas. Sempre na esperança de o encontrar, batemos terceira e quarta mancha, e fomos de cerro em cerro, de vale em vale, até que, quando nos decidimos a voltar — sem ter visto um pêlo do porco — estávamos a duas léguas, e léguas de serra áspera das Pedras Alvas. Era em dezembro, já ao cair da tarde. Começava a chover, e as nuvens grossas, correndo ao lado do sul, anunciavam uma noite de água.

— Nós, com um tempo desses, não deitamos nas Pedras Alvas senão alta noite — disse o mestre Domingos.

— Não deitamos, é certo! Maus raios partam o porco! — acrescentou o malhadeiro, para se consolar.

— Mas que há a fazer?

— Podíamos ir à malhada da Crespa, que é daqui meia légua. O tio João sempre há de ter alguma coisa que se coma, e um lume pra gente se enxugar.

— Pois vamos lá.

As nuvens negras tinham-se fundido num tom cinzento. A chuva engrossava. Batida com força pelo vento, passava em linhas claras, apertadas, quase horizontais, sobre o verde-negro dos cerros. O malhadeiro abria caminho a corta-mato,(3) e o mestre Domingos e eu seguíamos, abaixando a cabeça, fugindo às rajadas de chuva que nos açoitavam a cara. Em fila atrás dos nossos calcanhares vinham os cães, tristes, de orelha caída. O mato escorria. Nos vales, cheios de erva densa, a terra ensopada cedia fofa debaixo dos pés; e as pegadas, marcadas no musgo verde, enchiam-se logo da água que ressumava. À luz tênue da tarde, algumas poças maiores brilhavam, com reflexos frios de prata polida. Duas galinholas saltaram-nos aos pés, sacudindo com a ponta da asa as gotas cintilantes, presas às folhas viscosas das estevas; mas as espingardas estavam carregadas de bala, bem acomodadas debaixo do braço, com as fecharias tapadas pelas abas dos jalecos, e nenhum de nós ia de humor para atirar em galinholas.

— Maus raios partam o porco! — dizia de vez em quando o malhadeiro.

Era noite fechada, quando os perfis confusos de umas azinheiras grandes se desenharam diante de nós, no clarão baço do céu. Ouvimos ladrar os cães — estávamos na Crespa. O tio João veio à porta, conheceu a voz do outro malhadeiro e abriu logo. Estava só em casa, com a nora e os netos pequenos; o filho andava trabalhando longe dali, e não voltara.

Improvisou-se rapidamente uma ceia pobre, que nos pareceu excelente. Duas braçadas de lenha seca de azinho estalavam na enorme chaminé, com uma chama clara, muito alegre. E quando acabamos de cear e nos chegamos para o lume, acendendo os cigarros, penetrou-nos uma grande sensação de bem-estar. Lá fora ouvia-se o cair monótono da chuva, e as lufadas do sul assobiando na telha-vã da malhada.

Naturalmente falou-se de caça — o ferreiro e os dois malhadeiros eram os três primeiros caçadores da serra.

— Oh! tio João, você é que fez uma caçaria melhor que todas essas? — disse o ferreiro, depois de se contarem muitos casos de mortes de porcos e de veados.

— Fiz... fiz... — disse o velho, como quem meditava.

— Você devia nos contar esse caso esta noite.

— Ó mestre Domingos, eu não gosto de falar nisso.

— Ora, uma vez não são vezes... Eu sei do caso, mas nunca lho ouvi contar bem a preceito como ele foi, e os mais que aqui estão não o sabem.

— Pois conto — respondeu o malhadeiro, abaixando-se para acender o cigarro em uma brasa.

Estava sentado defronte de mim, dentro da chaminé, ao lado da nora. A luz crua da labareda iluminava-lhe brutalmente a cara enérgica, sulcada de rugas fundas, muito queimada. Entre os joelhos tinha o neto, uma criança de sete ou oito anos, com uma cabecita redonda, bem encabelada, e uns olhinhos pretos, vivos, em que a chama punha pontos brilhantes. De vez em quando a mão negra, muito dura, do velho passava sobre a cabeça do pequeno, com um toque suave, de uma doçura infinita. Diante do lume, o ferreiro e o Joaquim do Valfundo estendiam para o brasido os sapatos grossos e as polainas, que ainda fumavam. A chama, levantando e abaixando, projetava-lhes as sombras, desmesuradamente grandes, na parede caiada do fundo, fazendo-as dançar de um modo fantástico.

— Isto por aqui, no tempo dos franceses, esteve mau... muito mau! — começou o malhadeiro. Passaram aí duas vezes. Quando passaram juntos, em tropa, bem foi; mas depois, quando iam na retirada, sem respeito lá aos seus comandantes nem a ninguém, queimavam e roubavam tudo. Os montes, nos barros, estavam todos desertos; e mesmo cá na serra, nas malhadas mais perto das estradas, não ficou viva alma. Todos fugiam, levando alguma coisa melhorzita que tinham. Meu pai quis aqui ficar. “Pra onde há de a gente ir? — dizia ele. — E depois, isto é cá desviado, não vêm cá”.

Eu, ao tempo, era rapazote, ia nos meus dezassete. Estava aqui com meu pai e as minhas duas irmãs; a Inês, a mais nova, que ainda vive, era mais velha do que eu um ano; e a Mariana, Deus lhe perdoe, teria então os seus vinte ou vinte e um.

Passou tempo, sem os franceses aparecerem. A gente sabia que passavam tropas, aí pelas estradas, direitas a Espanha; mas cá na serra já estava descuidada. Quando uma manhã, que eu andava lavrando com a parelha ali no farrejal, e meu pai estava falquejando umas aivecas aqui na empena, a Inês, que tinha ido à fonte... — a fontinha lá abaixo na umbria, sabes, Joaquim? — a Inês veio fugindo ladeira acima, e chegou aí esfalfada, dizendo: “Aí vêm... aí vêm!”

E vinham. Tinham se desviado da estrada, perderam-se e vieram a corta-mato, diretos à casa, que viam aqui na altura. Eram oito. Vinham muito rotos, com os sapatos em frangalhos, atados com trapos. Um — estou-o vendo — alto, magro, com o nariz grande e o bigode caído nos cantos da boca, trazia um lenço branco, sujo, com grandes manchas de sangue, atado à roda da cabeça.

Meu pai bradou-me, e quando eu vim correndo, disse-me baixo: “Esconda as espingardas”.

Fui àquele canto onde elas sempre têm estado, peguei-as, passei à porta de trás, e fui metê-las na palha da arramada. Quando voltei, já os franceses estavam dentro de casa. Não se percebia nada do que diziam, senão vino... vino..., e faziam sinal que queriam comer. O pai disse às moças que lhes dessem o que havia; mas eles não esperavam, abriam as arcas e traziam o que achavam pra cima dessa mesa. Meu pai tinha-se sentado naquele banco...

O velho indicava os lugares com o gesto, que o Joaquim e o mestre Domingos seguiam no movimento de atenção dos olhos; e assim contada, naquela casa que não tinha mudado nos últimos sessenta anos, onde ainda se viam as espingardas encostadas ao mesmo canto, e o banco tosco ao lado da porta, a história adquiria uma intensidade de vida, uma atualidade singular.

— Os franceses — prosseguiu o tio João — comeram, beberam, estavam já alegres, rindo e gritando. Um deles, um loiro, que tinha um galão e parecia mandar alguma coisa nos outros, quando a minha Inês passou ao pé dele, deitou-lhe um braço à cintura, sentou-a à força nos joelhos e deu-lhe um beijo.

Eu vi isto, e no mesmo instante vi meu pai de pé, e um machado de cortar azinho direito à cabeça do francês. O francês era leve, furtou-se; quatro ou cinco deles agarraram-se a meu pai, e depois de uma luta o deitaram no chão. Eu tinha levado uma coronhada pelos peitos, e estava encostado àquela arca, seguro por outros dois. O loiro ria-se com um riso mau, mas dizia — quis-me a mim parecer — que nos não fizessem mal, que nos atassem. Estava aí uma corda grande, com que eles ataram o pai de pés e mãos. A mim, ataram-me com um baraço e com a minha cinta.

As moças... arrastaram-nas para a casa de dentro, gritando e chorando...

À mesa ficaram dois franceses, bebendo.

Eu ouvia minhas irmãs chorarem lá dentro, chamando-nos, que lhes acudíssemos; e via o pai deitado no chão, com a camisa rasgada e as mãos atadas atrás das costas. Na luta, quando caiu, partiu a cabeça na esquina do banco. Um fio delgado de sangue corria-lhe da testa até às suíças brancas; e, dos olhos muito fitos, vi correrem-lhe as lágrimas, que se misturavam com o sangue.

Não posso dizer o tempo que isto durou; mas pareceu-me muito.

Quando os franceses saíram, rindo e metendo nos bornais o pão e uns queijinhos que tinham sobejado, nem olharam para o pai; a mim, pegaram-me, e assim mesmo atado como estava, levaram-me à porta para lhes ensinar o caminho. Não sei o que me lembrou, mas em lugar de lhes mostrar o atalho que vai direito à estrada, mostrei-lhes a que desce para a ribeira. Essa era a mais seguida das duas. Eles não desconfiaram, deitaram as espingardas ao ombro e desceram vale abaixo.

A Inês não dava acordo de si; mas a Mariana, muito branca, muito enfiada, veio cá fora desatar o pai. Ele não falava. Quando a Mariana me desatou, disse-me só: “As espingardas”.

Fui à arramada buscá-las, e quando vim, já o pai tinha o polvorinho a tiracolo; apontou para o outro polvorinho, que eu enfiei; tirando da arca o saco das balas, esteve-as dividindo; deu-me um punhado delas e meteu as outras na algibeira. Saímos, sem ele dizer uma palavra à Mariana. Fez-lhe sinal que chamasse e fechasse os cães. Só deixou ir uma podenga velha vermelha; mas a podenga era — salvo seja — como uma criatura; quando estava numa porta, nem latia nem mexia um cabelo. À ponta dos farrejais, abaixou-se; desafivelou a coleira do chocalho da cadela e deitou-a fora.

Nós íamos devagar. Entendi eu que meu pai os queria deixar meter bem para os vales mais ásperos. Lá embaixo, nos matões do barranco do Alendroal, é que os apanhamos. Vimo-los de longe, numa volta da trilha. Meu pai não falava, fez-me sinal que fosse à meia encosta da umbria, que ele ia pela soalheira; e quando nos apartamos, numa voz ainda trêmula, disse-me só estas palavras: “Não atires, sem eu atirar”.

Eu meti à encosta, de gatas, por baixo das estevas. Era uma criança ainda, mas não me lembrei de ter medo. Fui... fui, até que cheguei bem à distância de um tiro. Já nesse tempo atirava bem. Desde pequeno eu andava com meu pai. E você ainda se lembra como ele atirava, mestre Domingos?

— Era a primeira espingarda da serra, a chumbo e a bala! — afirmou o ferreiro.

— E era! — continuou o velho. — Eu não o via; mas sabia que ele ia na outra encosta. Os franceses iam embaixo, no vale, todos numa linha, porque a trilha era estreita. Numa volta do vale, ouvi um tiro; e o francês, o loiro, que ia adiante, abriu os braços e caiu de bruços. Os outros pararam; eu apontei bem um, dei no dedo, e ele caiu redondo. Ao segundo tiro, viraram-se para o meu lado; então o pai, para me livrar, apareceu-lhes no mato. Atiraram-lhe todos, e eu vi as estevas cortadas pelas balas em volta dele; mas não lhe deram. Os homens ainda quiseram avançar pela encosta, direito a ele, mas era uma moita de mato muito forte; não puderam romper, e, deixando os dois mortos, abalaram a correr pelo vale.

O pai chamou-me, e fomos juntos sempre pelo fio da altura, a ver o caminho que tomavam. Acho que se arrecearam de ir pelo vale, que era cada vez mais estreito, e meteram a uns matos ralos, de umas queimadas que se tinham feito nesse ano, direito à porta-baixa do Sovereiral.

Quando os topamos, foi já no barranco do Algeriz, ali no açude do Moinho Velho. Estávamos metidos nos medronhais altos, e eles vieram sair no claro do areal do barranco — mesmo onde tu mataste a porca grande, Joaquim, na semana passada.

Era quase à queima-roupa: caíram dois. Os homens eram valentes. Os quatro que restavam ficaram direitos, encostados uns aos outros. Atiraram para o mato, na direção do sítio em que tinham visto o fumo, e uma bala cortou um ramo por cima da minha cabeça. Nós separamo-nos, e mesmo de rastos por baixo do mato, fomos carregando. Quando atiramos, eu precipitei-me e errei; mas o pai não errou... nem errava! Os três perderam coragem e fugiram para o mato. Era já escuro, perdemo-los.

Fomos para um cabeço e ficamos ali toda a noite. Eu estava cansado, era uma criança, e ali me deitei. Mas o pai nunca dormiu; e quando eu de noite acordava, com o frio e com a fome, via-o sentado numa pedra, direito, encostado à espingarda.

Logo ao romper da manhã, abalamos. Os três franceses tinham tido toda a noite para fugir; mas aqui na serra, quem não é prático, jamais avança caminho de noite. Pode um homem andar uma noite toda, e de manhã achar-se no mesmo sítio. Ainda assim deram-nos trabalho; atalaiamos pelos cerros; rastejamos os vales e as passagens dos barrancos, como se a gente andasse à busca de um javardo ou de um veado; até a cadela, Deus me perdoe, já lhes pegava no rasto. Seria meio-dia quando os vimos lá muito embaixo, nos areais da ribeira. Tinham ido à água. Dali a duas horas estavam mortos todos três.

Quando voltamos para a malhada, já os abutres andavam no ar às voltas, às voltas, por cima do vale, onde ficaram os dois primeiros.

Meu pai, ao entrar em casa, não disse nada; mas agarrou as filhas e teve-as muito tempo abraçadas, e nunca até à hora da sua morte o ouvi falar no que tinha sucedido.

O lume ia-se apagando, sem que — presos à narração — nos lembrássemos de o atiçar; e o vasto brasido, onde ainda corriam umas chamas incertas, azuladas, iluminava vagamente a figura austera do velho, que amparava com muito cuidado sobre os joelhos o pequenito adormecido.

NOTAS:

1 - Malhadeiro: indivíduo que trata de colméias; colmeeiro.
2 - Mancha: cama do javali, ou porco-do-mato
3 - A corta-mato: a direito, por atalho; pelo caminho mais curto.

Fonte:
Aurélio Buarque de Holanda Ferreira & Paulo Ronái. Mar de histórias. vol. 5. RJ: Nova Fronteira.

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